quinta-feira, 20 de junho de 2019

Alcântara Machado (A Insigne Cornélia)


O sol batia nas janelas. Ela abriu as janelas. O sol entrou.

— Nove horas já, Orozimbo! Quer o café?

— Que mania! Todos os dias você me pergunta. Quero, sim senhora!

Não disse palavra. Endireitou a oleogravura de Teresa do Menino Jesus (sempre torta) e seguiu para a cozinha. O café já estava pronto. Foi só encher a xícara, pegar o açúcar, pegar o pão, pegar a lata de manteiga, pôr tudo na bandeja. Mas antes deu uma espiada no quarto do Zizinho. Deu um suspiro. Fechou a porta à chave. Foi levar o café.

— E a Folha?

— Acho que ainda não veio.

— Veio, sim senhora! Vá buscar. Você está farta de saber...

Para que ouvir o resto? Estava farta de saber. Trouxe a Folha. Voltou para a cozinha.

— Aurora! Ó Aurora!

Pensou: essa pretinha me deixa louca.

— Onde é que você se meteu, Aurora?

Pensou: só essa pretinha?

Começou a varrer a sala de jantar. E a resolver o caso da Finoca. O médico quer tentar de novo as injeções. Mas da outra vez deram tão mal resultado. Será que não prestavam? Farmácia de italiano não merece confiança. Massagem é melhor: se não faz bem mal não faz. Só se doer muito. Então não. Chega da coitadinha sofrer.

— A senhora me chamou?

Tantas ordens. Esperar a passagem do verdureiro. Comprar alface. Não: alface dá tifo. Escolher uma abobrinha italiana, tomates e um molho de cheiro. Lavar a cozinha. Passar o pano molhado na copa. Matar um frango. Fazer o caldo da Finoca. Não se esquecer de ir ali no Seu Medeiros e encomendar uma carroça de lenha. Mas bem cheia e para hoje mesmo sem falta.

A indignação de Orozimbo com os suspensórios caídos subiu ao auge:

— Porcaria de casa! Não tem um pingo de água nas torneiras!

— Na cozinha tem.

Encheu o balde. Levou no banheiro.

— Por que não mandou a Aurora trazer?

— Não tem importância.

Pisando de mansinho entrou no quarto da Finoca. Ajeitou a colcha. Pôs a mão na testa da menina. Levantou a boneca do tapete. Sentou-a na cadeira.

Endireitou o tapete com o pé. Apesar de tudo saiu feliz do quarto da Finoca.

— Então?

— Sem febre.

— Não era sem tempo. O Zizinho já se levantou?

Deu de varrer desesperadamente. Orozimbo olhava sentado com os cotovelos fincados nas pernas e as mãos aparando o rosto. Os chinelos de Cornélia eram de pano azul e tinham uma flor bordada na ponta. Vermelha com umas coisas amarelas em volta. Antes desses que chinelos ela usava mesmo? Não havia meio de se lembrar. De pano não eram: faziam nheque-nheque. De couro amarelo? Seriam?

— Como eram aqueles chinelos que você tinha antes, hem, Cornélia?

— Por que você quer saber?

— Por nada. Uma ideia. Diga.

— Não me lembro.

Está bem. Levantou-se. Espreguiçou-se. Deu dois passos.

— Onde é que vai?

— Ver se o Zizinho está acordado.

Cornélia opôs-se. Deixasse o menino dormir, que diabo. Só entrava no serviço às onze horas. Tinha tempo. Depois a Aurora estava lavando a cozinha. Molhar os pés logo de manhã cedo faz mal. Quanto mais ele que vivia resfriado. Não fosse não.

— Vou sim. Tem de me fazer um serviço antes de sair.

Cornélia ficou apoiada na vassoura rezando baixinho. Prontinha para chorar. E ouvia as sacudidelas no trinco. E os berros do marido. Depois o silêncio sossegou-a. Recomeçou a varrer com mais fúria ainda.

Orozimbo entrou judiando do bigode. Deu um jeito no cós das calças e arrancou a vassoura das mãos da mulher.

— Que é isso, Orozimbo? Que é que há?

— Há que o Zizinho não dormiu hoje em casa e há que a senhora sabia e não me disse nada!

— Não sabia.

— Sabia! Conheço você!

— Não sabia. Depois ele está no quarto.

— A chave não está na fechadura!

— Então já saiu.

— E fechou a porta! Para quê, faça o favor de me dizer, para quê?

Então Cornélia puxou a cadeira e atirou-se nela chorando. Orozimbo andava, parava, tocava piano na mesa, andava, parava. Começava uma frase, não concluía, assoprava a ponta do nariz, começava outra, também não concluía. Parou diante da mulher.

— Não chore. Não adianta nada.

Depois disse:

— Grande cachorrinho!

E foi pôr o paletó.

Cornélia enxugou os olhos com as mãos. Enxugou as mãos na toalha da mesa. Ficou um momento com o olhar parado na Ceia de Cristo da parede. Muito cautelosamente caminhou até o quarto do Zizinho. Tirou a chave do bolso do avental. Abriu a porta. Começou a desfazer a cama depressa. Mas quando se virou deu com o Zizinho.

— Ah seu... Onde é que você andou até agora?

— Quem? Eu?

— Quem mais?

— Eu? Eu fui a Santos com uns amigos...

— Você está mentindo, Zezinho.

— Eu, mamãe? Não estou, mamãe. Juro. Vá jurar para seu pai.

Zizinho tirou o chapéu. Sentou-se na cama. Esfregava as mãos. Maria olhava para ele sacudindo a cabeça.

— Por que que a senhora mesma não explica para papai, hem? Faça esse favorzinho para seu filho, mamãe.

Disse que não e deixou o filho no quarto bocejando.

Orozimbo quando soube da chegada do Zizinho quis logo ir arrancar as orelhas do borrinha. Mas ameaça ir — resolve ir depois, resolve ir mesmo — precisa ficar por causa das lágrimas da mulher, precisa dar uma lição no pestinha — a raiva vai diminuindo: não foi. Seja tudo pelo amor de Deus. Depois se o menino virasse vagabundo de uma vez, apanhasse uma doença, fosse parar na cadeia, ele não tinha culpa nenhuma. A culpa era todinha de Cornélia. Ele, o pai, não queria responsabilidades.

— Você não almoça?

— Vou almoçar com o Castro. Eu lhe disse ontem.

— Tem razão.

— Mas não se acabe dessa maneira!

— Não. Até logo.

— Até logo.

Zizinho jurou que outra vez que tivesse de ir para Santos com os amigos avisava os pais nem que fosse à meia-noite. E Cornélia estalou uns ovos para ele. Estavam ali na mesa satisfeitos porque tudo se acomodou bem.

— A senhora não come?

— Não. Estou meio enjoada.

Finoca de vez em quando levantava um gemido choramingado no quarto e ela corria logo. Não era nada graças a Deus. Coisas da moléstia.

Antes de sair Zizinho fez outra promessa de cigarro aceso: assim que chegasse na Companhia iria pedir perdão ao pai. Daria esse contentamento ao pai.

Tudo se acomodou tão bem. Cornélia ajudada pela Aurora pôs a Finoca na cadeirinha de rodas.

— Mamãe leva o benzinho dela no sol.

Costurar com aquela luz nos olhos.

— Mamãe, leia uma história pra mim.

Livro mais bobo.

— É melhor você brincar com a boneca.

— Não, mamãe. Eu quero que você leia.

A formiguinha pôs o vestido mais novo que tinha e foi fiar na porta da casa. Fiar criança brasileira não sabe o que é: a formiguinha toda chibante foi costurar na porta da casa dela. O gato passou e perguntou pra formiguinha: Você quer casar comigo, formiguinha? A formiguinha disse: Como é que você faz de noite?

— Miau-miau-miau!

— Viu? Você já sabe todas as histórias.

— Mas leia, mamãe, leia.

A costura por acabar. Tanta coisa para fazer. Um enjoo impossível no estômago. A formiguinha preparou as iguarias ou as iguarias?

Aurora ficou toda assanhada quando viu quem era.

— Ó Dona Isaura! Como vai a senhora, Dona Isaura?

— Bem. Você está gorda e bonita, Aurora.

— São seus olhos, Dona Isaura! Muito obrigada!

O vestido vermelho foi furando a casa até o terraço do fundo. Não quis sentar-se Era um minuto só. Mexia-se. Virava de uma banda. De outra.

— Eu vim lhe pedir um grande favor, Cornélia.

Aurora encostada no batente da cozinha escutava enlevada.

— Vá fazer seu serviço, rapariga!

Não foi sem primeiro ganhar um sorriso e guardar bem na cabeça o feitio do vestido. Atrás principalmente.

— Você não imagina como estou nervosa!

— Mamãe como vai?

Vai bem. Mas não é mamãe não. É a Isaurinha. Você não pode imaginar como a Isaurinha está impertinente, Cornélia. É um horror! Quase me acaba com a vida! Hoje de manhã não quis tomar o remédio. E agora às duas horas tem que tomar justamente aquele que ela mais detesta. Só em pensar, meu Deus!.

Até Finoca sorria com a boneca no colo. Isaura abriu a bolsa e passou uma revista demorada no rosto e no chapéu levantando e abaixando o espelhinho.

— Titia está muito bonitinha.

Virou-se de repente, fechou a bolsa e fez uma carícia na cabeça da menina.

— Que anjo! Olhe aqui, Cornélia. Eu queria que você por isso me fizesse a caridade (olhe que é caridade) de dar daqui a pouco um pulo lá em casa. Isaurinha com você perto toma o remédio e fica sossegada. Tem uma verdadeira loucura por você, não compreendo!

Cornélia que estava implicando com a toalha de banho ali no terraço levantou-se, pegou a toalha, dobrou, chamou a Aurora, mandou levar a toalha no banheiro. Aurora foi recuando até a sala de jantar.

E você, Isaura, onde se atira?

— Eu? Ah! Eu vou, imagine você, eu tenho cabeleireiro justamente às duas horas. Mas você me faz o favor de ir ver a Isaurinha, não faz?

— E a Finoca?

Isaura deu logo a solução:

— Você leva na cadeira mesmo. Põe no automóvel.

— Que automóvel?

Pensou em oferecer o dinheiro. Mas desistiu (podia ofender, Cornélia é tão esquisita) e disse:

— No meu! Ele me leva na cidade, depois vem buscar vocês.

— Está bem.

Deixaram a menina no terraço e foram para o quarto de Cornélia. Isaura estava entusiasmada com a companhia de revistas do Apolo. Cornélia não podia imaginar. Que esperança. Nem Cornélia nem ninguém. Só indo ver mesmo. Era uma maravilha. Na última peça principalmente tinha um quadro que nem em cinema podiam fazer igual. Toda a gente reconheceu. Chamado No Reino da Quimera. Quando a cortina se abria aparecia um quarto iluminado de roxo (uma beleza) com uma mulher quase nua deitada num sofá e fumando num cachimbo comprido. Bem comprido e fino. Era um tango: Fumando espero. Há? Que lindo, hem? Depois entrava um homem elegantíssimo com a cara do Adolfo Menjou. Mas a cara igualzinha. Uma coisa fantástica. Outro tango (bem arrastado): Se acabaron los otarios.

Cornélia passou a mão na testa, caiu na cadeira diante do toucador.

— Que é que você tem?

— Nada.

Um ameaço de tontura.

— Você não almoçou?

— Não. Nem cheiro da comida eu suporto...

Isaura olhou bem para a irmã. Teve pena da irmã.

— Será possível, Cornélia?

Levantou a testa da mão. Deixou cair a testa na mão.

Então Isaura não se conteve e começou a dar conselhos em voz baixa. Não fosse mais boba. Havia um meio. E mais isto. E mais aquilo. Não tinha perigo não. Fulana fazia. Sicrana também. Ela Isaura (nunca fez, não é?) mas se precisasse faria também, por que não? Ninguém reparava. Pois está claro. Religião. Que é que tem religião com isso? Estarem ali se sacrificando? Não.

Mas Cornélia ergueu o olhar para a irmã, fez um esforço de atenção:

— Não é o choro da Finoca?

Não era. Parecia que sim. Era sim. Não era. Era no vizinho.

— E então?

— Isso é bom para as mulheres de hoje, Isaura. Eu sou das antigas...

Insensivelmente a gente abaixa os olhos.

Está bem. Desculpe. Não se fala mais nisso. Até loguinho, Cornélia. Eu mando o automóvel já. Até loguinho. E muito obrigada, sabe:

A irmã já estava longe quando ela respondeu devagarzinho:

— Ora... de nada...

Fonte:
Iba Mendes.

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