Foi aqui mesmo em Santos, há algum tempo. E não o vi mais.
Passou chispado, à direita do meu carro. Estranhei: — Moto? — Não! Muito silencioso. Bicicleta? – Não! Estranho demais!
Vi melhor: — Bicicleta, sim! Pequenina. Dessas que só andam pelas calçadas, cavalgadas por guris de oito a dez anos, no máximo!
Quem usava o veículo, no entanto, era um rapaz já taludo, quinze a dezessete anos. Não mais.
Bicicleta não adaptada. Sem qualquer sofisticação. Extravagante, isto sim, a maneira como era usada! O ciclista tinha a perna esquerda amputada à altura do joelho. A direita, inativa, cruzada sobre o guidão. Talvez que nem dê para entender, mas, era isto mesmo! E nada de motorização.
Bicicleta pedalada como qualquer bicicleta que se preze. Mas, pedalada de maneira insólita. Pedalada com a mão!
Talvez isto entre em choque com a semântica. Pedalar teria de ser: — acionar alguma coisa com o pé. Não era o caso, evidentemente.
Corpo dobrado, o ciclista "pedalava" e, velozmente, com a mão direita. Malabarismo difícil de ser explicado. Desafiante das próprias leis do equilíbrio. De pasmar, como pasmei!
Lá ia ele, rente ao meio fio, dorso flectido, a embaralhar-se no trânsito, sempre que um veículo estacionado lhe tolhia a marcha. Feliz! Cada movimento traduzia vitória!
Alcançou-me várias vezes, quando os sinaleiros arregalavam o olho vermelho, espantados de o verem chegar. Comovida, seguia-lhe o esforço de aproximação, pelo espelho retrovisor.
Um terceiro farol nos emparelhou. Parado, como conseguia manter o equilíbrio, não sei. Meu pasmo, não captou pormenores. Talvez que a perna inativa então o ajudasse. Da bolsa, presa ao guidão, puxou minúsculo rádio de pilha. Encostou-o ao ouvido, deleitado e auto-suficiente. A gota d'água! Senti um irresistível apelo de comunicação.
Sinal verde. Antes do arranque, buzinei. Dois toques curtos. Olhou-me.
Sem nada o que dizer, sorri-lhe, erguendo o polegar, num gesto otimista que pretendia dizer tudo.
Entendeu-me. Devolveu o gesto e retribuiu-me o sorriso, com outro mais luminoso e triunfante!
Parti, chispada! — Que minha emoção não pusesse em risco a magia do instante. E nem apagasse o brilho daquele sorriso, tão especialmente bonito!
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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