Ele era poeta como quem se afoga. Nas suas noites, sempre a poesia subitamente a vazar de encanamentos mal soldados em suas pernas e seus braços, e a invadir-lhe a casa, perseguindo-o da sala para o quarto, do quarto para o banheiro, do banheiro para o escritório, onde, exausto, ele acabava por se trancar. E seu corpo outrora vasto, já agora reduzido pelas dolências, subia boiando com o nível das águas até o emparedamento total e a asfixia, como nos antigos suplícios por afogamento em recinto fechado. E ele morria em seu noturno aquário, esmagado pelo teto do infinito, náufrago de si mesmo - um poeta como quem se afoga.
Eu tinha 19 anos quando, em 1933, pela mão de Otávio de Faria, fui pedir-lhe para distribuir meu primeiro livro de versos. Encontrei-o na porta de sua livraria, na antiga rua Sachet, e seu volume físico oprimiu o menino magro que eu era. Olhou-me com intensidade e disse:
- Mas é uma criança...
Aquilo me deu raiva. Deu-me, sim, porque eu me achava um gênio e meus amigos mais próximos também não faziam por menos. Para Otávio, que orientava meus primeiros passos literários, eu era - embora sem nenhuma influência direta, pois mal me iniciara na leitura dos poetas modernos - o continuador de Schmidt, o jovem acólito de sua missa poética. Aquela missão secundária feria-me os brios porque me parecia que eu partira de mim mesmo, de minhas próprias fontes, e não devia nada a ninguém. Mas, depois de lê-lo, eu me pusera a admirá-lo também e nas nossas intermináveis viagens andorinhas amávamos despetalar seus poemas e atirar versos soltos às estrelas...
Tudo é inexistente, disseram os príncipes deitados na areia...
E vinha o grande pálio aberto e se estendia sobre o céu sem manchas. Destroços, ruínas, podridões ameaçavam desabar... Eram palavras proféticas, a revelar a catástrofe em gestação, a enunciar poeticamente os dados da aventura existencialista do pós-guerra: uma "vidência", uma premonição realmente extraordinárias...
Nós éramos todos "de direita". Torcíamos pela vitória do fascismo e líamos Nietzsche como quem vai morrer. "Escreve com o teu sangue, e verás que teu sangue é espírito!" Ah, como amávamos essa palavra sangue... Ah, que conteúdo tinha para nós essa palavra espírito...
Depois eu cresci e vi que não era nada disso. Vi que nem eu era gênio, nem queria destruir coisa alguma. Queria era namorar, conversar com os amigos, tomar sol na praia, empilhar fichas de chope e escrever palavras simples.
E fui me afastando...
Mas, vira e mexe, encontrava Schmidt. Em São Paulo, num cais em Montevidéu, em Montmartre, na rua Cupertino Durão. Então ele me pegava, dava-me o braço e me dizia:
- Vem comigo. Estou precisando muito conversar com você...
E eu ia. Uma vez foi para poder atribuir-me a culpa da ingestão de meia lata de goiabada que comeu em casa, pobrezinho, alucinado que estava por uma dieta de fome a que o submetia a sua Musa, que o queria esbelto e elegante.
Foi também em sua casa que conheci Jayme Ovalle, o grande, o eterno amigo.
No fundo, devo-lhe muito. Aliás, por falar em dívida, fiquei lhe devendo cinco contos, emprestados há muitos, muitos anos.
Eu lhe digo o que farei, meu caro Schmidt. Hoje à noite, quando sair para fazer meu show, pegarei uma nota de Cr$ 5.000, bem amassada numa bolinha, e a jogarei para cima, com toda a força que tiver. Se você ainda estiver levitando por aí e conseguir pegá-la, muito bem. Se não, tudo o que desejo é que caia perto de alguém mais pobre do que eu.
Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.
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