quinta-feira, 24 de outubro de 2024

José Feldman (Pafúncio no Manicômio)

(mais uma aventura da série Pafúncio, o jornalista trapalhão)

Era uma manhã ensolarada quando Pafúncio, o jornalista da revista “Fuxico & Fofocas”, recebeu uma ligação do editor que o deixou perplexo. 

“Pafúncio, precisamos de uma cobertura especial. Você vai ao manicômio e vai fazer uma reportagem sobre a vida lá dentro.”

Pafúncio, que não tinha a menor ideia do que significava cobrir um manicômio, apenas respondeu: “Claro! Vou fazer isso! Não se preocupe!” 

Ele estava tão animado que mal conseguia pensar na seriedade da situação.

Vestindo uma camisa de estampas psicodélicas e uma gravata que parecia ter sido desenhada por uma criança, Pafúncio chegou ao manicômio. Ao entrar, foi recebido por um enfermeiro que o olhou com desconfiança. “Você é o jornalista?” perguntou o enfermeiro.

“Sim, sou eu! Estou aqui para fazer uma matéria incrível!” Pafúncio respondeu, com um sorriso largo que parecia mais uma careta.

Assim que entrou na ala dos pacientes, Pafúncio começou a fazer perguntas aleatórias, sem prestar atenção nas respostas. “O que você acha do almoço servido aqui? É tão bom quanto o que servem em um restaurante chique?” perguntou a um paciente que estava sentado em um canto, olhando para o nada.

O paciente olhou para ele, confuso, e disse: “Eu só queria um pedaço de bolo…”

“Bolo! Ótima ideia! Vou anotar isso!” Pafúncio exclamou, enquanto anotava freneticamente. Ele estava tão entusiasmado que não percebeu que a conversa não estava indo a lugar algum.

A sua primeira trapalhada aconteceu quando ele decidiu que precisava tirar fotos para a reportagem. Ele começou a disparar flashes incessantemente, fazendo com que os pacientes se assustassem. 

Um deles, que estava concentrado em montar um quebra-cabeça, se levantou e gritou: “Pelo amor de Deus, pare com isso! Eu estou tentando focar!”

“Desculpe! É para a revista!” Pafúncio respondeu, mas já estava se distraindo com um paciente que estava dançando em cima de uma mesa.

“Olha, uma apresentação de dança!” ele gritou, enquanto começava a gravar em seu celular. O paciente, animado, começou a dançar ainda mais, mas acabou escorregando e caindo, fazendo com que uma série de cadeiras se derrubassem.

“Isso vai render uma ótima reportagem sobre talento escondido!” Pafúncio comentou, enquanto os enfermeiros começavam a correr em direção ao local do acidente.

A cada nova interação, Pafúncio se aprofundava mais em sua própria confusão. Ele encontrou um grupo de pacientes jogando cartas e decidiu que precisava participar. 

“Ei, posso me juntar a vocês? O que estamos jogando? Pôquer? Ou é um jogo de tabuleiro?” ele perguntou, sem entender que estavam jogando um jogo inventado por eles, que envolvia adivinhar quem era o “rei do dia”.

Os pacientes, rindo, decidiram que Pafúncio deveria ser o “rei” por um dia. 

Ele começou a fazer declarações absurdas, como: “A partir de agora, todos devem usar chapéus de papel alumínio!” e todos aplaudiram histericamente, enquanto Pafúncio se sentia como uma verdadeira celebridade.

Depois de algum tempo, um dos médicos entrou na sala e, ao ver a cena, ficou perplexo. “O que está acontecendo aqui?” ele perguntou, olhando para Pafúncio, que estava sentado em uma cadeira com um chapéu de papel alumínio.

“Sou o novo rei! E vocês todos são meus súditos!” Pafúncio exclamou, levantando os braços como se estivesse em um espetáculo.

O médico, já desconfiado, decidiu acompanhar o “jornalista” por mais um tempo. Pafúncio, ignorando completamente a seriedade do ambiente, começou a fazer perguntas sobre os tratamentos dos pacientes. 

“Então, como é receber terapia? É como ir a um spa, mas sem as toalhas quentes?” ele perguntou a uma mulher que estava desenhando.

A mulher olhou para ele, incrédula. “Depende… você gosta de água fria?” ela respondeu, enquanto Pafúncio anotava tudo como se estivesse em uma conferência de imprensa.

A situação foi se agravando quando Pafúncio decidiu que precisava entrevistar o diretor do manicômio. Ele se dirigiu ao escritório do diretor, sem saber que estava invadindo uma reunião importante. 

“Oi, sou Pafúncio! Estou aqui para fazer uma reportagem sobre a vida no manicômio! Posso fazer algumas perguntas?” ele interrompeu, enquanto os médicos olhavam para ele, atônitos.

“Desculpe, mas estamos ocupados,” respondeu o diretor, tentando manter a compostura. “Isso é uma reunião de emergência.”

“Uma emergência? Isso é ótimo! Posso fazer uma matéria sobre isso! ‘Emergência no Manicômio: O Que Está Acontecendo?’” Pafúncio disse, enquanto tentava se acomodar na mesa.

Os médicos começaram a se olhar, preocupados. 

“Acho que precisamos conversar com você,” disse um deles, levantando-se.

Com a confusão tomando conta, Pafúncio decidiu que era hora de fazer uma pausa e se dirigiu ao banheiro. Ao entrar, ele se deparou com um espelho e começou a fazer caretas, como se estivesse se preparando para uma grande apresentação. “E se eu me tornar o novo rosto da fama? Pafúncio, o jornalista que transforma manicômios em palcos!” ele pensou alto, rindo de sua própria ideia.

Enquanto isso, os médicos decidiram que ele era um risco para si mesmo e para os pacientes. Quando Pafúncio saiu do banheiro, foi cercado por enfermeiros e médicos que tentaram convencê-lo a se sentar e “conversar”.

“Mas eu só quero fazer uma reportagem!” ele protestou, mas os médicos não estavam ouvindo.

“Precisamos te internar por um tempo, você está se comportando de maneira estranha.” disse um dos médicos, enquanto Pafúncio olhava em volta, confuso.

“Estranho? Eu sou apenas um jornalista divertido! Olhem para mim!” ele exclamou, fazendo uma pose exagerada. “Não sou louco! Sou apenas… bem, um pouco excêntrico!”

Os médicos, já sem paciência, começaram a levá-lo para uma sala. 

“Pafúncio, por favor, não faça mais alarde! Você está atrapalhando a rotina do manicômio!” um deles gritou, enquanto Pafúncio tentava escapar.

“Isso não é uma prisão! Isso é uma reportagem!” ele respondeu, mas no fundo sabia que a situação tinha saído do controle.

Finalmente, em um último esforço para se libertar, Pafúncio começou a agir como se estivesse em um espetáculo, fazendo gestos grandiosos. 

“Eu sou o rei do manicômio! Vocês não podem me internar! Eu tenho que escrever sobre o talento escondido aqui!”

Mas, ao ouvir a palavra “internar”, um dos médicos, que já estava estressado, decidiu que já era suficiente. “Vamos colocar um ponto final nisso,” ele disse, enquanto Pafúncio continuava a protestar.

Finalmente, em uma cena digna de um filme de comédia, Pafúncio foi levado para fora do manicômio, enquanto gritava: “Isso vai ser uma ótima matéria! ‘Pafúncio, o jornalista que se tornou paciente!’”

E assim, ele saiu, rindo, sem saber que sua trapalhada se tornaria a maior história de todas. Afinal, a vida de Pafúncio era um grande espetáculo.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Renato Frata (O sapo)

Na barranca havia um sapo ao abrigo de folhas de taioba. Sonhava conhecer a outra margem, mas permanecia na alfombra a observá-la perdido no tempo entre sussurros, resmungares e roncos.

As horas passavam com ele a admirar o outro lado, o verde mais verde da margem de lá. As árvores mais fortes, sinal de que a terra era melhor que a do seu lado. Diferente, majestoso, uma visão a criar fantasias que o punham a delirar. Os pássaros que cantavam lá possuíam vozes possantes e até o céu, das cercanias da taioba, era mais azul e o sol mais reluzente.

- Que belo! - exclamava. - Num lugar tão especial os insetos devem ser mais saborosos... Um dia ainda me mudo.

E permanecia sonhando desejos repetidos: o lado de lá, bonito e próspero, prometia...

Olhando, entretanto, para seu corpanzil, viu-se mais velho do que era e bem cansado, mesmo sem ter feito coisa alguma além de imaginar o quão bom poderia ser o outro lado, especialmente pelos apetitosos insetos que imaginara viverem ali.

A prova da velhice era sua respiração trôpega que o obrigava a ficar de boca aberta, puxando e expelindo ar, o que lhe tirava roncos do peito como uma máquina barulhenta. Não se poderia dizer se era obstrução respiratória ou a perda de elasticidade do decorrer da idade.

O fato é que, enquanto pensava, resmungava.

Era um sapo resmungão!

Como não se conhece a língua dos sapos, só outro entenderia o que expressava e, como vivia só, talvez fosse o peso da consciência a lhe cobrar a inanição e covardia por nunca ter atravessado o ribeirão.

Sua pele rugosa tingida de terra indicava que ele se preparava sem o saber, para voltar a ser terra como ditam os ciclos da vida, mas o que importa é que ele, sob as folhas, sugeria apenas desejo, e não o ímpeto.

Sonho sonhado não passa de vão desejo.

Uma dúvida surge nessa reflexão; por que não atravessava o ribeirão, se era anfíbio? Por que não fora pela ponte abaixo de onde estava a taioba? Perguntas sem respostas.

Há coisas que como o sapo nos põem sob camisa de força, com pensamentos a voarem flanando qual asas de borboleta, sem se importarem se está frio ou calor, se chove ou não, porque o importante é a aventura, a realização. Mas há os que flanam em mariposas em volta da luz e acabam por morrer chamuscados. Esses são os insensatos.

Com o sapo seria assim; covarde ou preguiçoso? Se não queria enfrentar a correnteza nem atravessar a ponte, por que sonhava?

Como disse Madre Tereza de Calcutá, "a disciplina é a ponte entre os objetivos e as concretizações".

Mas cobrar isso de um sapo que não conheceu a Madre e nem não sabia ler, seria um contrassenso. O que apavora, contudo, é que muitas vezes nós, que sabemos da Madre tanto quanto da leitura, por preguiça ou desmazelo nos transformamos em sapo sob taioba.

Olhamos a outra margem e viajamos... apenas na inveja...

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Chega de saudade)

(bossa nova, 1958)
Compositores: Tom Jobim e Vinicius de Moraes


Vai minha tristeza e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade,
A realidade é que sem ela não há paz,
Não há beleza, é só tristeza
e a melancolia que não sai de mim
Não sai de mim, não sai

Mas se ela voltar, se ela voltar,
Qua coisa linda,  que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços os abraços
hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, calado assim, colado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é prá acabar com esse negócio
de você viver sem mim

A Melodia da Saudade
A canção "Chega de Saudade", é um marco na história da música brasileira, sendo considerada por muitos como o ponto de partida do movimento Bossa Nova. A letra da música expressa um sentimento profundo de saudade e o desejo ardente pelo retorno de um amor ausente. A tristeza é personificada e enviada para convencer a amada da necessidade de seu regresso, destacando a dor e o vazio deixados por sua falta.

A repetição do verso "Chega de saudade" ressalta o limite da tolerância do eu lírico para com a ausência da pessoa amada, enquanto a descrição da realidade sem ela é pintada como desprovida de paz e beleza, repleta apenas de tristeza e melancolia. Essa intensidade emocional é característica das composições de Jobim, que frequentemente explorava temas de amor e natureza em suas obras.

A música também utiliza metáforas, como a comparação dos beijos que serão dados com a quantidade de peixes no mar, para ilustrar a imensidão do amor que o eu lírico sente. A promessa de abraços e carinhos sem fim reforça a ideia de um reencontro apaixonado e a necessidade de pôr um fim à distância que separa os amantes. A canção é um apelo emocional que reflete a universalidade do sentimento de saudade e a esperança de reencontro.

Embora considerada o marco zero da bossa nova, “Chega de Saudade” não é na opinião de Tom Jobim uma composição bossa nova. Em depoimento ao jornalista Tárik de Souza (para o livro Tons sobre Tom), ele esclareceu: 

“Minha mãe criou uma menina, que também se chamava Nilza (nome da mãe do Tom) e me pediu para comprar um método de violão para ela, que tinha boa voz. Comprei o método do Canhoto que trazia (...) aquele sistema antigo (de acordes) primeira, segunda, terceira. (...)

Fui obrigado a explicar para ela naquele método (...) e acabei me envolvendo com aquela sequência de acordes, completamente fáceis. Inventei uma sucessão de acordes, que é a coisa mais clássica do mundo, e botei ali uma melodia.

Mais tarde, Vinícius colocou a letra. De certa forma, sentindo a novidade da bossa nova, do João Gilberto e daquele meio em que a gente vivia, talvez Vinicius tenha sido levado a intitular a música ‘Chega de Saudade’. (...) Esse título é engraçado porque a música tem algo de saudade desde a introdução. Lembra aquelas introduções de conjuntos de violão e cavaquinho, tipo regional. (...).

Na segunda parte, passa para maior (modo maior). Acontecem todas aquelas modulações clássicas que você encontra na música antiga. Isso cria um absurdo: o ‘Chega de saudade’ já é uma saudade jogando fora a saudade!”.

Realmente, a bossa nova de “Chega de Saudade” está quase toda na harmonia, nos acordes alterados, pouco utilizados por nossos músicos da época, e na nova batida de violão executada por João Gilberto. A novidade rítmica fica muito clara, especialmente sob os versos “dentro dos meus braços os abraços / hão de ser milhões de abraços / apertado assim...”, com o violão indo na contramão da forma institucionalizada de se tocar samba. Aliás, a inovação já está presente na gravação de Elizeth Cardoso, a primeira de “Chega de Saudade”, feita para o elepê Canção do amor demais, que tem a participação de João Gilberto como violonista.

Esse disco, lançado pela pequena marca Festa, do produtor Irineu Garcia, é considerado por Tom Jobim (em depoimento a Zuza Homem de Mello, em outubro de 68) “um marco, um ponto de fissão, de quebra com o passado”. No dia 10.7.58, seis meses depois da gravação da Elizeth, aconteceu a do João, naturalmente repetindo a mesma batida de violão e apresentando o seu estilo bossa nova de cantar.

Este disco histórico, que traz na outra face o baiãozinho “Bim-Bom” (classificado no selo como samba), provocaria a pitoresca e mal-humorada reação de Álvaro Ramos, gerente das Lojas Assunção, quebrando o disco, indignado com o que o Rio lhe mandava. Atribuída no anedotário da bossa nova a Osvaldo Gurzoni, diretor de vendas da Odeon em São Paulo (que também não gostara do disco), a verdadeira identidade do autor da façanha (Ramos) seria revelada por Ruy Castro no livro Chega de saudade. Esse episódio aconteceu em São Paulo, em agosto de 58, às vésperas do lançamento do disco de 78 rotações, que precedeu em alguns meses o elepê homônimo.

Fontes: 
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. vol.2.
https://www.letras.mus.br/tom-jobim/49028/significado.html

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 59

 

José Feldman (O Tempo e os Idosos)

A passagem do tempo é um fenômeno que afeta a todos nós, mas para as pessoas idosas, ela traz consigo um significado profundo e multifacetado. À medida que os anos se acumulam, as experiências vividas transformam-se em memórias, e cada ruga ou fio de cabelo branco conta uma história. Para muitos, a velhice é uma fase de reflexão, onde o tempo é visto não apenas como um número, mas como uma rica tapeçaria de vivências.

Para os idosos, as memórias se tornam tesouros. Cada lembrança é uma janela para um passado que moldou quem eles são hoje. Recordações de infância, momentos marcantes, amores perdidos e conquistas celebradas são revisitados com carinho. Muitas vezes, essas histórias são compartilhadas com familiares e amigos, criando laços entre gerações e transmitindo sabedoria.

“Lembro-me de quando era jovem e sonhava em viajar pelo mundo”, pode dizer um avô, enquanto seus netos escutam com atenção. Essas histórias não são apenas relatos do passado; elas oferecem lições sobre resiliência, amor e a importância de aproveitar cada momento.

Com o passar dos anos, muitos idosos começam a refletir sobre o significado do tempo. A percepção do tempo muda; dias, meses e anos podem parecer passar mais rapidamente. Essa reflexão pode gerar um sentimento de urgência em viver plenamente, levando-os a cultivar relacionamentos e a realizar sonhos que, por muito tempo, foram deixados de lado.

“Não posso deixar para depois o que posso fazer hoje”, é uma frase que pode ecoar nas mentes de muitos. Esse novo olhar sobre a vida e o tempo pode resultar em decisões ousadas, como aprender uma nova habilidade, viajar para lugares que sempre desejaram conhecer ou até mesmo mudar de estilo de vida.

A velhice traz consigo uma sabedoria inestimável. Após anos de vivências, os idosos possuem uma perspectiva única sobre os desafios da vida. Eles aprenderam que a felicidade muitas vezes está nas pequenas coisas — um por do sol, uma conversa com um amigo, ou um momento de silêncio. Essa sabedoria é um presente que eles compartilham, não apenas com seus familiares, mas com a comunidade ao seu redor.

Muitos idosos se tornam mentores, oferecendo conselhos valiosos aos mais jovens. Têm a capacidade de ver além das dificuldades imediatas, lembrando aos outros que “as tempestades passam e o sol sempre volta a brilhar”.

Entretanto, a passagem do tempo também pode trazer desafios. A solidão é uma realidade para muitos idosos, especialmente à medida que amigos e familiares vão se afastando. A perda de entes queridos pode ser uma das experiências mais dolorosas, e a adaptação a essa nova realidade requer tempo e apoio.

Enfim, a passagem do tempo para as pessoas idosas é uma celebração da vida. Cada ruga é um lembrete de risadas, lágrimas e momentos significativos. A velhice pode ser uma fase de desafios, mas também é uma época rica em amor, aprendizado e gratidão.

Nosso papel é ouvir suas histórias, aprender com suas experiências e honrar suas jornadas. Ao fazermos isso, não apenas celebramos a vida dos idosos, mas também nos tornamos mais conscientes do valor do tempo em nossas próprias vidas. Afinal, cada dia é uma nova oportunidade para criar memórias, aprender e amar.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Eduardo Martínez (Amarildo, um homem carregado de devaneios)

Amarildo, homem sem grandes feitos na vida, tentava aplacar a própria mediocridade em devaneios. Desse modo, não raro, imaginava-se na pele de algum desbravador, seja alguém que já teria existido, seja até mesmo algum Indiana Jones das telas do cinema. 

Tamanhos pensamentos, o sujeito já havia atravessado o Atlântico tantas vezes, que perdera as contas. Cinco, seis, nove? Talvez duas dúzias, contando as viagens em navios piratas, sem mencionar aquela outra em uma jangada típica da sua Fortaleza, no Ceará. 

Em uma dessas travessias, eis que houve um motim comandado pelo terrível Barba-Negra. Amarildo, justamente o capitão, foi atirado ao mar repleto de tubarões famintos. Por sorte do resquício de sonho naquele pesadelo, eis que surgiu um golfinho salvador. O homem, agarrado à barbatana dorsal do inesperado amigo, conseguiu sair ileso daquelas mandíbulas ferozes.

Após se ver a salvo, Amarildo se despediu do golfinho. O bicho tinha família e precisava retornar para o lar, doce lar, que ficava ali mesmo no salgado Atlântico. Ademais, o gajo só precisaria dar algumas braçadas para chegar a uma ilha no meio do oceano.

Não tardou, Amarildo pisou na alva areia. O local parecia deserto. Com a barriga roncando, ele tratou de arrumar algo para saciar a fome. Por sorte que às vezes acomete os aventureiros, ele encontrou alguns coqueiros carregados.

Com sua destreza, conseguiu pegar e abrir tantos cocos que desejou. Barriga cheia, sentiu, pela primeira vez desde que foi arremessado do seu navio aos tubarões, um leve sono.

Quase adormecido, Amarildo tomou um susto. Não era possível! O cruel e traiçoeiro Barba-Negra surgiu do nada e encostou a ponta da espada na barriga do Amarildo.

— Pensou que iria me escapar, Amarildo?

— Você de novo, Barba-Negra!

— Sim, Amarildo! 

— Dê-me uma espada para lutarmos de homem para homem.

Barba-Negra, vendo aquele maltrapilho esvaído, teve um raro momento de compaixão. Desembainhou a outra espada que carregava e a jogou na areia ao lado do rival. Este, ligeiro que nem falcão-peregrino, pegou a espada e rolou para o lado para se desvencilhar do primeiro golpe do traiçoeiro rival, que cortou as areias da praia.

As lâminas afiadas logo começaram a travar o combate de uma vida. A cada toque entre elas, faíscas eram liberadas para surpresa dos animais que se juntaram para assistir ao duelo. Enquanto os macacos mostravam os dentes, os papagaios charlavam coisas ininteligíveis, enquanto duas serpentes, atrás de uma moita, sibilavam antes do acasalamento. 

E lá estavam aqueles dois seres humanos digladiando, quando um dos oponentes, justamente o Amarildo, se distraiu com o zumbido de uma mosca e foi atingido na barriga pelo vil metal do Barba-Negra. E lá se foram as tripas do perdedor caírem sobre a areia. Não tardou, lobos, saídos não se sabe de onde, avançaram sobre o banquete de última hora.

Pobre Amarildo, contorcendo-se em dores, foi devorado vivo, enquanto o malvado Barba-Negra gargalhava alto para todos ouvirem. 

— Há, há, há, há!!!

De tão alto, acabou despertando o Amarildo, que dormia na rede pendurada na varanda. Acordou suando em bicas e com forte dor no lado direito da barriga. Por sorte, foi socorrido ao hospital pelos vizinhos do edifício onde morava. Era apendicite.

Fonte:
Blog do Menino Dudu. 22 outubro 2024.

Recordando Velhas Canções (Samba de Orfeu)

(samba, 1959)
Compositor: Luiz Bonfá e Antonio Maria


Quero viver,    
quero sambar 
Até sentir a essência da vida 
me falta ar 
Quero sambar 
quero viver  
Depois do samba, ta bem 
Meu amor, posso morrer 

Quero viver,    
quero sambar 
Até sentir a essência da vida 
me falta ar 
Quero sambar quero viver  
Depois do samba, ta bem 
Meu amor, posso morrer 

Quem quiser gostar de mim 
Se quiser vai ser assim 
Vamos viver 
vamos sambar  
Se a fantasia rasgar  
Meu amor 
eu compro outra  

Vamos sambar, vamos viver  
O samba é livre,  
Eu sou livre também até morrer.

A Liberdade e a Alegria no 'Samba de Orfeu'
A música 'Samba de Orfeu', é uma celebração da vida e da liberdade através do samba. A letra expressa um desejo profundo de viver intensamente e aproveitar cada momento, mesmo diante das adversidades. A repetição da frase 'quero viver, quero sambar' reforça a ideia de que a vida e o samba estão intrinsecamente ligados, sendo o samba uma metáfora para a alegria e a liberdade de viver.

A menção à fantasia que pode se perder, mas que pode ser comprada novamente, simboliza a resiliência e a capacidade de se reinventar. A fantasia, no contexto do samba, representa a alegria, a criatividade e a expressão pessoal. Mesmo que a vida apresente desafios e perdas, a música sugere que é possível recuperar a alegria e continuar a dançar, a viver. A liberdade é um tema central, destacada na frase 'o samba é livre, e eu sou livre até morrer', indicando que a liberdade é um valor inalienável e essencial para a existência plena.

Além disso, a música aborda a aceitação e a autenticidade nas relações pessoais. A linha 'quem quiser gostar de mim, se quiser vai ser assim' sugere que a aceitação deve ser incondicional, sem tentar mudar a essência do outro. 'Samba de Orfeu' é, portanto, uma ode à vida, à liberdade e à autenticidade, celebrando o samba como uma expressão máxima desses valores.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

José Feldman (O Escritor e o Filósofo)

Era uma vez, em uma pequena aldeia cercada por montanhas e florestas, um escritor chamado Hirram e um filósofo chamado Hermes. Ambos eram conhecidos por suas habilidades excepcionais: Hirram era famoso por suas histórias encantadoras e por criar mundos imaginários, enquanto Hermes era reverenciado por suas reflexões profundas sobre a vida e a existência. 

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo bosque, Hirram teve uma ideia. “Hermes, que tal fazermos uma competição? Cada um de nós pode apresentar uma obra que represente a nossa visão do mundo. Aquele que tocar mais corações será proclamado o vencedor!” 

Hermes, sempre ponderando, concordou. “É uma proposta interessante, mas devemos lembrar que a verdadeira sabedoria não é apenas sobre vencer, mas sobre aprender e compartilhar.” 

E assim, decidiram que cada um teria uma semana para trabalhar em sua obra. Hirram, entusiasmado, sentou-se em sua mesa e começou a escrever. Em suas histórias, ele criou heróis que enfrentavam dragões e viajantes que descobriam terras mágicas. Seu mundo era colorido e vibrante, repleto de aventuras e emoções. 

Hermes, por outro lado, passou seus dias contemplando. Ele caminhou pelas florestas, observou os riachos e escutou os pássaros cantando. Em vez de escrever imediatamente, ele refletiu sobre as questões que o intrigavam: o que era a felicidade? Como encontrar propósito na vida? A natureza e a essência do ser humano tornaram-se seus temas centrais. 

Ao final da semana, ambos se reuniram na praça da aldeia para apresentar suas criações. O povo estava animado, curioso para ouvir o que cada um tinha a dizer. 

Hirram foi o primeiro. Com a voz vibrante, ele contou uma história épica sobre um jovem que partiu em uma jornada para salvar seu reino. As reviravoltas, os desafios e as conquistas emocionaram a plateia. A cada palavra, os ouvintes eram transportados para um mundo de magia e esperança. Ao final, aplausos ecoaram na praça, e muitos estavam visivelmente emocionados. 

Em seguida, foi a vez de Hermes. Ele levantou a voz serena e começou a compartilhar suas reflexões. Falou sobre a natureza da vida, a efemeridade do tempo e a busca por significado. Seus pensamentos eram profundos e desafiadores, e ele fez perguntas que ecoavam na mente de todos. A plateia ouvia atentamente, absorvendo cada palavra como se fossem pérolas de sabedoria. 

Quando terminou, um silêncio reverente tomou conta da praça. As pessoas estavam pensativas, imersas em suas reflexões. A competição parecia ter tomado um rumo inesperado. 

Após as apresentações, a aldeia decidiu que não haveria um vencedor. Ambos, Hirram e Hermes, tinham oferecido algo valioso: um mundo de sonhos e uma visão da realidade. O povo percebeu que, enquanto as histórias de Hirram os transportavam para longe, as reflexões de Hermes os traziam de volta ao presente, ajudando-os a entender melhor suas próprias vidas. 

Certa noite, enquanto caminhavam juntos sob a luz das estrelas, Hirram virou-se para Hermes e disse: “Eu desejava vencer, mas agora vejo que ambos temos nosso valor. Você me ensinou que a vida é tão rica em significado quanto em imaginação.” 

Hermes sorriu. “E você me lembrou que as histórias têm o poder de conectar as pessoas, de fazer com que sonhem e sintam. Juntos, somos mais fortes.” 

Moral da História 
A verdadeira sabedoria reside na união entre a imaginação e a reflexão. Enquanto a criatividade nos leva a sonhar, a filosofia nos ajuda a entender a realidade. Ambos são necessários para uma vida plena e significativa.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Campos Sales (Lucélia/SP, 1940 - 2011, São Paulo/SP)



Aparecido Raimundo de Souza (Ecos de um silêncio que não dava trégua)

TATIANA SEMPRE amou a música. De paixão. Era a sua vida, o seu objetivo, o seu agora, e, igualmente, o seu porvir. Desde pequena, ainda na faixa dos cinco para seis anos, as notas de um piano ou a melodia suave de um órgão nas missas dominicais do padre Daniel a encantavam e acalmavam o seu espírito inquieto, notadamente quando se deparava com as partituras (ainda que de uma simples melopeia.) Sua paixão avassaladora pelos hinos, e pelas canções românticas se fazia como um trilho paralelo. Uma disposição anímica, um escape no meio do cotidiano efervescente, e uma forma direta de comunicação, tipo assim, como algo soberbo que se estendia além, muito aquém das palavras. No entanto, com o passar dos anos, algo que deveria ser uma fonte de alegria e esperança, se tornou um tremendo campo de batalha emocional, como uma arena imensa onde a frustração e o ressentimento se assarapantaram juntamente com as obras que costumava executar.

O pai de Tatiana, o Chico Marreta, sempre foi um homem de grandes expectativas. Para ele não havia limites. Com o sucesso profissional açambarcado pela sua eterna criança, ele transferiu as todas as suas edacidades (avidez) para ela, esperando que a jovem musicista fosse uma ensancha (oportunidade) sôfrega de seus próprios devaneios e conquistas. Em razão disso, uma tara esfaimada e gulosa, quase as raias do pantagruélico em ver a Tatiana nos píncaros das estrelas, se consubstanciava numa única essência, como um reflexo do desejo de brilhar e superar a si próprio, ou qualquer coisa que ele mesmo trazia escondido a sete chaves dentro de si. Contudo, na busca galopante por realizações pessoais, ele se descuidou, ou seja, deixou de lado algo que deveria ser primordial: o respeito, a consideração, a deferência e a cortesia pela vontade e pelos sentimentos de sua única descendente. Tatiana, no início, tentou corresponder às expectativas do pai. 

De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Ela se dedicou, de corpo e alma e com profundo afinco, ao treino incansável, buscando em cada aula, em cada audição, a aprovação que sabia ser a chave para o coração de Chico Marreta. Mas o que começou como uma busca por amor e aceitação, logo se transformou em um peso traiçoeiro e esmagador. As sinfonias, que antes representavam seu refúgio, a sua vida, seus sonhos e aspirações, passaram a ser uma fonte constante de pressão e dor à farta. Sendo assim, cada concerto, cada ensaio, cada encontro, se tornava uma espécie catastrófica de obrigação e não mais uma alegria inebriante. O ponto de ruptura culminou. Aconteceu exatamente durante um recital importante no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. Chico Marreta, como de costume, se fazia pomposo na plateia lotada, observando atentamente e com os olhos arregalados, não de um pai carinhoso e dócil, de um crítico intransigente. 

No entanto, a verossimilhança de um desempenho impecável não se alinhava com a realidade daquela noite. Tatiana estava nervosa e, em meio à performance, cometeu alguns erros que, para ela, foram profundamente dolorosos. Ao final, quando os aplausos da plateia ainda ecoavam, Chico Marreta se aproximou e, ao invés de oferecer palavras de consolo, de ternura e compreensão, acertou literalmente falando, uma tremenda marretada no âmago da sua garotinha, ou seja, mergulhou afogueado numa crítica dura, perversa, ácida e severa se enveredando, sem nenhuma cortesia e polidez, por desvãos de passos meândricos (tortuosos), no tocante a falta de (segundo ele) a total despreparação de sua única herdeira de vínculo biológico. A ferida imensurável que se abriu naquele momento amargo, se fez deveras profunda. Como um desfiladeiro que lembrava aquela ponte para o céu nas montanhas de Neman, na China. Tatiana, com os olhos baços e marejados, sentiu um peso que nunca antes experimentara. 

A sensação de inadequação e decepção se tornou quase insuportável. Em vez de orgulho, se sentia como se estivesse falhando não só como artista, mas também como filha. Naquele instante, a relação que antes parecia sólida começou a esfriar, ou melhor dito, a rachar, e o que restou logo depois, apenas e tão somente o eco de um silêncio frio e ensurdecedor. O diálogo entre pai e filha se tornou, no mesmo lado da moeda, numa espécie de recesso dentro de um solo minado, se distanciando cada vez de forma mais longínqua, em vista de uma enormidade de ressentimentos não ditos e feridas abertas sem esperanças de serem cicatrizadas. Cada tentativa de Tatiana de expressar a sua insatisfação, culminava respondida com uma mistura amarga de desdém e confusão. Chico Marreta, incapaz de compreender a profundidade do sofrimento da filha, continuava a insistir em suas expectativas, acreditando que agia da melhor forma possível. Ledo engano!

O tempo passou e, como tudo na vida, o sofrimento ímpar e penoso começou a se perpetuar em rostos serenos de compreensão. Tatiana, aos poucos percebeu e não só isso, passou a ver que o seu valor não se fazia atrelado às expectativas do autor de seus dias, e sim à sua própria essência trazida de berço, e obviamente aos seus acalantados sonhos imorredouros de adolescente. Embora a relação com o pai ainda fosse ofuscada, marcada por uma certa distância, ela aprendeu a tocar as suas músicas com um novo simulacro (arremedo). Canções de simetrias sublimes e de autoconhecimento, e, sobretudo, de majestosa libertação pessoal. O caminho para a sua cura foi longo, penoso, cheio de altos e baixos. Difícil, repleto de tropeços aqui e acolá. Muitas vezes, a menina dos olhos cor de mel se via solitária. Porém, “não há mal que sempre ature, nem bem que nunca se acabe.” De repente, do nada, como uma luz que se acende inesperadamente, em meio de um breu tremendo, Tatiana compreendeu que, às vezes, é necessário dar alguns passos para trás. 

Sopesar contras e prós, se afastar para encontrar a própria personalidade, e nela, de contrapeso, o valor indubitável da sua. Chico Marreta, por seu lado desprovido, ausente e distanciado da filha, começou a perceber, igualmente, a importância de ouvir, de escutar, em vez de apenas impor ordens e condições. A reconstrução da confiança e do entendimento mútuo é uma jornada contínua. À poucos passos, pai e filha estavam e não só isso, careciam e se faziam abertos e dispostos a trilharem por essas veredas cheias de curvas e dissabores, com a probabilidade de que, um dia, as notas de suas relações encontrariam um acorde de adesão entrelaçado a um engajamento de indestrutível expectativa. Dessa forma, mesmo com as repetições intransigentes do silêncio obscuro ainda ressoando em seus “eus escondidos", pai e filha, filha e pai, aprenderam a tocar as suas próprias cantatas. Na verdade, se coadunaram com a convicção de que, eventualmente, as suas estradas e veredas se entrelaçariam, e, obviamente, se cruzariam novamente num ponto ainda que afastado. Agora não mais como um campo minado aberto publicamente. Em oposto, entrelaçado como uma entonação de eurritmia (harmonia) onde a compreensão e o amor incondicionalmente se faziam renovados.
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Nota: entre parênteses significado das palavras não usuais, obtido no Dicionário Online de Português, pesquisa realizada pelo editor do blog.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (As Laranjas da Sabina)

 (lundu/tango, 1902)
Compositor: Artur de Azevedo


Sou a Sabina, sou encontrada
Todos os dias lá na calçada
Lá na calçada da Academia
Da Academia de Medicina

Um senhor subdelegado
Moço muito restingueiro
Ai, mandou, por dois soldados
Retirar meu tabuleiro, ai...

Sem banana macaco se arranja
E bem passa monarca sem canja
Mas estudante de medicina
Nunca pode passar sem a laranja
A laranja, a laranja da Sabina.

Os rapazes arranjaram
Uma grande passeata
Deste modo provaram
Quanto gostam da mulata, ai

Sem banana macaco se arranja

Na manhã de 25 de julho de 1889, um grupo de estudantes da Imperial Escola de Medicina uniu-se em uma inesperada passeata pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. O motivo: Sabina, uma baiana vendedora de laranjas, havia sido proibida de armar seu tabuleiro em frente à faculdade, na Rua da Misericórdia. A decisão de expulsá-la, anunciada pelo subdelegado da área, provocou imediata reação dos alunos. Por onde passava, o cortejo ganhava mais adeptos e recebia aplausos de uma multidão entusiasmada. Bem-humorados, os estudantes carregavam uma coroa feita de bananas e chuchus e uma faixa criticando a autoridade, a quem chamaram de “O eliminador das laranjas”. Passaram também pelas redações dos principais jornais da cidade denunciando a arbitrariedade, o que renderia grande repercussão para o caso.

“Um viva aos rapazes, que acabam de escrever a melhor cena das próximas futuras revistas de ano”, publicava a Gazeta de Notícias três dias depois. O jornal estava sendo profético. As “revistas de ano” eram peças teatrais cômicas e musicadas, nas quais desfilavam os eventos tidos como mais importantes do ano anterior. Daí sua denominação: era o momento de passar um ano inteiro em revista. Em 1890, os irmãos escritores Artur e Aluízio Azevedo encenaram sua revista de ano, A República, e Sabina foi uma das personagens mais comentadas. Noite após noite, os cariocas corriam até o Teatro Variedades Dramáticas só para ouvir a canção As laranjas da Sabina. Sabina era interpretada por uma bela atriz grega, Ana Menarezzi, bem diferente da idosa rechonchuda retratada pela imprensa.

Em 1902, quando a indústria fonográfica chegou ao Brasil, As Laranjas da Sabina foi gravada ainda no sistema de cilindros pelo cantor Cadete e já em disco por Bahiano, ainda nesse mesmo ano. Em 1906, a atriz Pepa Delgado gravou o lundu.

Os anos passavam, mas quem disse que Sabina era esquecida? No início do século XX, as agremiações carnavalescas mantinham grupos formados por homens que, nos dias de folia, saíam às ruas fantasiados de baianas e mulatas. Numa homenagem à velha quitandeira da porta da Escola de Medicina, eles eram chamados, no grupo Kananga do Japão, de “Sabinas da Kananga”. Na sociedade dos Fenianos, eram conhecidos simplesmente como “Sabinas”.
Fonte:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2013/08/as-laranjas-da-sabina.html

domingo, 20 de outubro de 2024

Varal de Trovas n. 614

 

José Feldman (Pafúncio e a Exposição de Cães)

Era um sábado ensolarado, e a cidade estava animada com a tão esperada Exposição Canina, um evento que reunia cães de todas as raças e tamanhos, além de seus orgulhosos donos. A revista “Fuxico & Fofocas” decidiu que era a oportunidade perfeita para Pafúncio, seu melhor jornalista, fazer uma cobertura da exposição.

Pafúncio chegou ao local da exposição vestindo uma camisa estampada de patinhas de cachorro e um boné, que mais parecia uma toalha de piquenique. Estava tão animado que mal conseguia conter seu entusiasmo. 

“Hoje vai ser um dia cheio de fofocas e sorrisos!” ele exclamou para si mesmo.

Assim que entrou na grande tenda onde a exposição aconteceria, Pafúncio ficou maravilhado com a quantidade de cães. Havia desde os pequenos Chihuahuas até os majestosos São Bernardos, todos exibindo seus trajes e adereços. 

Ele se dirigiu imediatamente à primeira bancada que encontrou, onde um juiz estava avaliando um poodle exuberante.

“Oi, tudo bem? Posso tirar uma foto desse lindo poodle?” Pafúncio perguntou, já preparando sua câmera. 

O juiz, um homem de aparência séria, assentiu, mas Pafúncio, tomado pela empolgação, começou a disparar flashes incessantemente. O poodle, irritado com os flashes, começou a latir e pular, e o juiz, exasperado, teve que segurá-lo.

“Calma, amigo! Não é para você ficar irritado!” Pafúncio gritou, mas ele mesmo estava tão concentrado na foto que não notou que estava criando um caos.

Após algumas tentativas frustradas de entrevistar donos de cães e tirar fotos, Pafúncio decidiu que precisava de uma abordagem mais direta. Ele se aproximou de um dono de um buldogue francês que estava sentado calmamente em uma cadeira. “Oi! Se o seu buldogue pudesse falar, o que ele diria sobre você?” Pafúncio perguntou.

“O que ele diria? Provavelmente que eu sou o melhor dono do mundo!” respondeu o homem, rindo.

“E que você precisa dar mais biscoitos!” Pafúncio completou, anotando tudo em seu bloco. 

Ele estava se divertindo, mas não percebeu que o buldogue francês começou a olhar para ele com um semblante desconfiado.

Depois de algumas entrevistas, Pafúncio se sentiu confiante o suficiente para fazer algo mais ousado. Ele decidiu que tiraria uma foto de todos os cães juntos. Ele subiu em uma pequena plataforma e gritou: “Atenção, cães! Todos para uma foto com o Pafúncio!”

Os donos, começaram a reunir seus cães, mas Pafúncio, na ânsia de capturar o momento perfeito, começou a disparar flashes de sua câmera sem parar. Os cães, confundidos e irritados com os flashes, começaram a latir e a se agitar, criando um verdadeiro alvoroço.

“Calma, pessoal! É só uma foto!” gritou Pafúncio, mas sua tentativa de acalmar a situação só fez piorar. Um Chihuahua nervoso começou a correr em círculos, e logo todos os cães na tenda se juntaram à confusão.

“Socorro, o que está acontecendo?” Pafúncio gritou, enquanto tentava descer da plataforma, mas, em seu desespero, acabou tropeçando e caindo de cara no chão. 

A cena era hilária: ele estava cercado por uma mistura de raças caninas, todas latindo e pulando ao seu redor.

Desesperado, Pafúncio se levantou e começou a correr, mas os cães, ainda irritados pelos flashes, decidiram que ele era o alvo perfeito para sua fúria. Ele fez uma curva, tentando escapar, mas a tenda estava cheia de obstáculos: mesas de petiscos, cadeiras e até uma fonte de água para cães.

Os latidos se tornaram ensurdecedores, e Pafúncio, em sua corrida desgovernada, acabou derrubando uma mesa cheia de biscoitos para cães. Os biscoitos voaram pelo ar e, instantaneamente, todos os cães mudaram de alvo, indo atrás das guloseimas que estavam caindo.

“Ufa, consegui!” Pafúncio pensou, parado em um canto, mas seu alívio durou pouco. Ele não percebeu que, enquanto os cães estavam distraídos com os biscoitos, ele ainda era o foco de atenção. Assim que a mesa foi destruída, os cães voltaram a olhar para ele, e percebendo que ainda estava cercado, começou a correr novamente.

“Não! Por favor, não me mordam!” ele gritou, enquanto todos os cães pareciam decidir que seguir Pafúncio era a coisa mais divertida a fazer. 

Ele saiu da tenda em disparada, cruzando o gramado e fazendo uma curva em direção à saída do evento.

As pessoas olhavam em choque e riam ao mesmo tempo, enquanto Pafúncio corria, com uma matilha de cães atrás dele, todos latindo e pulando. 

Ele se sentiu como um personagem de um filme de comédia, onde a situação se tornou completamente insana.

Finalmente, Pafúncio chegou à saída, onde alguns seguranças estavam de plantão. Eles, percebendo a cena, tentaram conter os cães que estavam se espalhando. 

“O que está acontecendo aqui?” perguntou um dos seguranças, tentando ajudar.

“Cães! Eles estão atrás de mim!” Pafúncio gritou, ofegante.

Os seguranças, em vez de ajudá-lo, começaram a rir. “Acho que você se tornou a nova atração do evento!” disse um deles, enquanto tentava controlar a situação.

Com um último esforço, Pafúncio conseguiu se desvencilhar dos cães, que finalmente se distraíram com uma nova bandeja de biscoitos que alguém havia trazido. Ele se afastou, aliviado da própria desgraça.

Ao chegar em casa, ele decidiu que tinha uma história para contar. Enquanto escrevia sua matéria, ele refletiu sobre como a vida pode ser imprevisível, e que, mesmo em meio ao caos, havia sempre espaço para boas risadas.

“Pafúncio, o jornalista que não só entrevistou cães, mas também se transformou em uma verdadeira atração canina!” ele anotou, rindo ao pensar na cena que vivera. 

E assim, mais uma vez, ele provou que, independentemente de quão desastrosa uma situação possa parecer, sempre há um lado divertido.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = Américo Ferrer Lopes (Queluz/Portugal)



Olavo Bilac (Sumé: Lenda dos Tamoios)

Foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens.

Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invadem o mar, quase tocando ilhas fecundas, que verdejam ao sol, entre bancos de areia, — vivia um povo forte e valente, respeitado na paz e temido na guerra. Eram os Tamoios, cujas canoas guerreiras dominavam a costa, desde o cabo de S. Tomé até Angra dos Reis, guardando as aldeias, formadas de cabanas sólidas, cercadas de altas paliçadas inexpugnáveis. Quando as tribos vizinhas ousavam invadir a seu território, — o canto do pajé concitava (instigava) os filhos da grande nação. E, ao som dos chocalhos de pedras, das buzinas de madeira, dos tambores e das flautas de taquara, — os grandes exércitos tamoios abalavam em hostes cerradas, para repelir o invasor. E a nação não descansava, enquanto os inimigos não fugiam ao valoroso embate das suas armas de gloriosas, — maças pesadas feitas de lenho de palmeira, formidáveis machados chatos de madeira vermelha, flechas agudas, arcos da altura de um homem. 

Mais de uma vez, assim, os Goitacazes e Goianazes tiveram de ver castigada a sua ousadia. Quando a guerra findava, toda a tribo comemorava com grande festa a vitória de seus filhos. E a música e a dança celebravam, em torno dos prisioneiros que tinham de ser comidos vivos, a derrota dos inimigos. Depois vinha de novo a livre e arriscada existência da paz, — a pesca, nas canoas ligeiras que voavam como as aves do mar à flor das águas, e a caça dentro dos matos bravos, povoados de feras.

Ora, um dia, em que uma grande multidão da tribo, à beira-mar, estava reunida, celebrando uma vitória, — viram todos que sobre o largo oceano, vinha, do lado em que o sol aponta, uma grande figura, que mais parecia de deus que de homem.

Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.

Era Sumé, enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra. E Sumé operava prodígios nunca vistos. Diante dele, os matos mais cerrados se abriam por si mesmos, para lhe dar passagem: a um aceno seu, acalmavam-se os ventos mais desencadeados: quando o mar furioso rugia, um simples gesto de sua mão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas, abrandarem as secas. E até as feras quando o viam, vinham submissamente lamber-lhe os pés, arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seus milagres, tomaram Sumé para seu conselheiro. E todas as tardes, os chefes adiantavam-se para ele, — enquanto em roda, mulheres, homens e crianças paravam a escutar, — vinham contar-lhe a história de seu povo, e interrogá-lo sobre as suas crenças, e pedir-lhe conselhos e lições.

E diziam-lhe a sua religião: “Tupã, para fazer o céu e a terra, criou as mães para tudo. O sol é a mãe do dia e da noite. A lua é a mãe das plantas e dos animais. Os homens nasceram, e foram maus. Tupã, para castigar a sua maldade, mandou que as águas crescessem desmedidamente e cobrisse tudo. Então, viram-se os peixes nadando entre as folhagens das árvores, e os tigres afogados boiando sobre a vastidão das ondas crescidas. E os homens fugiam de monte em monte. E o céu se abria em relâmpagos e em quedas assombrosas de água. Mas um varão forte, que Tupã amava, — um varão de alma grande, que tinha o nome de Tamandaré, salvou a raça guardando dentro de uma canoa os seus filhos, e livrando-os do naufrágio espantoso. E de Tamandaré saímos nós, guerreiros que não tememos o trovejar das armas dos inimigos, quando o furor os assanha no campo de guerra, — mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quando ouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças de maldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor e criador de todas as coisas e de todos os seres...”

Sumé amou aquela nação simples e sóbria, sem vícios e sem pecados. Louvou-lhe a bravura na guerra e a modéstia na paz. E quis torná-la feliz, ensinando-lhe o meio de viver na abundância. E ordenou que todos os homens válidos, depois de haverem abundantemente provido de caça e de pesca as cabanas, em que as mulheres e as crianças ficariam, seguissem com ele, para obrigar a terra a dar-lhes o sustento diário.

Disse-lhes Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa; basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas.” 

Mas um pajé, velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ele: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!” 

Seguiram-no eles. E a terra, por toda a parte, era nua e ingrata. Matagais crespos e impenetráveis subiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela natureza primitiva era inimiga do homem, inimiga sem piedade, que afiava contra ele os dentes de suas feras e as pontas agudas dos seus espinheiros. Mandou Sumé que desbastassem a terra, e tivessem, para destruir os matos fechados, a mesma bravura e o mesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos.

Ordenou-lhe depois que amanhassem o solo, e, dando-lhes sementes várias, disse-lhes que as lançassem sem conta sobre o seio da grande mãe assim preparado.

Deste modo correu Sumé todo o litoral. E atrás dele todos os homens válidos da tribo seguiam. Os dias passavam. Passavam os meses. Passavam os anos. E de sol a sol, a febre do mesmo trabalho sacudia aquela multidão, que a virtude e a bondade de um só homem arrastavam seduzida e cativa. 

Quando Sumé chegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo os trabalhadores:

— É tempo de retroceder... Ides ver como a terra vos paga em abundância e ventura as bagas de suor que gastastes em seu favor!

Retrocederam. E, então, começou o deslumbramento da tribo. À medida que se aproximavam do ponto de partida, viam a terra mudada, de mais em mais, abrindo-se em folhagens que não conheciam, em frutos que nunca tinham visto. E, quando chegaram ao grande acampamento, as mulheres e as crianças dançavam e cantavam. Os celeiros da tribo regurgitavam. O céu parecia mais belo; mais belo parecia o mar; mais bela a natureza toda; porque a tribo toda via agora a natureza através dessa alegria que é a filha da felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, s bananeiras fartas; tinham nascido os carás e as mandiocas; tinham nascido os milhos de espigas de ouro; tinham nascidos os algodoeiros, os feijões e as favas...

Sumé não achou bastante o que já tinha feito: e ensinou-lhes a arte de fabricar a farinha, moendo a mandioca: e revelou-lhes os segredos da navegação, aperfeiçoando as suas igaras rústicas, dando-lhes velas, que, como asas de pássaros, ajudassem a voar com o vento, e lemos que, como caudas de peixes, as ajudassem a cortar ondas. E toda a tribo abençoou Sumé.

E em honra sua, todas as tardes, quando o pôr-do-sol ensanguentava as águas, a tribo dançava, ao bater compassado dos tambores, em torno do grande velho, — filho querido de Tupã, pai da Agricultura, Gênio protetor dos Tamoios.

Mas os anos passaram. E, com o passar dos anos, passou a gratidão da tribo.

Os pajés, ciumentos do poder do Santo, envenenaram a alma da nação: “Como? Pois ela, tão forte, que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria sempre sob o domínio de um só homem, um estrangeiro, um homem de pele branca?”

E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se apertava.

E ele ouvia, e sorria. E a sua grande alma, toda sabedoria e bondade, compreendia e perdoava a ingratidão das gentes.

Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que vociferavam, ameaçando-o. E todos eles estavam armados. E as fisionomias de todos eles transpiravam ódio e rancor.

O Santo Sumé quis falar. Não pôde. Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio cravar-se no seu peito. O Santo sorriu. E, arrancando o dardo das carnes, atirou-o ao chão, e foi andando, de costas, para o lado do mar. Então, o ataque recrudesceu. As setas voavam, às centenas, aos milhares, todas atingindo o alvo. Sumé, com o mesmo sorriso nos lábios, ia sempre caminhando de costas para o lado do mar, e, de uma em uma, ia arrancando do corpo as setas que não o magoavam.

Quando chegou à praia, entrou pela água, cresceu sobre ela, sobre ela se equilibrou, e, sempre de costas, foi fugindo, — e sorrindo, sem amaldiçoar os ingratos a quem dera fartura.

E toda a tribo, paralisada de assombro, via, oscilando de leve sobre as ondas que o nascer do sol ensanguentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela doce figura, de pele branca com o a luz do dia, trazendo espalhada sobre o peito, até os pés, como uma toalha de neve, a longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar…

Fonte: Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios. 1906.