sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 5 -


O livro confere a chave
que abre a porta da Ciência.
É um sábio, sereno e grave,
que nos amolda a existência.
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Quem um livro tem à mão
guarda a chave do futuro.
É semente em gestação,
que dará fruto maduro.
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A mãe não exige paga.
É sempre luz que desponta.
E apenas quando se apaga
dela a gente se dá conta.
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Se tem pouco para dar,
a mãe é por certo quem,
para ao filho não faltar,
acaba ficando sem.
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As estrelas infinitas
que o céu misterioso encerra,
são olhos de mães aflitas,
velando os filhos na terra.
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Há quem fale de mulher
com menosprezo profundo,
sem mesmo pensar, sequer,
em quem o trouxe a este mundo...
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O pai é presença forte,
que mal nenhum intimida.
Defende o filho na morte,
como o defende na vida!
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Um erro não se acoberta;
quando a virtude periga,
há só ternura encoberta
na mão que ao filho castiga.
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É pequeno e vale tanto
para quem o trouxe ao mundo!
Um filho - sorriso e pranto -
é feito de amor profundo.
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O choro de uma criança
à luz do primeiro dia
é uma canção de esperança,
é a mais linda melodia!
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Não há ninguém neste mundo
que confesse a insegurança,
mas cada qual, bem no fundo,
é sempre a eterna criança!
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Num lugar do coração
habita sempre o menino
que faz bolhas de sabão
para iludir seu destino...
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A prisão é desconforto, 
ainda que em doce lar...
Se a família é mesmo um porto,
que ponha os barcos ao mar!
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Nos bons tempos de menina,
pula-se corda a valer.
Mais tarde - que triste sina! -
a corda nos vem bater.
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O mar inquieto é um menino.
Tempestuoso, é um rapaz.
Calmo, reflete o destino
do velho que encontra a paz.
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Vem o mar jogar-se aos pés
da penedia arrogante;
ela desdenha as marés
e namora o céu distante.
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Na vida, nem todos temos
lenitivo para o estresse...
É como um barco sem remos
em rio que avança e cresce!
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Estendendo os longos braços,
joga-se n'água o salgueiro.
Ela foge de seus laços.
Ele amarga o cativeiro.
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No mundo, certas pessoas,
para sua expiação,
por não serem mesmo boas,
basta ser mesmo o que são.
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A surpresa nos assusta;
o novo nos intimida.
No entanto, o que tanto custa
pode ser um bem na vida.
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Palavras não dizem muito;
atitudes dizem mais,
pois quem tem um bom intuito
mostra em seus atos leais.
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Por não lhe chegar à altura,
nem ter autoafirmação,
há sempre alguém que procura
jogar o próximo ao chão.
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Neste mundo, em que a disputa
é o que à vida dá sentido,
tem valor quem vence a luta,
mas sem pisar o vencido.
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Quem bate às costas da gente
procura, às vezes, lugar
para o punhal, simplesmente,
com mais firmeza enterrar...
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Inversos e tão diversos
são os destinos na vida...
Uns conquistam universos;
outros param na subida.

Fonte: CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009. Enviado pela Trovadora.

Virgínia Woolf (A dama no espelho: reflexo e reflexão)

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia–se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas, deitam para observar os animais mais tímidos - texugos, lontras, martins-pescadores — e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a sala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento, pétalas caindo - coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver olhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira de pedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro, estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho, pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicos alusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantes flamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões rajados de prata. E havia também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo por dois segundos juntos.

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho - aqui tudo mudando, e lá tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro.  Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transeuntes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

Meia hora antes a dona da casa, Isabella Tyson, tinha descido pela trilha de grama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pela moldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, como parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante folhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que se enroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxas e brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumado áster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam como lâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco se sabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquer mulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomada realmente por ramalhete ou gavinha. 

Tais comparações não são apenas vãs e superficiais - pior que isso, chegam até a ser cruéis por virem a se interpor tremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver uma verdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-a depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella; frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. No tocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; que comprara essa casa e com as próprias mãos juntara - não raro nos cantos mais remotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais — os tapetes, as cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dos olhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela do que a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos com tanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitas gavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maços amarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa. Pois outro fato - se eram fatos que se queria - é que Isabella conhecera muitas pessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abrir uma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitações sem conta, de compromissos a manter, de exprobrações para não ter feito, longas cartas de intimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavras finais de despedida - pois nenhum daqueles encontros e combinações de encontros levara a nada - ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pela indiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo de experiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores são trombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella, sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros, as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.

De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foram violentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra que eclipsou todo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas de mármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo. No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado. Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém, depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seu respeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las ao âmbito da experiência comum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinha trazido o correio.

Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípio pingando luz e cor, náo digeridas nem assimiladas. E era estranho então ver como se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte do quadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziam investidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de mais peso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, quer isso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente um punhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna — sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella, sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea, as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabella viria para os apanhar um a um, bem devagar, abri-los para ler com atenção, palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, como se ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos, amarrar as cartas juntas e fechar à chave a gaveta do armário, em sua determinação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.

Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida - mas não conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto e ocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeira ferramenta de que se dispunha - a imaginação. Nesse exato momento, era preciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava. Recusar-se a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasião produzia - por jantares e visitas e conversas polidas.

Era preciso pôr-se em sua pele, saber onde lhe apertava o sapato.  A se tomar literalmente a frase, seria fácil ver os sapatos nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento. Eram muito estreitos e compridos e à moda - feitos do mais macio e flexível couro. Como tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar na ponta dos pés, sob a alta cerca viva na parte mais baixa do jardim, erguendo a tesoura que trazia presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que crescera demais. O sol lhe bateria em cheio no rosto, nos olhos; mas não, no momento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressão de seus olhos - seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podia-se ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olhar para o céu. Ela estava pensando, talvez, que tinha de encomendar uma nova proteção para os morangueiros: que tinha de mandar flores à viúva de Johnson; que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesleys em sua nova casa. Dessas coisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava no jantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar e converter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para o corpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. A menção dessas palavras se tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinha muitos amigos; viajava - comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia. Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podar ramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.

Então, com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete de clematite, que caiu no chão. Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luz também, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura e remorso enchiam-lhe a essa altura o espírito... Podar um ramo que crescera demais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim e, ao mesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, que tudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrando-se a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinha tratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra e suavemente apodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficou pensando. Sem formular qualquer ideia precisa — porque era uma dessas pessoas cujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio -, via-se repleta de ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam e retrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas e abrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala, pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, e ela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seus armários. Falar de "abri-la à força", como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhe qualquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seria absurdo e ímpio. Era preciso imaginar ei-la que aparecia no espelho. E isso causava um sobressalto.

A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez. Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando um cravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-se maior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cuja mente só tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a examinava - ajustando as características que havia descoberto naquele corpo visível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta e algo que cintilava em seu pescoço.

Tão devagar ela vinha que nem parecia desarranjar a própria imagem no espelho, mas tão só lhe acrescentar algum elemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como se lhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e a mesa e a trilha de grama e os girassóis, que já se achavam à espera no espelho, apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá estava ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parou sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz que a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial e dispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de si caía - nuvens, vestido, cesta, diamante —, tudo que se havia chamado de trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos, Não se importava com ninguém. Quanto às suas cartas, não eram todas senão contas. Via-se, nisso que ela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e velada, com seu nariz empinado e estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.

Fonte: Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948. Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) - Capítulo 19: Reflexões

Quando Enila era criança, Vó Gorda sonhou que a menina poderia sofrer um acidente caso montasse cavalos. Por isso nunca montou. Ela não acreditava em previsões, menos ainda em previsões trágicas. Mas para não deixar seus pais preocupados, não montava. Só que naquele dia ela estava especialmente feliz. A data do casamento se aproximava, e na companhia do noivo, vindo de uma longa viagem junto de seu irmão, Bruno, ambos militares, se distraiu das preocupações que os pais tinham sobre a tal previsão, e montou. Primeiro, junto de Júlio, depois, sozinha. 

 Estou adorando – disse ela.

 Não te empolgues. Não estás acostumada – disse o noivo. 

 Vou treinar. E me assemelhar a uma amazona. Tu vais ver.

 O almoço está pronto – gritou Vó Gorda, da janela. 

– Mas, guria, desce desse animal, agora - ordenou. 

Enila obedeceu. E sorridente beijou seu amado. 

 Filha, não tem que ficar montando cavalos. Sossega.

 Calma, mãe, está tudo bem.

 Deixa a guria fazer algumas vontades – pediu o irmão com seu jeito despreocupado. 

 É, está tudo bem. Vamos almoçar em paz – disse o senhor Fiore.  

Vó Gorda recolheu em si, zangada. 

 Estou muito feliz. Hoje, Júlio me levou para ver a nossa futura casa. É tão bonita – disse Enila.

 Eu e seu pai passaremos lá mais tarde, minha filha.

 Ah, não deixem de ir... Já tem um jardim colorido e perfumado, pronto, e à nossa espera. 

Enila e Júlio passaram o resto do dia juntos, falando sobre o presente e sobre como seria viver futuramente num lar cheio de crianças.

 Eu quero ter cinco filhos. Quer dizer, três filhas e dois filhos homens – disse o noivo.

 É muito. Teremos um casal. – retrucou a prenda. 

 Enila, meu amor, quanto mais filhos, melhor. Imagina que coisa linda poder viver numa casa cheia de crianças brincando, correndo de um lado a outro.

 E também brigando, chorando, caindo, nos enchendo de sustos.

 Não sejas pessimista. 

As horas foram passando. O sol se despedindo, dando lugar à dona lua, a senhora entendedora guardiã de todos os mistérios da vida. 

No aconchego de sua cama, no calor macio dos cobertores, Enila abriu a Bíblia num trecho que a fez refletir: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações.” Tiago 1.2 

“Não passo por grandes provações... Minha vida é boa: comparo a um campo plano, reto, de gramado verde intenso, bom para sentar junto de quem amo e fazer piquenique. Não preciso escalar montanhas para superar as dificuldades do dia a dia, tampouco preciso lutar para realizar sonhos. A vida é muito generosa comigo. Minha vida é um pampa de céu aberto, aonde as bênçãos fizeram morada. Apesar de tudo, não sou mimada. Meus pais souberam me educar muito bem, e acho que não é errado pensar que possuo uma boa alma. 

No entanto, por vezes, fico a desejar passar por alguns percalços, me deparar com as contrariedades da existência. Não seria mais interessante viver entre os altos e baixos da vida? Penso no caso de Isadora, aliás, nos muitos casos que ela tem a resolver. A vida está sempre a testá-la. Ela sofre, mas veja só que paradoxo curioso: por vezes, ela parece mais plena do que o resto da humanidade. 

Não estou a invejá-la. A admiro com sinceridade. Ela é a irmã que meus pais não puderam me dar. Tenho mesmo muita sorte. Mas Isadora me deixa curiosa...

Talvez seja uma questão de capacidade. Não sei se eu teria talento para sobreviver a questões trágicas toda hora. Melhor parar de pensar. Quem sabe quando eu acordar o dia me traga algumas respostas para essas minhas repentinas e intrigantes perguntas....
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continua...

Fonte: Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 38

 

Mensagem na garrafa – 19 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

William Shakespeare
Stratford-upon-Avon/Inglaterra (1564 – 1616)

Corra atrás dos Sonhos

Persiga um sonho, 
mas não deixe ele viver sozinho.
Descubra-se todos os dias, 
deixe-se levar pelas vontades, 
mas não enlouqueça por elas.
Procure, sempre procure o fim de uma história, 
seja ela qual for.
Dê um sorriso para quem esqueceu como se faz isso.

Acelere seus pensamentos, 
mas não permita que eles te consumam.
Olhe para o lado, alguém precisa de você.
Abasteça seu coração de fé, não a perca nunca.
Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os.

Procure os seus caminhos, 
mas não magoe ninguém nessa procura.
Arrependa-se, volte atrás, peça perdão!
Não se acostume com o que não o faz feliz, 
revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças,
mas não deixe que ele se afogue nelas.

Hans Christian Andersen (A ave dos cânticos do povo)


Inverno. A camada de neve que recobre a terra parece uma capa de mármore, talhado da rocha. O ar é límpido e claro, o vento, afiado como uma espada de aço batido. As árvores erguem-se, cobertas de corais brancos, como amendoeiras em flor. A atmosfera é leve e fresca como nos cimos dos Alpes.

À luz da aurora boreal, a noite é magnífica, no esplendor de estrelas sem conta.

Vem as tempestades. As nuvens levantam-se no céu, sacodem-se e deixam cair plumas de cisne. Os flocos de neve turbilhonam, cobrem desfiladeiros e casas, campos abertos e ruas fechadas. Mas nós estamos sentados na sala aquecida, ao pé da estufa cheia de brasas, contando histórias dos tempos antigos. Ouçamos uma lenda:

Erguia-se à beira-mar um túmulo pré-histórico. À meia-noite achava-se sentado sobre as pedras o espírito do herói ali sepultado, e que fora outrora um rei. Luzia-lhe na fronte o diadema de ouro, enquanto o vento lhe agitava os cabelos. Estava todo revestido de ferro e aço. A cabeça pendia-lhe, pesarosa, sobre o peito; e o espírito suspirou, como se mágoa profunda o abatesse: dir-se-ia uma alma penada.

Aproxima-se um navio; a marujada lança âncora e desembarca. Vem entre os marujos um poeta, que se acerca do espírito do rei, indagando:

-  Por que estás triste? Que é que te aflige assim?

E o defunto respondeu:

- É que ninguém contou os meus feitos. Estão todos mortos, esquecidos. Nenhum canto os transmite a outras terras, nem os grava no coração dos homens. por isso não encontro paz nem descanso.

E o espectro falou de suas obras, de suas façanhas, conhecidas dos seus contemporâneos, que não tinham celebrado, pois que não havia entre eles um só poeta.

Então o bardo tangeu as cordas da lira e cantou; cantou o valor juvenil do herói, a força do homem, a grandeza das sua boas ações. E, ao ouvi-lo, o rosto do morto resplandecia, como a orla da nuvem à luz do luar. Alegre e feliz ergueu-se o vulto, rodeado de raios e de  auras, e sumiu-se, como a aurora boreal. Só se via agora o túmulo coberto de grama verde, cujas pedras não tinham letra alguma. Mas sobre ele esvoaçava aos últimos acordes da lira, e como se desta vez tivesse saído, uma avezinha, um passarinho encantador; tinha a voz sonora do tordo, a voz animada do coração humano, o próprio som da pátria, tal como o ouve a ave de arribação. E o passarinho voou sobre montanhas, os vales, os campos e bosques: Era o ave dos cânticos do povo que nunca morre. E nós ouvimos o seu canto. Ouvimo-lo agora na sala, enquanto lá fora as abelhas brancas caem em exames e a tempestade se abate sobre as coisas. A ave não canta somente a nênia do herói - canta também cantos de amor, meigos e suaves, e cantos ardentes, cantos numerosos, da lealdade que impera no  Norte. Canta contos de fadas, em palavras e sons, adágios e máximas rimadas, que, dispostas como runas sob a língua do finado, o constrangem a falar.

E é assim, que o cântico do povo fica sabendo tudo da sua terra natal.

Nos velhos tempos pagãos, na era dos "vikings", a voz da ave ficou morando na harpa do bardo.

Nos dias dos castelos dos cavalheiros, no tempo em que a balança da Justiça se erguia do punho fechado do forte, na era em que a razão repousava na força, naqueles tempos em que um camponês não tinha mais valor que um cão - onde iria a ave do cântico do povo encontrar abrigo e proteção? Nem a rudeza nem a estupidez se preocupavam com ela.

Mas no mirante do castelo feudal, a castelã, sentada diante do pergaminho, anotava velhas recordações e lendas e cantigas antigas: a velhinha do bosque e o mascate que anda vagando pelo mundo vão visitá-la, e contam-lhe essas lendas e essas cantigas- e eis que a ave voa por sobre a sua cabeça, batendo as asas, gorjeando e cantando, a ave que nunca morre, que não morrerá enquanto houver na terra uma colina onde possa pousar: a ave dos cânticos do povo.

Agora chega até nós o seu canto. Lá fora tudo são trevas e cai neve. Ela nos insinua as runas debaixo da língua. Conhecemos a nossa terra natal. Deus fala conosco na nossa língua materna - na voz da ave dos cânticos do povo . Ressurgem as velhas recordações; avivam-se as cores desmaiadas; a lenda e o canto instilam uma bebida abençoada, que eleva a alma e enobrece os pensamentos a tal ponto que a noite se transforma em uma festa - uma festa de Natal.

Turbilhonam os flocos de neve; estala o raio; impera a tormenta, pois dela é o poder: ela nos domina - e contudo não é Deus, não é Nosso Senhor.

Inverno. O vento corta como uma espada de aço batido. Turbilhonam os flocos de neve. Parece que está nevando há dias, há semanas; a neve se acumula sobre a grande cidade, numa montanha imensa, como um pesadelo na noite  hibernal. Tudo o que há na terra está oculto: desapareceu tudo, exceto a cruz dourada da igreja, símbolo da fé. A  cruz ergue-se acima do túmulo de neve, brilhando no ar azul, à clara luz do sol.

E sobre a cidade sepultada voam as aves do céu; voam as aves, grandes e pequenas, gorjeando, chilreando, piando, cada uma com a voz que Deus lhe deu.

Vem em primeiro lugar o bando de pardais, piando ao menor incidente que apareça na rua e na travessa, no ninho ou na casa; eles sabem histórias de todas as peças das casa, e dizem:

- Piu, piu, piu! Conhecemos a cidade sepultada! Piu, piu! Tudo que ali vive tem voz: Piu, piu, piu!

As negras gralhas  e os corvos negros voam sobre a neve branca:

- Grasn! grasn! grasn!

Eles queriam dizer: Sepultura, sepultura! Mas a língua não ajudava ; e então grasnavam.

Lá embaixo talvez ainda se arranje alguma coisa para o papo - e é isso o que serve, afinal, segundo a opinião da maioria dos que lá vivem. E é uma opinião respeitável, a  da gente grave! Grav! grav! grav!

É isso; não podiam dizer o que pretendiam, porque a língua não ajudava.

Vem os cisnes bravos, com as asas a zunir, e cantam coisas magníficas, coisas grandiosas, que ainda um dia hão de brotar dos pensamentos e dos corações humanos lá embaixo, na cidade que descansa, sob a camada de neve.

Lá não há morte; lá reina a vida. E nós a ouvimos, nos sons que retinem como o órgão da igreja, que nos comovem como as melodias de colina dos silfos, como os hinos de Ossiam; como o bater ruidoso das asas das valquírias. Que harmonia! Ela fala ao nosso coração, elava-nos as ideias- é a ave dos cânticos do povo que estamos ouvindo....

Nesse instante vem do céu um bafejo quente. os montes de neve enchem-se de fendas, por onde penetra a luz do sol. Vem a primavera, vem as aves, novas gerações de aves, com as mesmas vozes da Pátria.

Escuta a história do ano:

O poder da nevasca, o pesadelo da noite hibernal- tudo se transforma, tudo se eleva, ao esplêndido gorjeio da ave dos cânticos do povo, da ave que jamais há de morrer!
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NOTA:
Bardo: Um bardo, ou aedo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, lendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados. Era simultaneamente músico e poeta e, mais tarde, seria designado de trovador. É a principal raiz da música tradicional irlandesa. O bardo usava frequentemente um alaúde para tocar suas melodias e músicas, que contavam na maioria das vezes uma história triste.

Fonte:
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837. Disponível em domínio público

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXII

  
 TRILHA SONORA
 
MOTE:
Do cair da noite à aurora,
a chuva, em suave rumor,
fez toda a trilha sonora
das nossas cenas de amor.
Almerinda Liporage 
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
DO CAIR DA NOITE À AURORA,
uma linda melodia
eternizou nosso agora
pincelado de poesia!
 
Caindo, assim, displicente,
A CHUVA, EM SUAVE RUMOR,
uniu muito mais a gente,
uniu no mesmo calor!
 
Incessante, noite afora,
a chuva, com emoção
FEZ TODA A TRILHA SONORA
da nossa grande paixão!
 
Ao som da chuva caindo
amamos com mais ardor,
lembrando, sempre sorrindo,
DAS NOSSAS CENAS DE AMOR.
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NOSSAS SOMBRAS
 
MOTE:
No fim da tarde, alongadas
e unidas pelo carinho,
nossas sombras de mãos dadas,
enchem de luz o caminho!
Aloísio Alves da Costa  
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
NO FIM DA TARDE, ALONGADAS
pelo sol que vai se pôr,
as sombras apaixonadas
são o retrato do amor!
 
As vejo quase sorrindo
E UNIDAS PELO CARINHO,
nossas sombras, que vão indo
devagar...devagarzinho...
 
Parece um conto de fadas
essa cena tão bonita,
NOSSAS SOMBRAS DE MÃOS DADAS,
numa ternura infinita!
 
Esse amor... e essa ternura,
com a maciez do arminho,
nos dando imensa ventura,
ENCHEM DE LUZ O CAMINHO!
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   MADRUGADAS INSONES
 
MOTE:
Ao ver-te em roupas ousadas,
que os pensamentos devassam,
passo, insone, as madrugadas,
e as madrugadas não passam!...
Edmar Japiassu Maia  
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:  
AO VER-TE EM ROUPAS OUSADAS,
o meu ser todo se excita
e as tuas formas marcadas
dão uma visão bonita!
 
São grandes as sensações
QUE OS PENSAMENTOS DEVASSAM,
e imensas as emoções
que os sonhos, então, abraçam!
 
As visões enfeitiçadas
me tornam um prisioneiro,
PASSO, INSONE, AS MADRUGADAS,
imaginando teu cheiro!
 
Sigo contigo sonhando,
e os meus sonhos se entrelaçam...
As horas vão se alongando
E AS MADRUGADAS NÃO PASSAM!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

   GRITOS E SILÊNCIOS
 
MOTE:
 Nestas angústias que oprimem,
que levam à dor e ao pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!
Luiz Otávio  
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

GLOSA:
NESTAS ANGÚSTIAS QUE OPRIMEM,
sempre existem dissonâncias...
difícil fazer que rimem
as realizações e as ânsias!
 
Nessas grandes nostalgias
QUE LEVAM À DOR E AO PRANTO,
anoitecem nossos dias,
tristes, sem um acalanto!
 
Há prantos que não redimem,
soam inúteis e frios...
HÁ GRITOS QUE NADA EXPRIMEM,
são gritos falsos, vazios!
 
Mas ouvimos, certamente,
sem saber porque, no entanto,
numa voz forte e crescente,
SILÊNCIOS QUE DIZEM TANTO!
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   VIVE!
 
MOTE:
Vive o agora em demasia,
que a vida, no seu afã,
não dá qualquer garantia
de estar contigo amanhã!
Sérgio Bernardo  
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
VIVE O AGORA EM DEMASIA,
faze tudo o que sonhaste,
esbanja a tua alegria,
dá mais luz para o contraste!
 
Procura no teu caminho,
QUE A VIDA, NO SEU AFÃ,
pode até  esconder  carinho
daquela tua alma irmã!
 
Vive sempre com euforia.
Sendo uma incógnita, a vida
NÃO DÁ QUALQUER GARANTIA
que ela possa ser vencida!
 
Tenta sempre ser feliz,
te apega ao teu talismã,
pois a vida nada diz
DE ESTAR CONTIGO AMANHÃ!

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Setembro de 2003.

Graciliano Ramos (Uma canoa furada)

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. 

— Já me disseram isso, murmurou  Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

— Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome.

Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas.

Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. 

— “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

— “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” 

Fiquei embuchado, com uma resposta  atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um Deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados. 

— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” 

E o desgraçado respondeu: 

“Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.” 

— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado. 

— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” 

A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo. 

— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” 

Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? 

A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: 

— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” 

Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público.

Dicas de Escrita (Como Escrever um Roteiro) – 5, final

Criação JFeldman com
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REVISANDO O ROTEIRO

1
Tire uma ou duas semanas de folga quando terminar de escrever. 

Você já vai ter passado tempo demais trabalhando no seu roteiro. Salve o arquivo e tire algumas semaninhas para pensar em outra coisa. Assim, quando você voltar ao texto para editá-lo, será como se você o estivesse lendo pela primeira vez.

Comece a trabalhar em outro roteiro nesse meio tempo se tiver alguma outra ideia que queira desenvolver.

2
Releia o roteiro e tome nota das partes que não estiverem fazendo sentido. 

Abra o roteiro e leia-o do começo ao fim. Fique atento a partes confusas ou em que os personagens façam coisas que não ajudem a história a avançar. Tome nota desses pedaços à mão para se lembrar bem deles mais tarde.

Experimente ler o roteiro em voz alta, como se estivesse atuando. Diga as falas do jeito que você acha que elas devem ser ditas. Assim, você conseguirá ver mais facilmente quais trechos e diálogos não estão bons.

Dicas: Imprima o roteiro, se puder, para fazer suas anotações diretamente nas folhas.

3
Mostre o roteiro para alguém em quem você confie. 

Peça para a sua mãe, o seu pai ou um amigo dar uma lida no seu roteiro e dizer que acha. Explique exatamente o tipo de retorno que você quer para que eles saibam no que prestar atenção. Quando eles terminarem de ler, pergunte se acharam que alguma parte da trama não está fazendo sentido.

4
Reescreva o roteiro várias vezes até ficar satisfeito. 

Comece editando a história e os personagens para resolver os problemas maiores. A cada releitura, vá tornando as suas edições mais específicas, arrumando desde os diálogos e as sequências mais confusas até os errinhos de gramática e digitação.

Abra um documento novo para cada versão do roteiro. Assim, você poderá copiar e colar partes boas do arquivo antigo no novo.

Não fique procurando pelo em ovo. Do contrário, você nunca vai conseguir terminar o seu roteiro.

Dicas
– Não existem regras fixas a respeito de como escrever um roteiro. Caso ache que a sua história deva ser contada de outra forma, experimente!
– Leia os roteiros dos seus filmes preferidos para ver como eles são escritos. Basta fazer uma busca rápida para encontrar vários roteiros em PDF na internet.
– Leia livros como Manual de roteiro de Syd Field, ou Manual de roteiro: ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV de Leandro Saraiva e Newton Cannito, para buscar inspiração e aprender mais a respeito de como formatar as suas histórias.
– As peças de teatro e os documentários têm roteiros um pouco diferentes dos usados para filmes e seriados de ficção.

Referências
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-1-story-concept-ab6d5a25fc27
↑https://www.scriptmag.com/5-tips-choosing-writing-genres-free-download
↑https://thescriptlab.com/features/screenwriting-101/2982-how-to-create-a-convincing-setting-in-your-screenplay/
↑https://www.well-storied.com/blog/the-four-main-types-of-epic-antagonists
↑https://www.scriptreaderpro.com/how-to-write-a-screenplay-2/
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-6-outline-697aedb321ef
↑https://gointothestory.blcklst.com/how-i-write-a-script-part-6-outline-697aedb321ef
↑http://www.elementsofcinema.com/screenwriting/three-act-structure/
↑https://screenwriting.io/what-does-a-screenplay-title-page-look-like/7

Fonte: https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Roteiro