segunda-feira, 10 de junho de 2024

Dicas de Escrita (Como Escrever uma Fábula) = 3, final

(por Danielle McManus, PhD*)

3 EDITANDO E COMPARTILHANDO SUA FÁBULA

1 Releia e revise. 

Leia toda a sua fábula e verifique se todas as partes estão no lugar e se trabalham em harmonia.

Cuidado com trechos em que a fábula pode parecer muito prolixa ou complicada. A natureza dela é ser uma história simples e concisa que não mede palavras ou que desvia para algo verboso.

Verifique se cada parte — ambiente, personagens, conflito, resolução e moral — está claramente estabelecida e inteligível.

2 Edite para melhorar o estilo e a gramática.

Depois de revisar o conteúdo, releia tudo de novo, agora focando nos problemas de gramática e clareza de cada frase.

Chame um amigo ou colega para ler seu texto. Um segundo par de olhos é importante para encontrar erros.

3 Compartilhe seu trabalho!

Uma vez que tiver terminado os toques finais, é hora de mostrar sua fábula a um público.

O lugar mais fácil e lógico de começar é com a família e os amigos: poste sua fábula no Facebook, em um blog, para compartilhar em alguma rede social ou envie para sites que publiquem escrita criativa.

Você também pode enviar o texto para jornais ou revistas em sua cidade.

REFERÊNCIAS
– http://literarydevices.net/fable/
– http://www.litscape.com/indexes/Aesop/Morals.html
– http://www.creative-writing-ideas-and-activities.com/writing-fables.html
– http://www.learnnc.org/lp/media/lessons/katebboyce1142004123/Rubric_-_Fable.htm
– http://jerrydunne.com/2013/12/26/how-to-write-a-modern-fable-for-the-adult-reader/
– http://www.slideshare.net/lolaceituno/fables-and-morals
– http://www.learnnc.org/lp/media/lessons/katebboyce1142004123/Rubric_-_Fable.htm
– http://jerrydunne.com/2013/12/26/how-to-write-a-modern-fable-for-the-adult-reader/
– http://lerebooks.files.wordpress.com/2013/01/fabulasdeesopo.pdf
– http://www.newworldencyclopedia.org/entry/fable
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* Danielle McManus, PhD é Conselheira de Graduação em Davis, Califórnia. Completou seu PhD em Língua e Literatura Inglesa na UC Davis em 2013.

domingo, 9 de junho de 2024

José Feldman (Versejando) 140

 

Contos Tradicionais Portugueses (O aprendiz de mago)

Um homem de grandes artes tinha em sua companhia um sobrinho, que guardava a casa quando precisava sair. Uma vez deu-lhe duas chaves, e disse:

– Estas chaves são daquelas duas portas; não as abras por coisa nenhuma do mundo, senão morres.

O rapaz, assim que se viu só, não se lembrou mais da ameaça e abriu uma das portas. Apenas viu um campo escuro e um lobo que vinha correndo para arremeter contra ele. Fechou a porta a toda a pressa passado de medo. 

Daí a pouco chegou o Mago:

– Desgraçado! Para que me abriste aquela porta, tendo-te avisado que perderias a vida?

O rapaz, chorou tanto que o Mago lhe perdoou. 

Uma outra vez saiu o tio e fez-lhe a mesma recomendação. 

Não ia muito longe, quando o sobrinho deu volta na chave da outra porta, e apenas viu uma campina com um cavalo branco a pastar. Nisto lembrou-se da ameaça do tio e já o sentindo subir pela escada, começou a gritar:

– Ai que agora é que estou perdido!

O cavalo branco falou-lhe:

– Apanha desse chão um ramo, uma pedra e um punhado de areia, e monta já quanto antes em mim.

Mal as palavras foram ditas, o Mago abriu a porta da casa, e o rapaz salta para cima do cavalo branco e grita:

– Foge! Que aí vem o meu tio para me matar.

O cavalo branco correu pelos ares afora. 

Mas indo lá muito longe, o rapaz torna a gritar:

– Corre! Que meu tio já me apanha para me matar.

O cavalo branco correu mais, e quando o Mago estava quase a apanhá-los, disse para o rapaz:

– Solta fora o ramo.

Fez-se logo ali uma floresta muito fechada, e, enquanto o Mago abria caminho por ela, foram para muito longe. Ainda o rapaz tornou outra vez a gritar:

– Corre! que já aí está meu tio, que me vai matar.

Disse o cavalo branco:

– Solta a pedra.

Logo ali se levantou uma grande montanha cheia de pedras, que o Mago teve de subir, enquanto eles avançavam caminho. 

Mais adiante, grita o rapaz:

– Corre, que meu tio agarra-nos.

– Pois lança ao vento o punhado de areia. - disse-lhe o cavalo branco.

Apareceu logo ali um mar sem fim, que o Mago não pôde atravessar. 

Foram dar em uma terra onde estavam em muitos prantos. 

O cavalo branco ali largou o rapaz e disse-lhe que quando se visse em grandes trabalhos, por ele chamasse, mas que nunca dissesse como viera ter ali. 

O rapaz foi andando e perguntou por quem eram aqueles grandes prantos.

– É porque a filha do rei foi roubada por um gigante que vive em uma ilha, onde ninguém pode chegar. 

– Pois eu sou capaz de ir lá.

Foram dizê-lo ao rei e o rei obrigou-o com pena de morte a cumprir o que dissera. 

O rapaz valeu-se do cavalo branco, e conseguiu ir à ilha trazendo de lá a princesa, porque apanhara o gigante dormindo.

A princesa assim que chegou ao palácio não parava de chorar. 

Perguntou-lhe o rei:

– Porque choras tanto, minha filha?

– Choro porque perdi o meu anel que me tinha dado a minha fada madrinha e, enquanto o não tornar a achar, estou sujeita a ser roubada outra vez, ou ficar para sempre encantada.

O rei mandou divulgar em como dava a mão da princesa a quem achasse o anel que ela tinha perdido. 

O rapaz chamou o cavalo branco, que lhe trouxe do fundo do mar o anel, mas o rei não lhe queria já dar a mão da princesa, porém ela é que declarou que casaria com o jovem para que dissessem sempre: Palavra de rei não volta atrás.

Fonte> Teóphilo Braga. Contos Tradicionais do Povo Português. Publicado em 1883. Disponível em Domínio Público .

Milton Sebastião Souza (Mães e Filhos)

Nem todas as mães estarão festejando no seu dia. Existem muitas mães abandonadas nos asilos, solitárias, saudosas dos seus filhos que “não têm tempo” para uma visita. Existem muitas mães doentes, padecendo nos hospitais, com a saúde abalada, muitas vezes por terem dedicado o melhor dos seus dias para filhos ingratos e sem reconhecimento. Existem muitas mães confinadas atrás das grades, condenadas por algum deslize cometido. Existem muitas mães que foram completamente esquecidas pelos filhos depois que a idade reduziu as suas tantas utilidades para a família. Existem muitas mães que não vão receber uma rosa e, um abraço e, muito menos, um presentinho no dia das mães.

É claro que também existem muitos filhos que dariam parte da sua vida para poder abraçar as suas mães neste dia. Filhos que choram a ausência da mãe que já partiu para a eternidade. Filhos que, por algum capricho do destino, foram criados em orfanatos e nunca souberam quem eram as suas mães. Filhos que foram abandonados pelas ruas e cresceram sem saber o que era ter uma mãe. Filhos que, mesmo tendo mãe, sofreram a vida inteira porque aquela mãe que a vida lhes deu, que não merecia ser chamada de mãe...

Mas existem também aqueles filhos mais sortudos (como eu), que estarão juntinhos com as suas mães no seu dia ou que poderão, pelo menos, repassar um abraço pelo telefone ou pela Internet. É para estes filhos que vai o recadinho final destas linhas: aproveitem cada segundo da presença das suas mães nas suas vidas. Curtam cada sorriso desta mãe. Ampliem cada gesto e cada atitude que brotar do coração desta pessoa especial. Se ela estiver alegre, riam juntos. Se ela estiver triste, chorem com ela e ajudem a secar as suas lágrimas. Se ela tiver tempo sobrando, tentem, de alguma maneira, preencher este tempo com a sua presença e o seu apoio constante. Façam pela sua mãe aquilo que ela fazia por vocês quando eram pequenos: 24 horas de cuidados e de amparo constante.

Para completar o dia delas, façam da presença o melhor presente. Um abraço e algumas palavras de carinho, muitas vezes, ficam gravados no coração para sempre. Um rosa ou um ramalhete de flores são presentes lindos. Mas eles não duram muito tempo. Outros presentes materiais, por mais caros que sejam, também têm um tempo de duração definido pelo desgaste. O gesto de amor fica para sempre. E não existe imagem mais linda do que um filho olhar o seu próprio rosto refletido no olhar da mãe, mesmo que este olhar esteja embaçado pelo tempo ou nublado pela presença de algumas lágrimas de alegria. É exatamente o coração generoso de cada mãe que nos facilita a tarefa de sermos bons filhos. Afinal, elas só querem o nosso carinho e o nosso reconhecimento. Um beijo e um abraço conseguem falar todas aquelas palavras que as mães merecem ouvir e que nós, muitas vezes, não sabemos ou não temos coragem de pronunciar. Feliz Dia das Mães para todos aqueles que são bons filhos.

Dicas de Escrita (Como Escrever uma Fábula) = 2

(por Danielle McManus, PhD*)

2 ESCREVENDO A HISTÓRIA DA FÁBULA

1 Preencha todo o seu rascunho. 

Uma vez que tiver um esboço dos principais componentes da história, comece a detalhá-los.

Estabeleça o ambiente e o relacionamento dos personagens com ele, que deve ser facilmente reconhecível e estar ligado diretamente aos eventos da história.

2 Coloque o enredo em ação.

Apresente o conflito entre os personagens com detalhes o bastante para que o conflito ou problema fique claro e implore por uma solução.

Avance com eficácia do evento para seu efeito. Não desvie do objetivo da história.

Tudo que acontecer na história deve ser direta e claramente relacionado ao problema e à sua resolução/moral.

Trabalhe para deixar o ritmo da fábula rápido e conciso. Não desperdice tempo com passagens descritivas desnecessariamente elaboradas ou com meditações sobre os personagens e seus arredores.

Por exemplo, em "A Lebre e a Tartaruga", o enredo evolui rápido do desafio para a corrida ao erro da lebre e, então, à vitória da tartaruga.

3 Desenvolva o diálogo.

Ele é um componente-chave para transmitir a personalidade e a perspectiva dos personagens. Em vez de descrever os traços deles de forma explícita, use o diálogo para ilustrá-los.

Inclua diálogos o bastante para ilustrar os relacionamentos entre os personagens e com a natureza do conflito que eles enfrentam.

Por exemplo, as duas características da tartaruga e da lebre são estabelecidas como equilíbrio e calma, de um lado, e arrogância e ansiedade, do outro, como podemos notar no tom do diálogo: a lebre costumava fazer troça da tartaruga por ela ser tão lenta. "Tu alguma vez chegas ao teu destino?", perguntou-lhe um dia zombando dela. "Sim", replicou a tartaruga, "e chego mais depressa do que pensas. Vamos fazer uma corrida e provar-te-ei". A lebre achou graça do desafio da tartaruga e, para se divertir, resolveu aceitar.

4 Crie a resolução.

Depois de mostrar a natureza e os detalhes do conflito, comece a avançar para a resolução dele.

Deve haver um relacionamento claro e direto entre as ações dos personagens, o desenvolvimento do problema e a ilustração da moral/resolução.

Deve haver uma solução para todos os aspectos do problema previamente estabelecido e de que não haja fios soltos.

Pegando de novo o exemplo da tartaruga e da lebre, a resolução ocorre quando a lebre arrogante dispara na corrida e para para tirar uma soneca, enquanto a equilibrada tartaruga simplesmente segue caminhando devagar, ultrapassando a rival adormecida mais tarde e alcançando primeiro a linha de chegada.

5 Articule a lição.

Quando o enredo da fábula tiver se resolvido, apresente a moral ou a lição da história.

Em fábulas, a moral da história costuma ser colocada em uma única frase incisiva.

Procure deixá-la de modo que resuma o problema, a solução e o que deve ser aprendido desta.

A simples moral de "A Lebre e a Tartaruga", por exemplo, é "Nem sempre quem muito corre é o primeiro a chegar". Ela engloba tanto o erro — ser preguiçoso e arrogante por ter confiança demais — e a lição a ser aprendida — que lentidão e persistência acabam vencendo rapidez e desleixo.

6 Escolha um título relevante e criativo.

Ele deve captar o espírito geral da história e ser atrativo o bastante para capturar a atenção do leitor.

Normalmente, é melhor esperar para fazer este Passo até escrever tudo ou ao menos até você ter o rascunho da história de modo que o título possa refleti-la de maneira geral.

Você deve escolher algo básico e descritivo, como a tradição das fábulas de Esopo (ex: "A Lebre e a Tartaruga") ou algo mais criativo e irreverente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* Danielle McManus, PhD é Conselheira de Graduação em Davis, Califórnia. Completou seu PhD em Língua e Literatura Inglesa na UC Davis em 2013.

Recordando Velhas Canções (O barquinho)


Compositores: Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli

Dia de luz festa de sol
E o barquinho a navegar 
No macio azul do mar,  
tudo é verão o amor se faz
Num barquinho pelo mar
Que desliza sem parar
  Sem intenção nossa canção vai saindo
Deste mar e o sol
Beija o barco e luz, dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar 
e a vontade de cantar, 
céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho coração, 
deslizando na canção, 
tudo isso faz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai
O barquinho vai...
A tardinha cai o barquinho vai
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Namorada de Ronaldo Bôscoli, Nara Leão sempre o acompanhava nas excursões ao mar de Cabo Frio, que ele fazia com o par Menescal, um aficionado da caça submarina. Foi naquele ambiente praieiro que nasceu “O Barquinho”, um samba paisagístico que levou para o mar a bossa nova do amor, do sorriso e da flor.

Na vida real “O Barquinho” era o Thiago III, uma traineira com motor a gasolina e capacidade para dez passageiros, que Menescal alugava para transportar sua turma aos locais de pescaria. Dirigia o Thiago III o barqueiro Ceci, um tipo meio bronco que jamais acreditou serem seus passageiros “artistas de rádio”.

Rapidamente, “O Barquinho” deslizou para os primeiros lugares das paradas musicais, ganhando várias gravações como a de Maysa, mais apreciada até do que a de seu lançador, João Gilberto. Aliás, nessa gravação do João — informa Ruy Castro no livro Chega de saudade — o tecladista Walter Wanderley quase foi à loucura, por não conseguir reproduzir no órgão um ronco de navio, no exato timbre que o cantor insistia em lhe transmitir... com a voz. Finalmente, no arremate do disco, o maestro Tom Jobim conseguiu colocar nos trombones o tal ronco imaginado e desejado pelo João. 

Aparecido Raimundo de Souza (A menina dos olhos sem luz)

VOU CONTAR a história da menina Fernanda, uma jovenzinha de quinze anos, que morava com a sua tia, a dona Lurdes, em Aldeia da Serra, um bairro elegante de São Paulo, entre Barueri e Santana de Parnaíba. Apesar de todo o conforto oferecido, Fernanda carregava consigo um problema que a fazia diferente das demais mocinhas da sua idade. Seus olhos não viam. Não enxergavam um palmo adiante do nariz. Apesar dessa ablepsia, seu mundo (mergulhado em escuridão perpétua), não se mostrava hostil e aborrascado. A casa da tia Lurdes, se constituía em uma mansão elegante de dois andares, edificada num terreno imenso e bem cuidado, com árvores frondosas e plantas as mais diversas. A bem da verdade, um lugar elegantemente pitoresco e aconchegante, onde as cores mais exuberantes da natureza se mostravam em todo o albor da excelsitude* e realeza. 

Obviamente todas as maravilhas se faziam sentidas e vivenciadas por quem quer que ali chegasse. Em face da sua desdita, contrariando a tudo e a todos –, notadamente pelo seu coração (que possuía mil razões para se ver e se sentir amargurado), a pequena não se lastimava, nem choramingava pelos cantos. Tampouco se deixava ser levada ou abatida pela melancolia ou pela neurastenia do desespero. A consternação, por seu turno, não lhe tirava o foco. Tampouco o derrotismo, ou o desânimo avassalador, lhe enchiam o coração de medos e inquietações. Fernanda não se sentia, em momento algum, acabrunhada ou triste, levando em conta os sentidos vitais inerentes a sua visão não lhe propiciarem a chance, por menor que fosse, de vivenciar a magia contagiante do efêmero, nem que fosse por um milésimo de segundo. 

Sem se melindrar, ou se sentir ao nível do chão, a jovem agia dentro da normalidade, como se os seus olhos fossem perfeitos. Assim, as formas das coisas se moldavam em toda a sua plenitude, como a venustidade* que se fazia percebida de uma maneira que poucos poderiam acreditar e entender. Os males responsáveis pela sua “cegueira” agiam duramente como janelas fechadas em quartos ensombrecidos e lâmpadas queimadas. Para aumentar a degradante tristeza, que ela não sentia, seu “eu” interior maravilhado, não se fechara para o céu azul. Tampouco para o sol radiante e para as estrelas e a lua, quando, à noite, se prostravam no firmamento. Seu coração, mesmo norte, se fazia como uma vidraça corpulenta escancaradamente aberta para um universo paralelo de sensações imorredouras. 

Nesse unissonante paraíso, ela tocava as flores e conhecia as suas cores pelos cheiros e odores dos perfumes que exalavam. Mesmo tom, ao ouvir o vento, distinguia intimamente as paisagens que ele descrevia em suas canções. As pessoas que gravitavam ao seu redor, as empregadas, o motorista da tia, os parentes e os vizinhos que a conheciam, se quedavam em lamentações: “pobre menina! Que horror os seus olhos não capturarem as belezas que o Criador nos deu sem termos que pagar um centavo para desfrutarmos seus esplendores.” Mas Fernanda, ao tomar conhecimento dessas conversas meio que maquiavélicas, não dava a mínima. Limitava a se moderar em sorrisos indescritíveis. Sabia que, de certa forma, percebia, ou melhor, assimilava, nos mínimos detalhes... discernia mais que todo mundo, notadamente os que faziam parte do seu dia a dia, que o seu “eu” interior não vivia e não só vivia, sentia a verdadeira essência das coisas enroupadas numa majestade de beleza única e imperecível. 

As fragrâncias balsâmicas, em iguais passos, não se detinham   apenas em suas aparências. Elas se expandiam e voavam longe. Transcursavam para o divorciado (sic) dos sisudos muros que guarneciam as paredes da luxuosa construção. Certo dia, chegou ao seu conhecimento, que o Carlos –, um rapazote mais velho que ela um ano (morador quatro casas abaixo), tanto perturbou a sua mãe que, sem mais desculpas, a tal senhora se viu obrigada a bater na porta da suntuosa casa milionária. A tia de Fernanda, nessa ocasião, gentilmente atendeu as pretensões do menino, dando-lhe o acesso pleiteado. A mãe de Carlos trocou algumas palavras com a sua circunjacente, culminando com a tia aquiescendo com o encontro do garoto e a sua sobrinha. Com o ingresso do adolescente, permitiu que o púbere realizasse o seu sonho.  

A tia, apesar da nova amiga morar próxima, colocou um segurança discreto a observar o casal. Nesse interregno, convidou a mãe do piá*, para acompanhá-la até a cozinha, onde se sentaram e, enquanto os adolescentes trocavam impressões, dona Lurdes pediu para uma de suas funcionárias preparar um lanche para os convidados. O rapaz estava triste e abatido. Revelara à Fernanda que se sentia deveras insatisfeito. Apesar da pouca idade, seu sonho maior se constituía em ser pintor, porém, não sendo um profissional, e via outra* (sic), ter dado vida para uma grande quantidade de quadros, de repente lhe sucumbira a paixão pela arte. 
— Fernanda, como posso pintar novamente se faz tempo perdi o rumo, levando em conta não ver mais nenhuma beleza no mundo?

Fernanda agasalhou as mãos de Carlos entre as suas e as colocou direto sobre o coração. 
— “Sinta –, disse ela a certa altura. A beleza está aqui. – Para onde você olhar, sentirá a sua força avassaladora. Você só precisará ver com os olhos da alma, jamais com os olhos físicos. ”
O garoto, de pronto, entendeu a mensagem. Inspirado pela graciosa, dias depois recomeçou a pintar. Produziu quadros, como nunca antes havia ousado com seus pincéis. Desde então, matizou os sons do riso, eternizou as texturas da esperança e perenizou os aromas das aventuras. Graças a Fernanda, a menina dos olhos embaciados, ele descobriu uma vastidão ao seu redor de uma maneira jamais vista e sentida. 

Em conclusão dessa história, a Fernanda (que não via com os olhos físicos), ensinou com palavras simples e gestos delicados, ao seu mais novo amigo e vizinho, a usufruir da verdadeira luz que para ele estava e se fazia fria, grosso modo, gélida, oculta e apagada. Descerrou, em paralelo, uma estrada de compleição ensandecida vinda diretamente de dentro do âmago. Ela mostrou também, na sua inocência, que a beleza ímpar, o acendrado* e o inconspurcado* não estavam somente enleados ou escondidos naquilo que olhamos, e não vemos, mas, sobretudo, na maneira sublime e bucólica de como percebemos e sentimos o Universo posicionado bem lá no alto e acima, muito aquém da nossa tão sonhada e inesgotável imaginação. 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Vocabulário do blog, em ordem alfabética

Acendrado = depurado.
Excelsitude = magnificência.
Inconspurcado = imaculado.
Piá = guri, garoto, é uma expressão regionalista muito usada no sul do Brasil.
Sic Põe-se entre parênteses depois de uma palavra, expressão ou frase, para indicar que a citação é textualmente exata como escrita pelo autor, e que por ela não se responsabiliza quem a publica.
Venustidade = formosa, graciosa.
Via outra = entretanto,  de outro modo.

Fonte: texto enviado pelo autor

sábado, 8 de junho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “16”

 

Lima Barreto (A ave estranha)

Uma anedota do Reino dos Perus

Um dia em que o azul do ar transluzia e os seus delgados filetes paralelos vibravam como cordas de violino, ao reino dos Perus, sem que se soubesse de onde, chegou uma ave estranha.

Era alta e garbosa, leve e esguia. Vinha envolvida numa doida atmosfera de rubro, de miragem dourada. A doce curva de seu pescoço tomava os mais elegantes ímpetos para atingir o céu distante. Rebrilhavam as suas penas nos matizes mais variados e imprevistos; ora, a turquesa das alturas vivia-lhe na plumagem. Ora, a esmeralda do mar serpenteava pelo seu dorso, por toda ela, aqui, ali, pintas, olhos, cruzes, estrelas de safiras, ágatas, de topázios e rubis brilhavam.

Foi grande a surpresa no domínio do Perus. Cada qual, não saindo do círculo de giz em que desde tempos imemoriais se haviam metido, ergueu a cabeça hedionda.

Oh, espanto! Oh, terror! A ave não se parecia com eles.

Não tinha as penas negras de brilho esverdeado, movia-se em todos os sentidos, os traços de giz não suspendiam seus passos. Mal pousou em terra, familiarmente, como se de há muito conhecesse o hábito, pôs-se a falar, a comentar com liberdade, com segurança. Não tinha medo nem das palavras, nem das ideias, nem dos outros perus, os maiores que eles diziam existir poderosos.

Era tolerante, sabia a grande variabilidade das coisas, a maneira diversa que cada qual pode compreendê-las.

Mas os perus não se podiam capacitar que o mesmo objeto visto por duas pessoas desperte dois modos de ver diferentes. Para eles toda árvore era verde, todo verde era um só. Isso nascia da reflexão da sua natureza íntima.

Todos eram iguais, do mesmo povo, com a mesma voz, com mesmos gostos; as diferenças que, porventura, se lhes pudesse dar o nascimento, os anos lhes tiraram.

Sabiam escrever, mas só de um modo, sabiam pensar, mas só de um modo, não admitiam a dúvida.

Era certo o que diziam, era exato o que representavam. Paravam nas palavras, não iam ao pensamento.

E a letra? Ah! A letra!

Quem tinha letra bonita, escrevia as verdades; e na letra bonita estava o imperativo categórico.

O mundo era rígido, para eles, igual, medido, não tinha diferenças, não tinha nuances, era uma curva abominável. O mundo, já lá dizia o filósofo, é a ilusão do nosso entendimento.

O espanto foi contido e com falsas vozes de amigo, os perus indagaram:

— Donde vens?

— De longe. Atravessei mares, lagos, rios e minhas asas por vezes roçaram na cabeleira verdolenta das florestas. Vi o azul fosforescente do mar dos trópicos, as adustas areias da Ásia, a gama de fogo do Chibuazo, do Cotopaxi. Vi pagodes, cubatas, palácios. Os boulevards de Paris, os jardins de Sandes e as nascentes do Nilo encantaram alternativamente meus olhos. Raças, povos, famílias, de cores e de sangue mais vários amei.

Fonte: Lima Barreto. Contos completos. São Paulo: Cia das Letras, 2010. Disponível em Domínio Público.

Hans Christian Andersen (O Livro Silencioso)

Numa estrada cercada por floresta de ambos os lados, vemos ao fundo uma fazenda dividida por essa estrada. Podia se ver uma bela e enorme árvore bem no centro dessa floresta. 

O dia estava ensolarado, calmo e fresco, como eram dias de verão na Dinamarca todas as janelas da casa da fazenda estavam abertas. Havia um toque de vida vindo de dentro da casa. Porém, no centro do jardim, debaixo de uma tenda feita de um arbusto de sirenes, estava um caixão aberto. Ele aguardava a tampa que o marceneiro estava fazendo para poder sepultar o morto. 

Ninguém veio para vê-lo. Ele estava só, deitado em seu leito e sobre sua face, um pano branco. Mas, ao se olhar de perto, podia-se notar que o semblante do morto estava em paz e até um leve ar de felicidade emanava de sua face. 

Algo interessante e inusitado aparecia debaixo da cabeça do morto, não havia um travesseiro como de costume, mas um livro grande e grosso. Suas folhas eram de um papel de alta qualidade e entre cada folha, uma flor. Havia ali um herbário completo selecionado e colecionado de diferentes lugares. 

Ele havia pedido que esse livro fosse enterrado com ele. Cada flor estava relacionada a um capítulo de sua vida.

– Quem era o morto? – Podemos perguntar. 

E a resposta era: 

– “Um velho estudante de Uppsala, uma cidade na Suécia situada ao norte, a 70 km de Estocolmo. Ele deve ter sido muito inteligente, pois aprendeu línguas, canto, sem contar que escrevia muito bem; mas então algo aconteceu... e ele parou com tudo que fazia, começou inclusive a beber bebidas alcoólicas muito fortes. Porque abandonou tudo, sua saúde um dia o abandonou também. Sem nada e não tendo a quem recorrer, escondeu-se no campo onde encontrou pessoas boas que lhe davam de comer. Apesar de tudo, ele continuava um homem bom, piedoso e simples como uma criança, mas quando uma de suas crises voltava, ele fugia para a floresta e se escondia lá como um animal que estava sendo caçado, mas se o levássemos para casa e dávamos para ele o livro com as folhas, flores e ervas secas, ele se acalmava e podia ficar sentado o dia todo a olhar para uma erva e depois para outra, e muitas vezes lágrimas escorriam pelo seu rosto. Somente Deus sabia a razão dessas lágrimas! Ele pediu que seu livro fosse enterrado com ele, agora ele está lá, apoiando sua cabeça, em pouco tempo a tampa será fechada, e ele terá seu doce descanso na sepultura.”

A mortalha fúnebre foi levantada. Havia paz no rosto do morto, um raio de sol caiu sobre ele; uma andorinha passou em seu voo rápido pelo caramanchão e girou, chilreando sobre a cabeça do homem morto.

Como é estranho, no entanto, - todos nós sabemos disso - pegar velhas cartas de nossa juventude e lê-las; faz uma vida inteira acordar, por assim dizer, com todas as suas esperanças, com todas as suas lembranças, com todas as suas tristezas. Quantas pessoas, como nós, em um tempo vivido com tanto carinho, agora vivem como se estivessem mortos para nós, e ainda vivem, mas por muito tempo não pensamos neles, contudo, ao nos lembrarmos de alguém, deveríamos sempre nos agarrar a essa lembrança para poder compartilhar nossas tristezas e alegrias.

A folha de carvalho murcha no livro, lembra o amigo, amigo dos tempos de escola, amigo para a vida; ele fixou esta folha no boné do estudante, na floresta verde quando esse pacto foi selado para a vida.

- Onde ele está agora?  

A folha escondida, lembra a amizade esquecida. 

Agora temos uma planta de estufa estrangeira, muito boa para os jardins nórdicos – é como se ainda houvesse fragrância nessas folhas! Ela a deu a ele, uma nobre do jardim de ervas nobre. A nenúfar, ele arrancou e molhou com lágrimas salgadas, essa flor nasce em águas doces. Há também uma urtiga, o que sua folha diz? O que ele estava pensando ao pegá-la, ao escondê-la? Outras surgem: o lírio do vale, da solidão da floresta e mais a folha de cabra ambas e outras adornam o vaso de flores da estalagem, por fim a folha de grama nua e afiada !

A sirene em flor derrama seu cacho fresco e perfumado sobre a cabeça do morto –, a andorinha voa novamente: “Qvivit! qvivit!” 

Chegam os homens com pregos e com martelos, a tampa é colocada sobre o morto, que descansa a cabeça no livro mudo. Escondido - esquecido!

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Bandolins)


Compositor: Oswaldo Montenegro

Como fosse um par que nessa valsa triste
Se desenvolvesse ao som dos bandolins
E como não, e por que não dizer
Que o mundo respirava mais se ela apertava assim
Seu colo como se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio se dançar assim
Ela teimou e enfrentou o mundo
Se rodopiando ao som dos bandolins

Como fosse um lar, seu corpo a valsa triste
Iluminava e a noite caminhava assim
E como um par, o vento e a madrugada
Iluminavam a fada do meu botequim
Valsando como valsa uma criança
Que entra na roda, a noite tá no fim
Ela valsando só na madrugada
Se julgando amada ao som dos bandolins
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Dança da Vida em 'Bandolins' de Oswaldo Montenegro
A música 'Bandolins' de Oswaldo Montenegro é uma obra que evoca a nostalgia e a beleza dos momentos efêmeros da vida. Através da metáfora da dança, Montenegro descreve uma cena onde uma mulher dança ao som dos bandolins, como se cada movimento fosse um ato de desafio e afirmação perante o mundo. A valsa triste que se desenvolve ao som dos bandolins pode ser interpretada como a própria vida, com seus altos e baixos, mas ainda assim bela e digna de ser dançada.

A letra sugere uma resistência contra o que é considerado 'impróprio' pela sociedade, representado pela mulher que dança apesar das expectativas. Ela não se deixa levar pelo que é convencionalmente aceito, escolhendo viver o momento presente com intensidade e paixão. A imagem da 'fada do botequim' ilumina a noite, trazendo um toque de magia e encantamento, reforçando a ideia de que a vida, mesmo com suas tristezas, possui uma luz própria que deve ser celebrada.

A música também toca na temática da solidão e da busca por amor, como visto na última estrofe onde a mulher 'valsando só na madrugada' se julga amada. Isso pode ser visto como uma reflexão sobre a busca por conexão e a esperança de encontrar amor, mesmo quando se está sozinho. 'Bandolins' é uma canção que fala sobre a coragem de viver a vida plenamente, apreciando cada momento como se fosse uma dança, mesmo que seja uma valsa triste.

Dicas de Escrita (Como Escrever uma Fábula) = 1

(por Danielle McManus, PhD*)

INTRODUÇÃO
Fábulas são contos curtos alegóricos que, normalmente, têm como personagens animais antropomórficos, embora plantas, objetos e fenômenos naturais também possam aparecer. Em fábulas clássicas, o personagem principal aprende algo a partir de um erro-chave e o conto termina com uma lição de moral que resume o que foi aprendido. 

Escrever uma fábula demanda uma narrativa forte e concisa na qual cada componente — personagem, ambiente e ação — contribui de forma direta e clara para a resolução da história e para sua moral. 

Embora cada pessoa tenha um processo de escrita único, este artigo fornece uma lista de passos sugeridos para ajudar você a criar a sua.

FAZENDO O RASCUNHO BÁSICO DA SUA FÁBULA

1 Escolha a moral.
Como a moral é o ponto crucial da fábula, muitas vezes, fica mais fácil rascunhar a sua se determiná-la. 

Ela deve estar relacionada ou refletir um problema pertinente à cultura com que os leitores se identifiquem.

Alguns exemplos de morais que podem inspirá-lo incluem:

"Por mais elevados que estejais, não desprezeis ao vosso semelhante."

"Nenhum ato de gentileza é coisa vã."

"Convites incitados pelo egoísmo não devem ser aceitos."

"Belas penas não fazem belos pássaros."

"Os estranhos devem evitar aqueles que disputam entre si."

2 Decida qual será o problema. 
Ele coordena a ação na fábula e será a fonte primária para a lição a ser aprendida.

Uma vez que o objetivo da fábula é veicular lições e ideias culturalmente relevantes, o problema central funciona melhor quando é algo com o qual muitas pessoas podem se identificar.

Por exemplo, em "A Lebre e a Tartaruga" somos rapidamente introduzidos pelo que se tornará o problema central ou conflito da história quando os dois personagens resolverem participar de uma corrida.

3 Decida qual será o elenco. 
Determine quem ou o que serão os personagens da sua fábula e que traços os definirão.

Uma vez que fábulas são feitas para serem simples e concisas, não opte por personagens complexos ou multifacetados. Em vez disso, crie um que incorpore uma única característica humana e mantenha-o dentro desse limite.

Como os personagens serão o veículo principal até a moral da fábula, escolha alguns que possam se relacionar mais facilmente a ela.

Em "A Lebre e a Tartaruga", os personagens são, como o título sugere, a lebre e a tartaruga. Uma vez que a primeira é comumente associada à rapidez, e a segunda, à lentidão, elas já têm as características principais em cima das quais se pode construir a história.

4 Determine o arquétipo dos personagens. 
Embora o animal ou objeto que você escolher já deva ter traços evidentes em si, como dito acima, você também precisará criar qualidades subjetivas relacionadas a esses traços.

Em "A Lebre e a Tartaruga", a lentidão da tartaruga é associada a equilíbrio e persistência, enquanto a rapidez da lebre é associada a ansiedade e confiança exagerada.

Há inúmeros personagens arquetípicos clássicos usados em fábulas que são bastante reconhecidos e associados a características humanas específicas. 

Escolher dois com traços opostos é, muitas vezes, útil para estabelecer o conflito na história.

Alguns dos arquétipos mais comuns e suas características incluem:

O leão: força, orgulho.
O lobo: desonestidade, ganância, voracidade.
O burro: ignorância.
A mosca: sabedoria.
A raposa: esperteza, astúcia.
A águia: autoridade, absolutismo.
A galinha: vaidade.
O cordeiro: inocência, timidez.

5 Escolha o ambiente. 
Onde os eventos da história acontecerão? 

Assim como na escolha da moral e do problema, pegue um ambiente que seja simples e fácil de ser reconhecido pela maioria das pessoas.

Ele também deve englobar os personagens e seus relacionamentos.

Tente fazer um ambiente simples, mas vívido — deve ser um local que os leitores possam reconhecer e entender facilmente, o que o poupará tempo explicando os detalhes dos arredores.

Por exemplo, na famosa fábula citada aqui algumas vezes, "A Lebre e a Tartaruga", o ambiente é uma estrada na floresta, que prepara o terreno para a ação (a corrida na estrada) e que engloba todos os outros personagens da história (criaturas selvagens).

6 Decida qual será a resolução do problema. 
Ela deve ser satisfatória e relevante em relação aos outros componentes da história, incluindo os personagens, seus relacionamentos e o ambiente.

Considere como os personagens resolverão o conflito e como essa resolução apoiará a lição e a moral a serem aprendidas com a história.

Por exemplo, na fábula "A Lebre e a Tartaruga", a resolução é simples — a lebre, em sua ansiedade, perde a corrida para a perseverante tartaruga.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* Danielle McManus, PhD é Conselheira de Graduação em Davis, Califórnia. Completou seu PhD em Língua e Literatura Inglesa na UC Davis em 2013.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 48

 

Humberto de Campos (A confissão)

Em que se prova que certas perguntas inocentes, claramente feitas, valem às vezes por uma informação perigosa.

O padre Sebastião havia tido notícia, por intermédio do sineiro, que a sua paróquia, colocada sob a invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava minada, encoberta, anarquizada pela corrupção dos costumes. Segundo o depoimento dessa testemunha, o bairro estava semeado de casas duvidosas, onde algumas senhoras levianas se juntavam durante certas horas do dia rindo, dançando, palestrando com rapazes e velhos divertidos, que ali ficavam até à noite, consumindo o seu tempo e gastando o seu dinheiro. Escandalizado com a denúncia, o virtuoso sacerdote chamou uma tarde, o sacristão e recomendou-lhe:

— Francisquinho, nós precisamos agir, na freguesia contra o demônio da corrupção. A seara de Deus, que se mostrava tão prospera, principia a ser devorada pelas lagartas do Demônio. E nós precisamos trabalhar, meu filho!

O sacristão arrebitou o nariz para melhor farejar o escândalo, e o reverendo explicou o seu plano:

— É preciso que você, que conhece toda a gente, indague por aí quais são as casas suspeitas em toda a paróquia. Veja o número dos prédios e venha avisar-me, para que ou tome as providências.

Francisquinho pegou no chapéu, sacudiu-o no cocuruto, e partiu, bamboleando pelas ruas do bairro, a indagar de café em café, de botequim em botequim, de antro em antro, onde estavam situados aqueles focos de corrupção. E à tarde, informava com a sua vozinha em falsete a Sua Reverendíssima, o vigário:

— Meu padrinho, descobri tudo. As casas são três: uma na rua dos Enforcados nº 29, outra na rua França Coelho nº 417, e outra na travessa de Santa Apolônia nº 46. E é só.

Padre Sebastião tomou nota em uma das folhas do breviário, decorou, depois, um por um, o nome das ruas e o número das casas e no dia seguinte foi, como de costume, confessar e absolver os fiéis.

Estava ele no confessionário ouvindo, peneirados no crivo de ferro, os pecados do seu rebanho, quando percebeu na última dama que se ajoelhara à sua frente, uma das senhoras cuja virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso, o sacerdote, em certo momento, indagou:

— E você, filha, nunca abandonou o seu lar para ir à Rua dos Enforcados nº 27?

— Não, senhor! — gemeu a moça.

— E à Rua França Coelho nº 417?

— Também, não, senhor! — insistiu a dama.

— E à travessa Santa Apolônia nº 46? — tornou o pároco.

— Não, senhor!

Padre Sebastião absolveu a linda ovelha impoluta, e como não tivesse mais ninguém a confessar, deixou-se ficar no confessionário a olhar para a porta da igreja por onde ia sair a última confessada. De repente, abriu a boca, espantado: no portal do templo, a formosa paroquiana tomava nota a lápis em uma carteirinha, que exumara ali, de uma custosa bolsinha de ouro. Desconfiado, o sacerdote encaminhou-se para a porta, arrastando em silêncio as suas sandálias moles de lã, e chegando perto da moça indagou, interessado, com a sua santa voz de além-túmulo:

— De que é que toma nota, minha filha?

A dama, sem se aperceber da pergunta, respondeu apenas, como se falasse a si mesma:

— Essas eu não conhecia, não!

E, guardando a carteirinha na bolsa de ouro, retirou-se descendo os degraus.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Aluísio de Azevedo (Inveja)

Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos.

O céu, vermelho e quente, debruçava-se sobre ela, envolvendo-a num longo abraço voluptuoso. De todos os lados ouvia-se o lamentoso estridular das cigarras e as árvores concentravam-se, murmurando, em êxtases, como se rezassem a oração do crepúsculo.

Àquela hora de recolhimento e de amor à natureza parecia comovida.

A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas de orvalho, prenhes de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação difusa. Uma boiada recolhia ao longe, abeberando nos charcos do caminho e bois tranquilos levantavam a cabeça, com a boca escorrendo em fios de prata, e enchiam a solidão das clareiras com a prolongada tristeza dos seus mugidos. Num quintal, entre uma nuvem de pombos, uma rapariga apanhava da corda a roupa lavada que estivera a secar durante o dia, enquanto um homem, em mangas de camisa, passava pela estrada, cantando, de ferramenta ao ombro. De cada casa vinha um rumor alegre de família que se reúne para jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado das mulheres e dos filhos.

Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à sombra das árvores foi  sentar-se, triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência da sua folhagem viçosa e florida. E aí ficou a cismar, perdido num profundo enlevo, como se o ardente perfume daquela tarde de verão fora forte demais para a sua pobre alma enferma de homem casto.

Estranhos e indefinidos desejos levantavam-se dentro dele, pedindo confortos de uma felicidade que lhe não pertencia e levando-o a cobiçar uma doce existência desconhecida, que seu coração magoado e ressentido mal se animava de sonhar por instinto.

E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! Nesse tempo, quanta esperança no futuro!.... Quanta inocência nas suas aspirações!... Quanta confiança em tudo que é da terra e em tudo que é do céu!... 

Nesse tempo não conhecia ele a luta dos homens contra os homens; não conhecia as guerras da inveja e as guerras da vaidade; não conhecia as humilhantes necessidades deste mundo; não conhecia ainda a responsabilidade da sua vida e não sabia como enquanto doía ambicionar muito e nada conseguir. Ah! Nesse tempo feliz, ele era expansivo e risonho. Nesse tempo ele era bom.

Mas, continuou a pensar, cruzando sobre o estômago as mãos finas e descoradas: – Enterraram-me numa casa abominável, para ser padre. Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: “Estuda, medita, reza, e faze-te um santo! És moço? Pois bem! Quando o sangue, em ondas de fogo, subir-te à cabeça e quiser estrangular os teus votos, agarra aquele cilício e fustiga com ele o corpo! Quando vires uma mulher, cujo olhar úmido e casto, te faça sonhar os deslumbramentos do amor, bate com os punhos cerrados contra o teu peito e arranha tua carne com as  unhas, até que sangres de todo o veneno da tua mocidade! Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te dentro da tua fé, como se fechasses dentro de um túmulo!”

E, com estas recordações, o infeliz quedara-se esquecido, a olhar cegamente para a paisagem que defronte dele ia pouco e pouco se desvanecendo e esbatendo nos crepes da noite; ao passo que no céu as estrelas se acendiam.

Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão; achava certo gozo amargo em deixar-se consumir pela áspera certeza da sua inutilidade física. Não queria a convivência dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado — o amor, a alegria, a doce consolação da família. O que ele desejava do fundo do seu desgosto era morrer, morrer logo ou quando menos, envelhecer quanto antes; ficar feio, acabado, impotente; que o seu cabelo de preto e lustroso se tornasse todo branco; que o seu olhar arrefecesse; que os seus dentes amarelassem e a sua fronte se abrisse em rugas. Desejava refugiar-se covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.

Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a ideia de sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um tremor frio de febre.

Todavia... replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível — todavia, o amor deve ser bem bom!... 

E dois fios compridos escorreram pelas faces gélidas do padre.

Nisto o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a fonte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.

O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dois passarinhos, descuidados na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem cochichando segredos de amor. A fêmea estendia a cabeça ao amigo e, enquanto este lhe ordenava as penas com o bico, ela, num arrepio, contraía-se toda, com as asas levemente abertas e trêmulas. Depois, uniram-se ainda mais, prostrados logo pelo mesmo entorpecimento.

Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou o guarda-chuva e. com uma  pancada lançou por terra o amoroso par.

Os pobrezinhos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus pés.

O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.   

No horizonte atenuava-se a última réstia de sol e o sino de uma torre distante começou a soluçar Ave Maria.

Fonte: Aluísio de Azevedo. Contos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público.