quarta-feira, 5 de junho de 2019

Carolina Ramos (O Cachorro)


— É assim mesmo. Eu saio arrastando o meu cachorro pela coleira e ele anda que é uma beleza! Quando, às vezes, parece cansado, e tomba para o lado, dou-lhe um chute na barriga e ponho-o de pé, num instante. Não raro, quando se ressente de alguma coisa, emperra, fica pesado e guincha como um mico ou gane como cão hidrófobo! Então, viro-o de patas para cima e resolvo a questão. Depressinha, acaba a chiadeira e a ganição. O bicho desliza manso, sem mais criar problemas.

Se alguém se sentisse escandalizado com as palavras de dona Rosa, que sossegasse. Dona Rosa não era nada do que insinuava ser ou do que se pensasse que fosse. Aquela figurinha miúda, algo roliça, alegre, não tinha nada de desalmada. Incapaz de maltratar qualquer animal, até que amava os bichos. Não era à-toa que seu quintal vivia cheio de gatos, de cães vadios que, sem atritos, vinham atrás de sobras, preferindo sua casa a qualquer outra da vizinhança.

A cena descrita com veemência pela mulher, muda completamente de feitio, tão logo se saiba que o "cachorro" arrastado pela "coleira" curta, nada mais era que o "malão" tamanho família, que acompanhava a dona em suas múltiplas viagens, tirado pela alça. O malão, sim! Aquela mala grandona, à qual dona Rosa chamava, carinhosamente, de "cachorro". Quando tombava cansado, recebia aquele pé na barriga, ou pernada com o lado do pé, que acertava em cheio no âmago, equilibrando o peso descentralizado pela queda. A "chiadeira”? A "ganiçâo”? — Nada mais que uma rodinha emperrada, que se negava estridentemente a continuar a marcha e posta a funcionar de imediato, com manobras que dona Rosa conhecia de sobejo.

Aí está. As aparências nem sempre condizem com a verdade. E as palavras podem ter duas faces, mudando inteiramente a feição dos fatos.

Dona Rosa gostava dessa confusão. Divertia-se com ela. Pela sua simpatia, era querida no bairro. Quando vista com o malão preso à coleira, sempre havia alguém, solícito, pronto a tentar aliviar-lhe o peso. E a recusa não se fazia esperar.

— Deixe disso. Minha mala não pesa nada. É cachorrinho ensinado. Às vezes, até é ele quem me puxa. É só encontrar um declivezinho e assume, lépido, a dianteira, me forçando a domar-lhe a afoiteza. .

— E, então, lá se vai a senhora de passeio, outra vez?! Deixe estar, que tem rodinhas nos pés... o que não é nada mau...

— É isso mesmo, seu Luiz. E ai de mim se assim não fosse! Com um filho em cada canto, enredados nos seus mundos, que seria de mim enfiada dentro de casa? O jeito é me largar por aí, puxando meu "cachorrinho". Tenho casa aberta aonde quer que eu vá... e vou mesmo! Uma hora, pra Minas... outra, pra São Paulo... Ceará... ou pra onde um filho manda dizer que montou moradia. Não demora nadinha e estou apontando por lá. E não meço sacrifícios!

E não media mesmo! Dona Rosa já não era tão nova, mas, não era tão velha assim, que tivesse que medir fôlego. Enquanto o tivesse, poderiam apostar, como certo, encontra-la, com frequência, na trilha de um ônibus, puxando seu "cachorro". Voltava em poucos dias, remoçada. Cansada, sim, mas, já de olhos perdidos no horizonte, tramando a próxima partida. Também, o que poderia desejar uma professora aposentada, viúva, e sem maiores compromissos?

Naquela manhã nublada, dona Rosa bateu o portão, trancando-o. Vestia roupa, inconfundível, de viagem uma daquelas calças compridas de tergal, renovadas amiúde, por não aguentarem por muito tempo a ralação que a dona lhes impunha. Blusa solta, bolsa a tiracolo, recheada, como empada, de mil e um pertences, confessáveis e inconfessáveis, indispensáveis à comodidade de uma mulher em trânsito.

Já andara meia quadra, quando lembrou-se que esquecera algo de muito importante, o "walkman". Habituara-se a viajar com música e não dispensava esse prazer. A princípio, constrangera-se de usá-lo, como qualquer adolescente. Logo, acostumara-se. Era acomodar-se na poltrona do ônibus e lançar mão dele. Aquela gostosura... relaxante! Interrompida, apenas, pela perseguição às estações que escapavam, vencidas pela distância e substituídas por outras não buscadas.

Dona Rosa consultou o relógio escondido sob a manga. Cedo ainda. Tinha já a passagem na bolsa, comprada com antecedência. Tempo de sobra.

Deu meia volta, resolvida a recuperar o objeto esquecido. Tomado de surpresa, o "cachorro" emperrou. Arrastado, deu início à ganiçâo. Tombou de lado, Um puxão na coleira pô-lo de pé. Agredido pelo chute disciplinador, equilibrou as entranhas.

Aberto o portão e a porta, mais adiante, o malão foi deixado na área, obediente, à espera.

O "walkman" estava logo ali, bem à mão, sobre a mesa, onde esquecido.

O que a senhora, de calças de tergal, bolsa a tiracolo e rodinhas nos pés, não esperava jamais, é que seu "cachorro", sempre obediente, resolvesse fazer das suas, vingando-se, quem sabe, das pernadas, volta e meia, recebidas. A deslizar, mansamente, pela área em ligeiro declive, o malão insinuou-se, portão afora, saltou o meio fio e foi gazetear no meio da rua.

O guincho dos pneus e o baque, quase simultâneos, alarmaram dona Rosa, que acudiu apressada, esquecendo, uma vez mais, o aparelho sobre a mesa. Horrorizou-se, vendo, bem à sua porta, alguns curiosos atraídos pelo acidente. Lembrou-se do malão, só quando o viu esfacelado, mostrando, indefeso, as intimidades. Atropelado, o "cachorro" de estimação oferecia as entranhas ao bando de urubus que o rodeavam.

Por instantes, dona Rosa perdeu a ação.

A vítima foi reconhecida por alguém da vizinhança. Seu Luiz, sempre atento aos passos da vizinha, acudira prestativo, pondo termo às más intenções da molecada:

— É o malão de dona Rosa, gente! Deixem tudo aí.

— É minha, sim.,, a mala é minha! Meu Deus, como aconteceu isso? — A pilhagem foi interrompida.

Olhos úmidos, visivelmente transtornada, dona Rosa recolheu, uma a uma, as "tripas" do seu "cachorro", devolvendo-as ao "ventre" rasgado. Alguém, possivelmente seu Luiz, ajudou-a carregar o malão desengonçado para o interior da casa. No dia seguinte, o lixeiro levaria o corpo vazio, e com ele, a passagem superada.

Dona Rosa rejeitou um tantão de outros malões oferecidos pelos filhos. Todos eles bem superiores ao atropelado. "Cachorros de luxo", com "pedigree" garantido pela "griffe" do fabricante. Não quis nenhum. Passou a encarar o acidente como espécie de premonição do que lhe poderia acontecer. Retirou, dos pés, as rodinhas hipotéticas que a levavam de lá para cá, com cansaço às vezes, mas sempre feliz. Perdeu o gosto pelas viagens. E pela vida, também. Não mais a preocuparam as calças de tergal puídas pelo excesso de uso, nem os zipers das bolsas, rebentados continuamente, por sempre abusar deles. Deixou de olhar o horizonte e de correr atrás da aventura.

Até que um dia, sem saber como, embarcou para o desconhecido, sem "cachorro" de estimação... e sem passagem de volta.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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