Enquanto a mulher morria no trabalho, com oito filhos à cola, Teofrasto, o bom marido, procurava emprego.
Teofrasto Pereira da Silva Bermudes. Magro, alto, arcado, feio. Bigodeira, orelhas cabanas, pastinha na testa.
Dona Belinha casara-se contra a vontade dos seus, movida, quem sabe, menos de amor que de dó. Apiedou-a a humildade romântica de Téo, cujo palavrear de namoro feria habilmente uma tecla apenas — sua pobreza.
— Que vale haver dentro de mim um coração de ouro, nicho que habitarias a vida inteira, Isabel? Que vale este meu amor puríssimo, forte como a morte, feito de todas as abnegações, renúncias e delicadezas, se sou pobre? Que crime horroroso, ser “pobrezinho”!... — e ele armava a cara dolorida das presas da Fatalidade.
O noivado inteiro foi esse ferir a nota exata. Teofrasto adivinhou por instinto que a corda sensível da moça era a da piedade e fê-la vibrar de mil maneiras. Lido que era nas Tristezas à beira-mar, em Graziela, Escrich e mais lacrimogêneos do ultrassentimentalismo, seu cérebro virou arsenal de glândulas peritas em verter lágrimas de 1840 sobre o coração das mulheres de hoje. Venceu assim aquela e fê-la romper com a família — burgueses arranjados de límpida visão prática.
Inutilmente tentaram os pais abrir os olhos à moça.
— É um vagabundo, Belinha, sem eira nem beira, incapaz de ganhar a vida, malandro completo. Esteve na venda do Souza, mas foi posto no olho da rua por excesso de preguiça. Também esteve no cartório um mês e perdeu o lugar pelas mesmas razões. Além disso, é filho do Chico Manteiga, o maior parasitão que já vegetou por estes lados. Puxou ao pai...
— Falta de sorte — exclamava Belinha. — Téo ainda não se arrumou porque ainda não foi compreendido.
— Sorte!... Incapacidade é que é. Teofrasto não presta. Quem chega aos trinta e dois anos sem achar o que fazer na vida está julgado: não presta. Ele inventou esse casamento contigo por uma razão só: viver à tua custa.
— Isso não! Téo jurou que há de trabalhar feito um mouro para que eu tenha a melhor das vidas. Sou professora, mas ele não admite que eu tire cadeira.
— Diz isso agora. Casa-te e verás como tudo muda. Nasceu para chupim o malandro e escolheu-te para tico-tico...
A moça, entretanto, teimou. Preferiu romper com a família a soltar o romântico pretendente. As juras de Téo, suas cartas de arrancar lágrimas às pedras, recebidas todos os dias, e aquele seu modo de olhar com infinitos de meiguice, deram à menina forças para resistir à sensatez dos conselhos.
— Ninguém te conhece, Téo. Desprezam-te porque és pobre. Mas para mim a riqueza que vale é a que me ofereces: esse tesouro de amor e carinho que sinto em teu peito.
Téo respondia dando corda às glândulas lacrimais e estilando grossos pingos.
— Anjo de bondade, tu és o orvalho que reanima a planta queimada do sol, és a chuva que abranda o fogo do deserto, és o pão que mata a fome ao faminto, és Deus, és Tudo...
E abraçava-a, soluçante.
— Isabel, meu anjo da guarda, meu paraíso, minha salvação... Abençoado o momento em que te encontrei na vida...
Repousava a cabeça no colo da moça e ficava a soluçar baixinho, enquanto Isabel lhe alisava maternalmente as melenas revoltas.
Realizado o casamento, Teofrasto, ganho de súbito furor, deu de procurar emprego. Passava os dias fora de casa, na “labuta”, e só vinha para as refeições, cansado.
— Uf! Não posso mais...
— Conseguiste alguma coisa?
— Promessas por enquanto.
Isabel revoltava-se contra a dureza dos homens. Por que motivo repeliam assim criatura tão boa, tão honesta, tão esforçada e de tanta capacidade? Todos se arrumavam, aqui, ali, bem ou mal; só Teofrasto se debatia em vão... Por quê?
Três meses já de caça ao trabalho e nada... Resolveu ajudá-lo. Obteria uma cadeira, mesmo contra a vontade dele, e lecionaria. Trezentos mil-réis por mês! Já dá...
Quando o marido soube desses projetos, indignou-se.
— Não consinto! Para trabalhar aqui estou eu, homem e forte. Tinha graça ver-te a ensinar meninos e a custear as despesas da casa...
— Mas, Téo, tu vives a te matar sem conseguires coisa nenhuma...
— Mas conseguirei. Insistirei até o fim. Fecham-me as portas? Arromba–las-ei. Habilitações não me faltam, tu sabes; falta-me sorte apenas.
— Sei disso. Ninguém o reconhece melhor do que eu. Mas havemos de ficar assim toda a vida, esperando?...
— Peço-te um mês de prazo. Juro-te que dentro de um mês estará tudo arrumado. O que não quero, o que de maneira nenhuma consinto, é que digam por aí: “Olhem o Téo, um homenzarrão, a viver do trabalho da pobre mulher”. Isso nunca!
Passou-se o mês concedido, e mais outro, e o terceiro. Agravando-se a situação, resolveu Isabel requerer cadeira às escondidas do esposo. Fê-lo e foi feliz, vendo-se nomeada logo.
Nesse dia esteve Teofrasto na farmácia, como de costume. Lá se reuniam todas as tardes diversos amigos para comentário dos fatos locais e encrencas da alta política. Nenhum dissertava tão bem quanto ele. Ninguém como ele para “descangicar” aquela trapalhada de “hermismo” e “civilismo” que dividia o país. Era hermista. Adorava o marechal Hermes, o Pinheiro Machado, o Surucucu e tutti quanti.
— Precisamos endireitar este país, custe o que custar. Basta de conselheiros! Venha a espada! Venha o pulso forte que diz — quero, posso e mando. É de despotismo, de um sábio e largo despotismo, que o país precisa.
Os civilistas troçavam.
— Espada burocrática, que vale? Antes a pena luminosa da Águia de Haia.
Téo pulava da cadeira, furioso.
— Águia de Haia? Sabem quem foi a verdadeira Águia de Haia? Foi o barão do Rio Branco! Rui não passou dum fonógrafo. Os discos iam daqui, pelo telégrafo.
Tomou fôlego, gozando-se da piada, e prosseguiu:
— Depois, respondam-me cá: e as emissões? Rui é emissor, e eu sou contra a emissão!
Um coronel lido em jornais saltou-lhe à frente.
— Calúnia velha! Rui já provou que o ministro da Fazenda que emitiu menos foi ele.
— Será. Mas a Revisão? A Constituição, como diz o Pinheiro, deve ser a arca santa, a deusa intangível — e Rui é revisionista.
— Está claro! Foi ele quem fez a joça e sabe melhor do que ninguém os vícios que ela encerra. O Pinheiro, um pente-fino de marfim, que é que entende de constituições? Entende de cavalos e pôquer, e nada mais...
— Não admito!
— Vá não admitir na casa do diabo!
Teofrasto abandonou a arena e foi para casa furioso. Entrou e caiu na rede, já com a habitual cara de vítima.
— Que infeliz sou, Isabel! O mundo me persegue. Corri ceca e meca. Nada...
— Não faz mal — respondeu a moça, cuja fisionomia irradiava. — Requeri às escondidas uma cadeira e obtive-a!...
Téo sentou-se de golpe.
— Quê?
— É verdade. Fui nomeada hoje adjunta ao grupo escolar.
Téo desmanchou a pastinha.
— Fado cruel! Destino espezinhador! Eu, que te adoro, que te quero com todas as veras de alma, ser obrigado a viver do produto do teu trabalho? Nunca!
— Mas que tem isso, bobo? Não sou vadia, gosto de serviço e a escola me distrairá.
— Nunca! Não consinto, não admito que minha adorada esposa trabalhe. Antes rebentar os miolos à bala!
— Não digas isso, Téo!...
— Digo, digo porque sinto! És um anjo e não me conformo com a situação.
E arrepelando a grenha, de olhos cravados no teto:
— Em que signo maldito nasci eu? Que te fiz, meu Deus, para me castigares
desta maneira?
A criadinha veio nesse momento chamá-lo para o jantar. À mesa Téo prosseguiu na lamúria, alternando imprecações com garfadas.
— Não me conformo! Não me sujeito! Pensas que não tenho brio, Isabel? Como me conheces pouco ainda! Passa-me o arroz...
Isabel acalmava-o.
— Tolice. Todo mundo trabalha. A mulher do Pessegueiro não está a lecionar depois de velha? O marido perdeu o emprego e ela agora é quem... Coma deste bolinho, que está muito bom.
— Sim, mas ali o caso é diferente. Ele perdeu o emprego, mas logo arranja outro. Tem sorte, tem a proteção de todo mundo. Cerveja!... Oh! Isto é então um banquete?
— Natural. Quis fazer-te surpresa dupla: nomeação e jantarzinho melhor.
— Nomeação! Não pronuncies tal palavra, Isabel, que me ofendes sem querer. Hamburguesa? Por que não compraste Brahma? Gosto mais da Brahma.
Houve sobremesa e Téo repetiu o papo de anjo.
Entraram em fase nova. O ordenado da professora veio salvar as finanças do casal. E seriam perfeitamente felizes se não fora a resistência de Téo. Mas não se conformava, o homem...
Depois do almoço, todos os dias, saíam ambos, ela para a escola, ele para o “serviço exaustivo” de procurar emprego — na farmácia, onde crescia de virulência o eterno bate-boca político.
Assim viveram até a vinda do primeiro filho, cuja presença perturbou o regime da casa. Fazia-se necessário meter nova criada, simples pajem que fosse. Téo achou que não.
— É boa! E quem pajeia o menino durante a minha ausência? — quis saber a esposa.
— Ora quem! Eu, Isabel.
— Não consinto. Nada mais ridículo que um homem de bigodes a pegar criança. Prefiro tomar costuras para fazer à noite e com o rendimento pôr criada.
— Mas eu é que não consinto que redobres de trabalho! Costurar à noite, que horror! Nunca!
Isabel, que já conhecia o gênio do marido, cedeu provisoriamente e finda a licença retomou as aulas, deixando em casa o marido às voltas com o pimpolho. Correu tudo muito bem durante os primeiros dias, enquanto brincar com o filho era para Téo novidade. Ao termo de duas semanas, porém, fartou-se e principiou a sentir saudades da farmácia. Disse-o à esposa, estilizadamente.
— Não vai bem assim, Isabel. Perco o meu tempo aqui a lidar com o menino e desse modo não arrumo a vida. Quinze dias já que não procuro emprego.
— Não te dizia? O melhor é fazer como pensei. Tomo costuras de fora e ponho criada.
— Mas não posso conformar-me com esse redobro de trabalho, Isabel! Vá que ensines, mas costurar para fora...
— Que é que tem? Nada me custa, sou forte — e além disso é o jeito...
Veio a criada. Dona Isabel tomou costuras e passava as noites à máquina, pedalando. Cosia habitualmente até as onze. Inúmeras vezes ao se recolher encontrava o marido no vale dos lençóis, ressonando. Entrava de manso na ponta dos pés e despia-se sem rumor para não acordar o coitadinho. Como o queria! Tão carinhoso... Incapaz de entrar a desoras, às oito já estava ali ao lado dela, brincando com o pequeno, enfiando a agulha da máquina, contando os casos do dia.
— Tive com o Bragadas hoje uma discussão violenta na farmácia. Provei que o Hermes vai ser a salvação do país e ele embuchou. Ninguém pode comigo na polêmica! Nasci para advogado.
— Por falar, por que não tiras carta de solicitador? O João Candó não vive tão bem como rábula?
Téo segurou o queixo.
— É verdade. Está aí uma ideia que não me ocorreu ainda. Vou pensar nisso.
Teofrasto Pereira da Silva Bermudes pensou naquilo durante vários anos. Nesse intervalo vieram novos filhos, dois, três, quatro, cinco. Os encargos da família redobraram e dona Isabel teve que fazer prodígios para assegurar a subsistência do clã.
Pobre criatura! Perdera a mocidade. Seus vinte e seis anos pareciam quarenta. A beleza fora-se-lhe minada pela gravidez ininterrupta. Por fim, em consequência de certo aborto infeliz, entrou a perder a saúde. Era já com esforço que prosseguia na tarefa penosa, muito acima das suas forças. Não se queixava, entretanto. Gabava-se até de feliz. Ao receber visitas, puxava logo a palestra para o tema clássico das mulheres, os maridos, e louvava o seu.
— Não é por me gabar, prima Biluca, mas marido como o meu não há outro. Téo me adora! A nossa lua de mel não acabou, nem acabará nunca. Que carinhos! Que meiguice! Sempre entrou cedo em casa, nunca me disse palavra dura, vive para mim, faz tudo quanto quero. Um mimo!
Biluca já não dizia o mesmo do seu. Casara com um homem forte, de rara atividade, que se absorvia nos negócios e estava prosperando magnificamente. Dava à família o máximo conforto, educava os filhos muito bem, mas... não era carinhoso. Muito ocupado sempre, não a punha ao colo, não lhe dizia palavrinhas
doces.
Isabel irradiava.
— Téo não é assim. Beija-me sempre, ao sair e ao entrar. Tem caídos de noivo. E se você soubesse como se amofina de me ver trabalhar... Coitado!
Abria pausa de ternura e prosseguia:
— Sim, porque isso de homem para uso externo, uma figa! Quero maridinho para mim e não para as outras, não acha?
— Pois decerto!
— Téo mata-se no trabalho, passa os dias no serviço...
— No serviço?
— Sim... procurando emprego. Você sabe que não tem sorte nenhuma, o pobre; não há pior serviço do que esse. Mas não consegue colocar-se...
A fama do bom marido correu mundo. Todas as mulheres apontavam-no como o exemplo a seguir.
Os homens exemplares, porém, enfureciam-se.
— Um vagabundo daqueles! Um miserável chupim!
— Que tem isso? — disse uma. — Eu, franqueza, preferia que fosses também chupim, mas que me desses o carinho que ele dá à Isabel.
— É o cúmulo! Pois não vês que aquilo é profissão? Tipo asqueroso!... Agrada à mulher porque vive dela. É o seu negócio. Como há de um malandro daqueles encher o dia senão conversando bobagens na farmácia ou beijocando a idiota da esposa em casa?
Todos os homens pensavam assim; as mulheres, entretanto, liam pela cartilha da dona Isabel — e invejavam-na.
Dez anos se passaram sem que o emprego viesse. Estava escrito no livro do destino que Teofrasto morreria a procurar emprego. Fatalidade...
O triste é que viviam em penúria crescente. O trabalho da professora, por mais estirado que fosse, já não dava para vestir e alimentar os oito filhos pequenos e mais o nono, de bigodes.
A doença começou a derreá-la.
Mas como se galvanizava! Como insistia na terrível luta sem tréguas! Dona Isabel transformava em alento os carinhos do esposo. Comovia-se com eles e enlevava-se à noite a ouvi-lo dizer, da rede onde se balançava de pernas cruzadas, lançando baforadas para a ar:
— Isabel, como me dói ver-te sempre pedalando essa máquina! Por que não descansas um pouco? (Baforada.) Tenho o coração em chaga viva, pisado, torturado pela dor de não poder aliviar-te. (Baforada.) Tu te matas, Isabel, e eu...
Numa dessas vezes espicaçou-o uma ideia. Ergueu-se de salto e disse:
— Isto não pode ficar assim. Vou agarrar o coronel na rua e obrigá-lo a dar-me o posto de fiscal da Câmara. Se o não fizer, mato-o!
A mulher, assustada, interrompeu a costura.
— Pelo amor de Deus, Téo, não me vás cometer alguma loucura!...
— Não me detenhas, Isabel! Tudo tem fim na vida. Hei de conseguir, hei de
extorquir, hei de arrancar o emprego! Não se martiriza assim um homem...
E saiu — ou vai ou racha — deixando a esposa apavoradíssima. Fora, o ar livre acalmou-o e Téo seguiu para a farmácia, onde penetrou dizendo:
— Aposto o que vocês quiserem como antes do fim do mês os russos estão em Berlim. Assumiu o Governo o Kerensky, e o Kerensky é um bicho!
— Como sabe?
— Li. Como também aposto que o general Cadorna vai envolver os austríacos por cima e dar um pealo por baixo — exclamou fazendo gestos no ar, indicativos das operações estratégicas.
O diálogo se passava durante a Grande Guerra.
— Pois eu aposto — retrucou um germanófilo — que o Ludendorff esfrega toda essa canalha em três tempos!
A conversa pegou fogo. Aquela gente entendia de guerra muito mais que os beligerantes, e o ardor de Teofrasto excedia ao do próprio Clemenceau. O debate
só arrefeceu quando o relógio da matriz soou as dez.
— Diabo! Perdi a conta esta vez! — exclamou Téo.
Despediu-se e tocou para casa apressadamente. Dona Isabel, assustada com a demora, recebeu-o convencida de tragédia.
— Que houve, Téo? Fizeste alguma para ele?
— Ele, quem?
— O coronel...
— Ah, sim, o coronel... Ficou para amanhã. Não houve meio de encontrá–lo.
A mulher calou-se, compreendendo tudo...
O estado de dona Isabel agravava-se dia a dia. Por mais que se fizesse de tesa, tinha de arrear a carga. Ponderou tudo com o seu raro bom senso e escreveu à família: “Fiz o que pude, mas estou vencida. Não me queixo. Sou feliz, imensamente feliz. Téo me adora e faz o possível para colocar-se. Não tem sorte. Persegue-o a mais cruel das fatalidades. Venham olhar para estas crianças, que o meu fim está próximo”.
Téo nada soube desse passo e muito admirado ficou de ver chegarem os sogros. Os velhos olharam-no com rancor e dirigiram-se para o quarto da filha. Foi dolorosa a cena do encontro. Separados de dez anos, mal a reconheciam agora.
— Em que estado te encontramos, Belinha! Por que não nos chamou há mais tempo? O orgulho te matou...
Isabel, no fundo da cama, sorria.
— Perdoe, mamãe, e lembre-se de que não me queixo. Fui feliz. Téo é para mim um anjo de bondade. O que nos fez mal foi a miséria e agora a doença. Estou no fim.
Os pais choravam, assombrados em face da múmia a que se reduzira a linda menina de outrora. E culpavam-se de a terem abandonado, de não a terem socorrido a tempo.
Veio o doutor. Os velhos conferenciaram com ele a um canto.
— Caso perdido. Galopante. Morre exausta de canseira, de trabalheira excessiva, de partos e abortos mal conduzidos — de miséria, em suma. Aquele infame assassinou-a...
Dona Isabel morreu nos braços do bom marido, beijando-o e abençoando-o. Suas últimas palavras foram:
— O que mais me dói, Téo, é deixar-te sozinho no mundo, ao desamparo. Mas já pedi... e mamãe... olhará... por...
Não teve forças para o ti. Enunciou-o com os olhos e fechou-os para sempre.
Após o enterro, o sogro dispôs tudo para levar consigo o batalhãozinho de órfãos. Quanto ao chupim, puseram-no incontinenti no olho da rua.
— Fora daqui, assassino! Vá procurar outra!...
Teofrasto humildemente obedeceu. Saiu, procurou outra e achou... Um mês mais tarde ligava-se a certa mulata doceira, cuja quitanda ia próspera. Guardou, entretanto, luto rigoroso e só dois meses mais tarde reapareceu na farmácia.
— Resurrexit! — exclamaram os amigos.
Teofrasto cumprimentou-os com cara de circunstância, triste como se recebera pêsames. E falou da morta.
— Uma santa! O meu consolo é que tenho a consciência tranquila. Fui o melhor dos maridos e fiz-la a mais contente das esposas.
— Lá isso parece. Ela o dizia e todas o repetem. Mas, olha, isto aqui não é sala de visitas de casa de defunto. Está na berlinda a declaração de guerra do Brasil à Alemanha. Que achas?
Teofrasto mudou de cara, esquecido já da santa e todo nas unhas da paixão política.
— Acho que fizemos muito bem. Precisamos entrar na guerra e mostrar aos alemães de quantos paus se faz uma canoa. O presidente Wenceslau Braz é um bicho!…
Fonte:
Monteiro Lobato. O macaco que se fez homem. (1922)
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