sexta-feira, 21 de junho de 2019

Antônio de Trueba (A Portaria do Céu)


I

O tio Paciência era um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava honradamente o pão de cada dia, mete que mete a sovela e puxa que puxa o fio, em um portal de Madrid, e devia o apelido por que era conhecido à resignação com que sempre tinha sofrido os muitos trabalhos, que o Senhor lhe havia dado.

Ao tempo da constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou dezesseis anos, mas tinha a inocência de uma criança de oito, e como ouvisse a cada passo dizer que todos os homens eram iguais, perguntou ao mestre se aquilo seria verdade.

— Não acredites nessas coisas, lhe respondeu o mestre. Só no céu é que os homens são iguais.

Sentiu o rapaz que não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se com a ideia de que o eram no céu, e quando algum freguês da loja convidava o mestre para beber uma pinga na taberna próxima, dizia com os seus botões o pobre aprendiz:

 — Pena é que não sejamos todos iguais na terra, como sucede no céu, porque se assim fosse, por certo que o freguês me não diferençaria do mestre, e, como ele, iria eu também agora à taberna beber a minha pinga; mas, acabou-se... paciência... no céu seremos todos iguais.

Passados dois anos, coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais do que nunca teve ele motivo para lamentar que os homens não fossem iguais na terra como no céu, por isso que na sua companhia havia soldados distintos, e cabos, sargentos e oficiais, que provavam ser verdade aquilo que o mestre lhe tinha dito acerca da igualdade humana; porém consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no céu se acabariam as distinções, e todos seriam iguais.

Deixou de servir o rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do ofício de sapateiro, estabeleceu-se num portal, e ali passou o resto dos seus dias, conformando-se com as privações que sofria, na esperança de ir para o céu e gozar então dessa igualdade, que não encontrara na terra.

No andar nobre da casa, cujo portal ocupava, vivia um marquês, que por certo muito o houvera magoado com o espetáculo da sua opulência, se não fora um excelente homem, e a não ser tamanha a sua paciência, e sobre tudo tão arraigada no seu coração a esperança de lhe poder dizer um dia no céu: “meu amiguinho, aqui todos nós somos iguais.”

Não era porém só o marquês que lhe fazia sentir, que não fossem todos os homens iguais na terra; até os seus amigos mais íntimos queriam diferençar-se dele. Estes amigos eram o tio Mamerto e o tio Macário, homens de tão boa conduta, que não podia o tio Paciência viver sem a sua honrada companhia.

O tio Mamerto tinha uma paixão desenfreada pelos touros, e passava por ser muito entendido em matéria tauromáquica.

Quando, no reinado de Fernando VII, se criou uma escola para ensinar esta ciência, esteve o bom do homem quase a ser nomeado lente catedrático da faculdade, e este precedente era o bastante para que ele se considerasse superior ao tio Paciência, o qual, reconhecendo esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu querido amigo e ele não eram iguais na terra, o seriam por certo no céu.

O tio Macário era muito feio, mas casou com uma mulher lindíssima, porém levadinha da breca.

Ao cabo de vinte anos de um viver amargurado, morreu-lhe o demônio da mulher, e o pobre homem ficou tão descansado que lhe parecia ter entrado no céu; passados tempos, enamorou-se de outra rapariga, que não ficava a dever nada à primeira, e casou segunda vez, apesar de todos os esforços que o seu amigo, o tio Paciência, fez para lhe tirar isso da cabeça. Ora, como o tio Paciência nunca tinha conseguido que as mulheres se agradassem dele, ao passo que do tio Macário se agradavam aos pares, julgava este ter certa superioridade sobre o primeiro, que, da sua parte, não deixava também de a reconhecer, e que deveras se teria afligido com isso, se não fora a lembrança de que o seu bom amigo e ele seriam iguais no céu, já que na terra o não podiam ser.

O tio Mamerto era capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a uma corrida de touros; tanto assim, que até costumava dizer: “Parece-me que trocava de bom grado a glória eterna por uma boa tourada”, ao que o tio Paciência replicava sempre, agastado: “Homem, não digas heresias, que não vá Deus castigar-te.”

Um dia em que os pássaros caiam das árvores, assados pelo sol, havia em Getafe uma corrida de garraios; o tio Mamerto, foi vê-los, à pata, segundo o seu costume, e, de volta a casa, acamou com uma febre, que o levou desta para melhor vida.

No mesmo dia estava muito mal, na cama, o tio Macário, por causa de uma tremenda coça que a mulher lhe tinha dado, porquanto se a primeira mulher lhas dava grandes, a segunda não lhe ficava atrás. A mulher, que nunca perdia a ocasião de lhe comunicar uma boa notícia, deu-se pressa em lhe participar, que o tio Mamerto tinha esticado a canela, e ouvindo isto, o pobre Macário, que já não estava para muitos sustos, esticou também a sua.

Como eu já disse, não podia o tio Paciência viver sem os seus dois amigos, porque lhes queria muito. Estranhando que, em todo o dia, eles lhe não tivessem aparecido para palestrar um pouco e fumar um cigarro na sua companhia, quando à noitinha deixou o trabalho, foi procurá-los, e soube então que ambos tinham morrido. Essa notícia causou-lhe um abalo enorme, e, naquela mesma noite, tomou atrás deles o caminho do outro mundo, com a grande consolação de que ia finalmente para onde todos os homens eram iguais.

Toda a vizinhança sentiu muito a morte do tio Paciência, pois todos depositavam tamanha confiança na sua honradez e no seu caráter dócil e serviçal, que, quando careciam de trocar algumas notas do banco de Espanha, encarregavam disso o tio Paciência, que era capaz de morrer arrebentado, para dar conta da incumbência.

Na manhã seguinte à morte dos três amigos, o bruto do criado particular do marquês, quando entrou no quarto, teve a imprudência de dizer a seu amo que o sapateiro do portal morrera, ao saber que dois amigos seus tinham faltado quase de repente. E como o marquês era um fidalgo muito apreensivo, e corriam uns certos rumores de cólera em Madrid, assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do criado, que, poucas horas depois, era cadáver, com grande desgosto da pobreza do bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: “Estes homens, assim, nunca deviam morrer.”

II

O tio Paciência empreendeu a jornada do céu, muito contente com a esperança de gozar da glória eterna, de viver em um mundo onde todos os homens eram iguais, e finalmente de encontrar ali os seus queridos amigos Mamerto e Macário. Com relação porém a este último pensamento não deixava ele de ter suas dúvidas, porque dizia lá para os seus botões:

 — E se lhe não querem abrir as portas do céu?! Eles foram sempre homens de bem às direitas; mas o demônio da paixão de Mamerto pelos touros, e a tolice do Macário de casar segunda vez, tendo-se saído tão mal da primeira, fazem-me recear que lhes deem com a porta na cara.

Para sair um tanto de dúvida, perguntou a um viandante se tinha visto passar por ali dois sujeitos, com estes e aqueles sinais; e como ele lhe respondesse afirmativamente, prosseguiu o tio Paciência no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.

O caminho do céu era escabroso e áspero, e essa era por certo a razão porque nele se não encontrava senão gente pobre e habituada à fadiga.

Impressionado o tio Paciência por não ver nenhum figurão, entre tantos caminhantes, dizia, de si para si:

— Não admira que os homens ricos não façam esta viagem, porque teriam de fazê-la no cavalinho de São Francisco. Se pudessem empreendê-la de carruagem, os diabos me levem, se não víamos por aqui mais trens do que no Prado e na Fonte Castelhana.

O tio Paciência interrompeu as suas reflexões ao ver aproximar-se, vindo do lado do céu, um homem, que chorava como um bezerro, e dava mostras da maior desesperação. Era nada mais nem nada menos do que o tio Mamerto.

O tio Paciência sentiu uma pancada no coração, anunciando-lhe alguma desgraça, quando reconheceu o seu amigo.

 — O que tens tu, homem? perguntou ele ao tio Mamerto.

 — Que demônio hei de eu ter! Se eu não fosse um bruto, como não há segundo, não me fechavam para sempre as portas do céu!

 — Mas então como foi isso? explica-te com a breca, que me tens o coração em talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão pelos touros.

— Parece-me que concorreu.

 — Vamos, por quem és, conta-me o que se passou.

 — Cheguei à portaria do céu, e encontrei ali uma porção de gente, que estava à espera de vez para entregar os passaportes para o outro mundo. O porteiro, que visava os papéis, com a sua grande calva à mostra, e o seu molho de chaves na mão, levava a coisa com toda a pachorra, e moía-os com perguntas, primeiro que permitisse a entrada. Eu, que, como é bem natural, estava morto por me ver lá dentro, disse com os meus botões: — Este velho, com os seus vagares, é capaz de me conservar aqui de fora até à noite. Pois deixa estar, que se te pilho distraído, atiro comigo lá para dentro, ainda que depois me cortes uma orelha, como fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar neste expediente, quando vejo o porteiro armar uma questão com um pobre diabo, a quem não deixava entrar, com o pretexto de ter sido apaixonado de touros. Aí temos nós os touros! disse eu, ao ver aquilo. O velhote é capaz de me fazer esperar uma eternidade, e por fim, se chega a saber que também fui afeiçoado às touradas, nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E que faço eu? Assim que o porteiro deu uma volta: zás! raspo-me lá para dentro. Já dava graças a Deus pela minha resolução, e vai senão quando o porteiro, dá-lhe na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece que lhe falta um.

— Falta-me aqui um! grita enraivecido, e aposto uma orelha que não é senão o madrileno. Ou ele não fosse de Madrid, o maroto, que se escoou lá para dentro como um gato: deixa estar que já vamos ajustar contas!

— Ó meu senhor, disse da banda um adulador, que tinha assim jeitos de cortesão, quer que eu lho saque de lá para fora por uma orelha?

— Deixemos-nos de orelhas, respondeu o velhote; e chamando uns músicos, a quem falava com muito agrado, porque parece que lhe tinham sido recomendados por Santa Cecília: Toquem lá a música da saída do touro!

Os músicos começam de tocar, e eu (sempre sou muito bruto!) ao ouvir aquele toque, julgo que há corrida de touros na portaria, e saio muito lépido a vê-la; de repente, o porteiro fecha a porta e deixa-me ficar de fora, com uma cara de palmo e meio, dizendo-me:

— Vá já para o inferno, seu meliante, que uma paixão por touros como essa, não pode Deus perdoá-la.

E aqui tens tu, querido Paciência, como eu vou caminho do inferno por causa da minha maldita mania pelas touradas!

O tio Paciência prorrompeu em amargo pranto ao ver a infelicidade do seu velho amigo, e esteve quase a pregar-lhe um sermão, mas não o fez por se lembrar de que era pregar no deserto; ambos continuaram, por último, o seu caminho; o tio Paciência o do céu, que era costa acima, e o tio Mamerto o do inferno, que era costa abaixo.

 — Querem ver que também me acontece alguma na portaria? O tal senhor porteiro tem um geniozinho endemoninhado!

Isto dizia o tio Paciência, seguindo sempre o seu caminho, quando avistou outro homem, que vinha do lado do céu. Este não se carpia, nem se arrepelava; trazia porém a cabeça baixa, e denotava profunda tristeza.

 — Esperem! disse o tio Paciência. Os diabos me levem se aquele não é o tio Macário! Pois quê? Não é senão ele!

Com efeito, o tio Macário era o da cabeça baixa.

Os dois amigos abraçaram-se comovidos.

 — Tu por aqui, Paciência! disse o tio Macário. Para onde vais, homem?

 — Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o céu.

 — Duvido muito que lá entres.

 — Então por quê?

 — Porque é dificílimo entrar lá.

 — E em que consiste a dificuldade?

 — Consiste em ser o porteiro o velho mais caturra, que eu tenho visto. E para prova, basta o que se deu comigo.

 — Conta depressa.

 — Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, à porta; chamamos, e aparece-nos o porteiro, com a sua grande calva e o competente molho de chaves na mão.

— Que é o que querem? pergunta ele.

— Essa não está má! o que havemos nós de querer senão entrar?

— Você é casado ou solteiro? pergunta o velho ao meu camarada.

— Casado, responde o tal sujeito.

— Nesse caso pode entrar, que basta essa penitência para um homem ganhar o céu; e isto por maiores que sejam os pecados, que haja cometido.

E o meu companheiro entrou lá para dentro.

— Cáspite! disse eu com os meus botões; se aquele ganhou o céu por se ter casado uma vez, com mais razão o devo eu ter ganho por me haver casado duas. E larguei atrás do meu companheiro.

— Onde vai o senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha.

— Homem, o senhor deve estar farto de o saber! Vou para o céu.

— É casado ou solteiro?

— Casado duas vezes à falta de uma.

— Duas vezes?!

— Sim, senhor, duas vezes.

— Pois vá para as profundas do inferno, que tolos desse lote não têm entrada no céu.

E aqui vou eu, amigo Paciência, caminho do inferno! São coisas que só a mim acontecem!...

 — É bem feito, disse o tio Paciência, entre compadecido e indignado da parvoíce do seu amigo. Não te dizia eu que não podia obter perdão de Deus quem duas vezes se casasse?

O tio Paciência já não ia muito satisfeito e tranquilo, ao aproximar-se das portas do céu, porque as notícias que recebera do geniozinho do tal porteiro, eram, na verdade, para intimidar o mais pintado.

 — Vamos, tio Paciência, dizia ele, é preciso que não desmintas, nesta ocasião, o apelido que te puseram, porque, se consegues catequizar o porteiro, colas-te lá dentro, e depois é que já ninguém te dá volta. O velhote é esquisito de gênio, caturra e curioso como todos os porteiros... Mas também, deve a gente lembrar-se de que o pobre do homem é tão velho, que já não pode com os calções, e devemos ser indulgentes para com os velhos como para com as crianças, porque os extremos tocam-se. Demais, a paciência é uma virtude, que o próprio Jesus recomendava ao apostolo São Pedro, como se vê da seguinte cantiga:

Era São Pedro na calva
perseguido do mosquito,
e o Mestre lhe dizia:
 — Tem paciência, Periquito!

Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciência as portas do céu, e estremeceu de alegria, lembrando-se de que estava já a meio quilômetro de Distância do mundo onde todos os homens eram iguais.

Chegou finalmente à portaria, e viu que não havia lá viva alma, o que deveras lhe agradou, porque assim não se expunha a morrer arrebentado, como quando ia trocar notas ao banco de Espanha.

Deu uma aldrabada pequena na porta, e um velho, que não tinha um pelo na cabeça, abriu o postigo e perguntou-lhe:

 — O que quer você daqui?

— Ora, o Senhor lhe dê muito boas noites, lhe tornou o tio Paciência, com a maior humildade, tirando o chapéu. Como passou? Passou bem?

 — Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria o senhor?

 — E a senhora e os meninos estão de saúde?

 — Homem, despache daí, diga o que quer.

 — O senhor não tem senão desculpar... mas... nada... eu... vinha ver se o senhor me deixaria entrar.

 — Sente-se aí, nesse banco, e espere que venha mais gente, que não se pode andar sempre a abrir e a fechar esse maldito portão, que é mais pesado que um marido jogador.

 — Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de perdoar.

 — Não há de quê.

O velhote fechou o postigo, e o tio Paciência, a quem as últimas palavras, que ouvira, deram alma nova, sentou-se num banco, e começou o seguinte solilóquio, para passar o tempo:

— O tal senhor porteiro é realmente um grande caturra. Quem diabo podia supor que o homem se esquentaria por eu o cumprimentar como Deus manda! Mas apesar de ter o gênio um tanto assomado, bem se conhece que é um santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no banco da paciência.

Estava o tio Paciência entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo uma tremenda aldrava na porta, que por pouco a fazia em hastilhas, ergueu a cabeça, e viu então que a pessoa, que com tanta arrogância chamava, era nem mais, nem menos, que o seu vizinho marquês.

 — É melhor bater com a cabeça! gritou de dentro o porteiro, ao ouvir aquele barulho. Quem é o bruto que chama assim?

 — O excelentíssimo senhor marquês de Pelusilla, grande de Espanha de primeira classe, cavaleiro de todas as ordens criadas e por criar, senador do reino, etc., etc.

Mal isto ouviu, o porteiro abriu de par em par a porta, quebrando pelo espinhaço com muitas reverências, e exclamando:

— Perdoe vossa excelência se o fiz esperar algum tempo, mas... é que eu não supunha, que tivéssemos por cá tamanha honra. Queira vossa excelência entrar, que, pela balburdia que lá vai por dentro, é de crer que já tenha corrido a notícia de que temos por estes bairros o cavalheiro mais ilustre e mais rico de toda a Espanha.

Com efeito o céu estava alvoroçado com a chegada do marquês, para o qual começava a improvisar-se uma recepção esplêndida. Repicavam os sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas as direções; já não havia uma varanda, nem uma janela de onde não pendesse um cobertor de damasco, ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa. As imprensas vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquês; os garotos esganiçavam-se todos a dar vivas a sua excelência; as virgens largavam a costura, e vestindo-se de branco, e pondo na cabeça a sua grinalda de flores, lançavam mão da lira, e tocavam e cantavam como desesperadas; desde as charangas das ruas até a orquestra do teatro real, todas as músicas faziam ouvir as suas harmonias; em suma, era tudo festa, júbilo e regozijo. Até o próprio porteiro, quando voltou a fechar a porta, deu um pulo de contente, exclamando:

 — Bravíssimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao ar!

 — Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por entre os dentes o tio Paciência, indignado com o que estava presenciando.

Repetiam-se lá por dentro as manifestações de alegria, e o estrondo dos festejos, e o tio Paciência, que assistia àquele entusiasmo, continuava nestes termos o seu solilóquio:

— E esta!... Ainda me custa a acreditar o que por aqui vai com a chegada do marquês! Com que, passo toda a minha vida a sofrer com santa paciência os trabalhos e humilhações da terra, imaginando que no céu todos os homens são iguais, e que, por conseguinte, me verei aqui livre de todos os meus pesares e apoquentações, e no fim de contas, chego às portas do céu e recebo logo a prova mais irritante de desigualdade, que pode imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim, porque sou um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, à espera na portaria, e ao marquês, só porque é marquês e rico, e por vir carregado de cruzes e calvários, abrem-se-lhe, de par em par, as portas, e recebem-no com repiques de sinos, com foguetes, músicas, versos, e colchas de seda nas janelas!... Isto realmente é para fazer ferver o sangue nas veias a um santo!... Porém, paciência, senhor Paciência!... Se consigo afinal entrar lá para dentro, o que já me vai parecendo bem difícil, posso reputar-me feliz, porque ali deve passar-se divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho deu passagem ao marquês, e pela baforada, que sai, quando abrem ou fecham a porta ou o postigo.

O barulho que este fez ao abrir-se, tirou o tio Paciência das suas meditações; fez-se ver a calva do porteiro, o qual vinha examinar se já havia gente reunida, à espera, na portaria.

 — O que faz você aí? perguntou o porteiro, reparando no tio Paciência.

 — Senhor, respondeu humildemente o tio Paciência, estava esperando...

— Se as lebres esperassem tanto!...

 — Como o senhor não aparecia...

 — Tem razão, tem... são tantas as coisas em que tenho que pensar, que de todo se me varreu da ideia... Eu vou já abrir, amigo. Ora!... mas porque não chamou por mim, homem de Deus?!...

 — O senhor bem vê que... como sou um pobre sapateiro...

 — Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no céu todos os homens são iguais.

 — Deveras?! exclamou o tio Paciência, dando um salto de alegria.

 — Pois, então!... Não faltava mais nada senão andarmos aqui com categorias! Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para dentro.

O porteiro nem por isso abriu toda a porta, como quando entrou o marquês, mas o suficiente para que pudesse passar um homem. O tio Paciência acercou-se da cancela, lançou um relancear d'olhos lá para dentro, e deteve-se ali, dolorosamente surpreendido. As virgens não largavam a costura, nem os rapazes saíam da escola; não havia uma triste sineta que tocasse; os foguetes não rasgavam as nuvens; as músicas não deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre colcha de chita adornava as janelas, nem tampouco as imprensas vomitavam versos!...

O porteiro, que não tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto do tio Paciência, e acudiu a desvanecê-lo, dizendo-lhe:

 — Que quer isso dizer, homem? Então fica para aí pasmado, em vez de entrar cá para dentro?.

 — Não me disse o senhor, ainda há pouco, que no céu todos os homens eram iguais?

 — Disse, sim senhor, e daí?...

 — Então... como é que ao marquês...

 — Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois não leu na sagrada escritura, que é mais fácil entrar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico no céu?...

 — Não, senhor, não sabia isso.

 — Pois pode acreditar que é a pura verdade. Sapateiros, ferreiros, lavradores, mendigos, gente, em suma, farta de trabalhar e de padecer, chega aqui a todo o instante, e não temos que estranhar a sua chegada. Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; passam-se séculos sem vermos o focinho a um figurão, como esse que veio hoje, de modo que, quando algum nos aparece por cá, anda tudo numa poeira! Ora, venha, ande lá para dentro, que já é tempo de descansar.

O tio Paciência transpôs o limiar da porta, e não podendo com a alegria, que o dominava, caiu de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para o Senhor, que saia ao seu encontro:

 — Senhor! Bendito sejais vós, que dais a bem-aventurança eterna aos que padecem na terra!

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