terça-feira, 4 de junho de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Canário)


Casara-se havia duas semanas. E por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:

— Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.

— Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?

— Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá. 

O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:

— Vai, meu bem.

Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.

— Primeiro me tragam um vidro de éter e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.

Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.

E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver.

Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.

Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.

No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.

— Ui!

Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?

— Ele estava precisando mesmo era de éter — concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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