quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

José Feldman (Sob o prisma de um dia de chuva)


O céu estava carregado de nuvens cinzentas, prenunciando uma tempestade que se aproximava da cidade. Era um dia típico de outono, quando o clima inconstante trazia consigo a promessa de chuva. Na esquina da Avenida Paraná, um grupo de pessoas aguardava o semáforo abrir, suas expressões variando entre impaciência e resignação. A maioria estava com guarda-chuvas em mãos, mas havia quem, como sempre, insistisse em não se deixar levar pelo mau tempo.

Entre eles, estava Laura, uma jovem mulher de cabelos cacheados e um sorriso que iluminava o rosto, mesmo sob a ameaça de chuva. Ela observava a movimentação ao seu redor, notando como a cidade se transformava com a chegada das gotas de água. 

Para Laura, a chuva era uma benção, uma pausa no ritmo frenético da vida urbana. Ela adorava o som da água batendo no chão e o cheiro da terra molhada.

— Olha como as pessoas reagem à chuva! — disse Laura para seu amigo Cido, que estava ao seu lado.

Cido, um homem de olhar sério e pragmático, apenas balançou a cabeça. 

— Para mim, é só um incômodo. Nada como um dia ensolarado, onde as coisas funcionam. — Ele olhou para o céu, já escuro, e suspirou.

Laura riu. 

— Mas você não vê a beleza nisso? As pessoas se apressam, mas a chuva transforma tudo. As cores ficam mais vivas, e há uma certa poesia no caos.

Enquanto conversavam, um grupo de mulheres passou apressado, rindo e se protegendo sob um único guarda-chuva. Laura notou a camaradagem entre elas, a forma como se apoiavam mesmo em meio ao desconforto da chuva.

— Olha só! — Laura apontou. — Elas estão se divertindo, mesmo com o tempo ruim.

Cido fez uma careta. 

— Ou estão apenas tentando não se molhar. A chuva faz com que as pessoas fiquem mais irritadas, não mais felizes.

— Você tem uma visão tão negativa! — Laura retrucou, mas não pôde deixar de notar como as gotas começavam a escorregar pelo rosto de Cido. — Às vezes, é preciso relaxar e deixar a chuva te tocar.

— Relaxar? — ele perguntou, arqueando uma sobrancelha. — E ficar encharcado? Não consigo entender como você consegue ver beleza nisso.

O semáforo finalmente abriu, e eles começaram a caminhar. A cidade, em sua essência, parecia se dividir: os que corriam, os que se protegiam e os que, como Laura, simplesmente decidiam aproveitar o momento. 

Ela observou um homem, provavelmente com uns sessenta anos, que caminhava lentamente, sem guarda-chuva, deixando a chuva molhar seu cabelo grisalho. Ele parecia alheio ao mundo, perdido em seus pensamentos.

— Olha aquele homem. — Laura disse, apontando. — Ele parece estar em paz.

— Ou é apenas imprudente. — Cido respondeu, com um tom sarcástico. — Ninguém gosta de ficar molhado.

— Às vezes, a imprudência é uma forma de liberdade. — Laura insistiu. — Ele deve estar lembrando de algo bom, uma lembrança que a chuva trouxe à tona.

Cido revirou os olhos. 

— Você e suas teorias. Eu só quero chegar seco ao trabalho.

Enquanto continuavam a caminhar, Laura se lembrou de sua infância, das tardes passadas em casa, ouvindo a chuva tamborilar no telhado. Aqueles eram momentos de aconchego, de histórias contadas pelo avô, de chocolate quente e risadas. Para ela, a chuva sempre foi sinônimo de calor humano.

— Você não sente falta de momentos assim? — perguntou Laura, olhando para Cido. — De simplesmente parar e apreciar?

— Não posso me dar ao luxo de parar. — Ele respondeu, com um tom de voz que não deixava espaço para discussão. — O mundo não espera.

Laura não queria discutir mais. Eles chegaram a um ponto onde a calçada estava cheia de poças, e ela decidiu dar um salto. A água espirrou, e Cido a olhou, incrédulo.

— Você é louca! — ele exclamou, mas não pôde evitar um sorriso. — Vai ficar ensopada!

— E daí? — Laura respondeu, rindo. — Às vezes, é preciso se molhar!

Enquanto caminhavam, outros homens e mulheres se juntavam ao caminho, cada um com suas reações à chuva. Algumas mulheres, com seus sapatos de salto, pulavam de maneira cuidadosa para não sujar as roupas. Homens, por sua vez, pareciam mais apressados, com expressões de frustração, tentando evitar as poças.

— Olha a diferença! — Laura exclamou. — As mulheres parecem mais adaptáveis, enquanto os homens estão tão preocupados em manter as aparências.

— Não é bem assim. — Cido argumentou. — A questão é que muitos homens foram ensinados a não demonstrar vulnerabilidade. Para eles, ficar molhado é um sinal de fraqueza.

Laura refletiu sobre isso. 

— E será que isso não é um problema? A pressão para se manter firme e forte pode ser pesada. Eu vejo isso em muitos dos meus amigos.

Cido ficou em silêncio, considerando as palavras da amiga. Enquanto isso, a chuva continuava a cair, e a cidade parecia ganhar vida própria. Os sons da água, os risos, e até mesmo as reclamações se misturavam em uma sinfonia urbana.

Quando chegaram ao destino, Laura estava completamente molhada, mas com um sorriso no rosto. 

— Viu? Sobrevivi! E, no final das contas, a chuva não é tão malvada assim.

— Você é impossível. — Cido disse, balançando a cabeça, mas sem esconder um sorriso. — Você sempre encontra uma maneira de ver o lado bom das coisas.

— E você sempre encontra um jeito de se preocupar demais. — Laura respondeu, com um olhar brincalhão. — Vamos tomar um café e aquecer esses pensamentos pessimistas!

Enquanto entravam no café, a cidade continuava a ser banhada pela chuva, e em cada gota, havia histórias, sentimentos e a beleza de um momento compartilhado. 

Laura e Cido, com suas visões distintas, aprenderam um pouco um com o outro naquele dia, enquanto o mundo lá fora continuava a girar, indiferente e majestoso.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Marcos Antonio Campos* (Aurora)


É um belo anel, mesmo esquecido pelo tempo dentro de uma caixinha de joias. Ele foi posto lá no exato momento em que teus olhos fugiram de mim. Foste embora nas velas de tua nau à procura de auroras distantes. A saudade não mitigou teu nome em minha lembrança.

Este anel não me foi dado. Foi devolvido quando partiste. Não quis refratar os teus sonhos nem caminhar no teu arco-íris. Eu não queria aventuras, tinha medo de voar e perdi a estrela que estava em minha mão.

Acordo cedo e vou trabalhar, sempre faço o mesmo percurso. Não me aventuro por caminhos desconhecidos. A aurora ainda está acordando e já vai dourando os cachos da acácia, a cor dos teus cabelos. As xananas** ainda estão abrindo suas pétalas para o sol e eu vejo o teu sorriso. Os passarinhos começam a cantar e eu lembro como era melodiosa tua voz.

Atravessar o canteiro central é como ter o coração transpassado por uma flecha. As rosas vermelhas têm a cor de teus lábios, as flores têm o perfume que roubaram de ti e as pétalas têm a maciez de tua pele. 

Além do anel, você deixou-me também a bandeira de seu país, que, na aurora desfraldada, tem a cor do teu cabelo, o azul de teus olhos e o carmim de tua boca. À noite, a bandeira amarrotada cobre-me os olhos para o crepúsculo e acende minha narina com teu perfume. Acordo com os acordes da aurora. Mãos como raios de luz esquentando minha pele. O galo cantando, avisando-me a hora, os girassóis sorrindo para mim, alegrando-me o dia.

Vbu navegar o horizonte, abrir minhas velas, atracar em outros cais. Talvez tu tenhas ido a Macondo, voar com as araras, quem sabe estás nas montanhas de Shangri-lá ou ainda matriculada na Universidade Corânica de Tumbuctu. Certezas não as tenho, mas acredito que tu foste procurar o nascer da aurora, desde a terra do sol nascente ao solar da Bela Vista.

Desejo ardentemente acordar nos braços de minha Aurora, seguir meu caminho livre dessa quarentena. É difícil seguir os passos de minha gazela, principalmente quando meu corcel está a todo galope, por isso comprei uma passagem para Boa Vista.
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* O autor é de Natal/RN

** Xanana = é uma planta da América tropical com potencial ornamental, por suas flores e folhagem atrativas, que ocorre naturalmente em pastagens, pomares, beira de estradas, carreadores e terrenos baldios. Apesar de ser rústica e, provavelmente, exigir tratos culturais simples, ainda não possui informações suficientes que permitam a definição de técnicas visando o seu cultivo.

(esta crônica obteve o Menção Honrosa no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. 
Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Newton Sampaio (Castigo)

Andava, o Esteves, nos últimos tempos, com a vista piorando cada vez mais. Não sabia o que vinha a ser aquilo. Foi ao Hospital de Caridade. 

O médico lhe falou em uma porção de coisas que ele não entendeu bem: — cristalino, opacidade, catarata... — recomendando ao pobre velho que não saísse muito de casa, que evitasse a luz forte, que isto, que aquilo.

Esteves, na manhã da consulta, veio para casa profundamente desanimado. Que boa espiga lhe arranjara a vida!

A mulher, a Sinhana, Deus já a levara há muitos anos. Só ficara uma filha, a Lila, que não tardaria a arranjar marido, porque se pusera mulher, de uma hora pra outra.

Tinha enorme pena de sua menina. Ainda bem que Lila era muito cordata, muito disposta a tudo. Mas aquilo lhe doía fundo. Pela felicidade que não lhe poderia dar, jamais.

Na semana santa ninguém foi trabalhar. E Esteves se deixou também ficar em casa. Ruminando, fazendo planos. 

Era na sexta-feira maior. O velho estendeu-se na tarimba, sufocado de calor.

— Que horas são, Lila?

— Já passa das duas, pai.

Lila ia e vinha, arrumando coisas, com os chinelinhos fazendo reque-reque sem parar. Combinara ir à procissão com umas companheiras. E não queria sair sem deixar tudo em ordem.

Passava, a todos os momentos, pela porta do quarto do pai. E, de vez em quando, chegava-se pra perto do velho, a ver se Esteves precisava de água, de café.

— Não, filha. Pode ficar descansada.

Esteves, sem querer, se pôs a observá-la. Lila estava com as formas bem definidas. Busto cheio, ancas nítidas.

Deu uma sacudidela na cabeça.

— O que é isso, diacho?

As mesmas imagens, porém, teimavam. Teimavam cada vez mais fortes.

Quis disfarçar.

— Que horas é a procissão do Senhor Morto?

— O seu vigário marcou pras seis. Mas eu quero sair antes. Por causa da Lurdinha, que me espera.

Lila, no canto da salinha, enfiava a meia na perna bem torneada. 

Do lugar em que se encontrava, Esteves a via perfeitamente. E murmurava:

— Credo! Deus até pode me castigar...

O relógio da igreja badalou três vezes.

— Foi nesta hora que Jesus morreu — refletiu — Bem nesta hora.

Ele estava lá em cima, na cruz, perdoando os nossos pecados. De repente, o sol começou a escurecer... Tudo começou a ficar assim esquisito, cheio de sombras...

Esfregou os olhos.

— Ora dá-se! E isto agora?

Dilatou as pupilas, para enxergar melhor. Mas a porta começou a ficar embaciada. A filha se foi rodeando de um sombreado indefinido. E as pernas da filha cresceram, logo se misturaram, se misturaram as pernas da filha numa só mancha que ia diminuindo, lentamente, que ia diminuindo, que desaparecia.

Esteves, angustiado, deu um salto violento na cama. Procurou um apoio. Não o encontrou.

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Voto de Minerva”


– Há situações que ocorrem nas reuniões de associações civis regidas por estatutos e regimentos, em que o presidente tem que exercer o seu direito ao “VOTO DE MINERVA”

A expressão tem sua origem em uma história da mitologia grega. Agamenon, o comandante da Guerra de Troia, ofereceu a vida de uma filha em sacrifício aos deuses para conseguir a vitória do exército grego contra os troianos. Sua mulher, Clitemnestra, cega de ódio por esse ato irracional, o assassinou. Com esses dois crimes impunes, o deus Apolo ordenou que o outro filho de Agamenon, Orestes, matasse a própria mãe para vingar o pai.

Orestes obedeceu, mas seu crime também teria que ser vingado. Nada obstante, em vez de aplicar a pena, Apolo deu a Orestes o direito a um julgamento, que seria o primeiro do mundo. A decisão, tomada por 12 cidadãos que fizeram as vezes de jurados, terminou empatada.

Chamada pelos gregos de Atenas (Palas Atená), a deusa da sabedoria proferiu seu voto, ante a indefinição do empate. O nome Minerva, segundo explicação de um conto da mitologia grega, vem do latim mens, que significa mente ou pensamento. A deusa grega Palas Atená corresponde à deusa romana Minerva, da sabedoria, das artes e da guerra, que protegeu os gregos na Guerra de Troia. Como deusa da paz e da razão, ela presidia as artes, a literatura, a filosofia, a música e toda a atividade inteligente.

Minerva é representada com um capacete na cabeça, a égide no braço e uma lança na mão, símbolos de guerra tendo ainda, junto a si, um mocho e diversos instrumentos de matemática, símbolos das ciências e das artes. E o voto da deusa da sabedoria, no julgamento de Orestes, foi no sentido de desempatar o feito poupando a vida de Orestes, fiel ao seu espírito lúcido e construtivo. Eis a razão da expressão VOTO DE MINERVA (também conhecido como “voto de desempate” ou “voto de qualidade”). Hoje essa prática também é adotada nos tribunais, conselhos e demais colegiados onde ocorram julgamentos, no sentido de se decidir, havendo dúvida, sempre em favor do réu acusado.

Até no folclore de antanho essa expressão se faz presente, como na “Dança da Desfeiteira”, costume de antigas origens, a caminho da extinção, muito praticada nas festas da quadra junina. Funcionava assim: antes avisada, a orquestra executava um ritmo forte, ao som do qual os pares evoluíam no salão ou na ramada (quintais ornamentados com ramas onde eram realizadas as festas), num ritmo que lembra uma marcha valsada, pelo constante movimento dos braços (bem esticados) e do corpo dos brincantes mirificados pela dança.

Tais espaços ficavam apinhados de dançarinos e aqueles casais que “por coincidência” estivessem bem em frente à orquestra (pau e corda de antes, banda nos dias de hoje) quando esta cessava abruptamente de tocar, o cavalheiro era obrigado a recitar uma estrofe irreverente de 4 versos com apenas duas rimas, que era respondido de pronto pela dama numa única frase, traduzindo repulsa, simulando despeito ou aprovando o que acabara de ouvir.

Após a declamação, a orquestra prosseguia no ritmo da Desfeiteira até o próximo casal e assim sucessivamente, para o deleite, o aplauso ou as estrondosas vaias dos demais, dependendo da capacidade de improvisação do cavalheiro, suas falas de criticas ou de puro endeusamento à sua dama.

A Desfeiteira (que deriva de “desfeita”: ato ou dizer desairoso, que fere alguém em sua dignidade, desconsideração, afronta, insulto) visava primordialmente evitar a monotonia nas festas juninas, que eram bem diferentes das de hoje, o que era plenamente conseguido, mercê das gargalhadas que causavam, pela inteligência ou acrimônia dos versos, a falta de rima, a inibição ou a gaiatice do declamador. O folclorista paraense Francisco Manoel Brandão no livro “Terra Pauxi” nos mostra como eram tais improvisos, na linguagem típica do interior:

O cavalheiro:
Garça murena-parda
Pescuçu de vai-e-vem
Estu dançando a desfeiteira
Nus braçus do meu bem!…
 
A dama: 
Inxirido!

Em outros autores, surge o aproveitamento da expressão popular abordada neste texto, mostrando que ela não é privativa dos ambientes eruditos:

O cavalheiro:
O surriso de alegria
Que a tua cara conserva
Te livra de tuda culpa
Com meu voto de Minerva!…
 
A dama: 
Te esconjuro disgramado!

Convém lembrar que no Brasil, por atávica formação do povo brasileiro, até os assuntos de maior seriedade acabam em samba, quando não, ironizados nas músicas do carnaval e até nos versos da desfeiteira…
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Estas expressões idiomáticas são publicadas na Terça da Cultura Popular em sites do Pará.
Nas palavras de Célio Simões “A TERÇA DA CULTURA POPULAR começou por acaso. Publiquei num dos sites em que escrevo, um texto explicando a origem de certas expressões idiomáticas, que usamos quase sem perceber nos diálogos do cotidiano. Cito, como exemplo, algumas já divulgadas: Chato de galocha, Mão de vaca, Casa da mãe Joana, Santinha de pau oco, Chegar de mãos abanando, Sem eira nem beira, Dor de cotovelo, etc. Outras virão, na medida do possível. Atualmente tais textos são divulgados por vários sites e blogs de Belém (1), Santarém (1), Óbidos (2), Manaus (1)”
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fonte: Texto e imagem enviados pelo autor.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 80

 

José Feldman (A beleza das pequenas coisas)

Acordo com o som familiar do despertador, um pequeno aparelho que luta contra a gravidade da minha vontade de ficar na cama. Ao meu redor, a modernidade se faz presente: smartphones, tablets e uma infinidade de gadgets que tornam a vida mais prática, mas que, ao mesmo tempo, me fazem lembrar de um tempo em que a simplicidade era a regra e não a exceção.

Na minha infância, o despertador era um relógio que precisávamos dar corda manualmente. O ritual de acordar era cheio de sons e movimentos. Eu me lembro do cheiro do café fresco que minha mãe preparava na cozinha, enquanto o rádio tocava músicas que embalam a vida de uma forma mais lenta e reflexiva. A tecnologia avançou, mas também trouxe um ritmo apressado à vida. E, por mais que eu adore a conveniência do mundo moderno, não consigo esquecer as delícias do passado.

Quando olho pela janela, vejo a rua repleta de carros modernos, com suas formas aerodinâmicas e repletos de tecnologia. 

A primeira vez que andei em um carro, era um fusca gelo, com seu motor barulhento e aquele cheiro característico de gasolina misturado com couro desgastado. O carro não tinha direção hidráulica, ar-condicionado ou, muito menos, assistente de estacionamento. Era uma experiência visceral, cheia de imperfeições que tornavam cada viagem única.

Hoje, os carros se tornaram verdadeiras máquinas. São equipados com telas sensíveis ao toque, sistemas de navegação e uma infinidade de recursos que prometem segurança e conforto. A tecnologia é impressionante, sem dúvida, mas sinto falta daquelas discussões acaloradas no caminho, dos engarrafamentos em que se contava histórias e se cantava músicas. O que era uma jornada simples se transformou em uma sequência de comandos e aplicativos, onde a interação humana parece ter diminuído.

As ruas, por sua vez, estão adquirindo carros elétricos que deslizam praticamente em silêncio. Enquanto isso, o barulho dos motores rugindo e o cheiro do escapamento dos carros antigos vão se tornando memórias distantes. A modernidade trouxe eficiência e uma nova forma de pensar sobre sustentabilidade, o que é admirável. Mas, em meio a tanta inovação, pergunto-me: onde foram parar as conversas informais que aconteciam em um semáforo vermelho? Onde estão os momentos de pausa que a vida moderna parece ter eliminado?

Os aparelhos domésticos também passaram por uma revolução. Antigamente nossas avós passavam horas na cozinha, utilizando um fogão de lenha que aquecia não apenas os alimentos, mas o coração da casa. Era um espaço de convívio, onde as histórias se entrelaçavam com o cheiro do pão fresco saindo do forno. Hoje, a cozinha é dominada por micro-ondas, air-fryers, fogões digitais e eletrodomésticos que prometem agilidade e eficiência. Cozinhar se tornou uma tarefa rápida, mas com isso, muitos perderam a arte da paciência e do envolvimento emocional na comida.

Ainda assim, algo me toca quando penso nos aparelhos da modernidade. Eles são, sem dúvida, impressionantes. Um smartphone na palma da mão nos conecta ao mundo inteiro, traz informações, entretenimento e a possibilidade de interagir com pessoas de diferentes partes do planeta em um segundo. Ao mesmo tempo, essa conexão global muitas vezes nos desconecta do que está bem diante de nossos olhos. As reuniões familiares se tornaram encontros onde todos estão imersos em suas telas, enquanto o calor humano e as conversas profundas ficam em segundo plano.

Na busca pela eficiência e pela rapidez, parece que esquecemos da beleza das pequenas coisas: um passeio de carro sem destino, uma conversa à mesa ou o tempo gasto para preparar uma refeição. A modernidade trouxe muitos avanços, mas também nos ensinou a viver no modo automático. Precisamos lembrar que a vida é feita de momentos, e não apenas de tarefas a serem cumpridas.

Às vezes, num encontro entre amigos para um jantar, em vez de usar o fogão, opto por preparar algo simples, como um prato que minha avó fazia. Usar as mãos, sentir os ingredientes, ouvir as histórias que emergem enquanto cozinhamos juntos. E, à medida que o cheiro do prato se espalha pela casa, percebo que, mesmo em meio à modernidade, ainda é possível encontrar um espaço para a tradição e o afeto.

A verdade é que, enquanto os carros e aparelhos evoluem, somos nós que decidimos como queremos viver. Podemos escolher ser reféns da tecnologia ou podemos usá-la como uma ferramenta para enriquecer nossas experiências. Assim, ao olhar para o passado, não consigo deixar de valorizar o que a modernidade trouxe, mas também não quero esquecer as lições que a simplicidade do passado nos ensina.

E assim, entre o som do despertador e o ronco do motor, entre as telas brilhantes e as conversas à mesa, sigo navegando por essa dualidade. Afinal, a vida é uma dança entre o que foi e o que é, e cabe a nós encontrar o equilíbrio que nos faça encontrar a felicidade das pequenas coisas..

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Marcelo Augusto Paiva (Aurora para que vos quero)


Quando à noite me debruço em alguma das janelas de minha morada, contemplo o infinito céu escuro crivado de estrelas cintilantes, as quais, com a serenidade do passar das horas, convidam a Aurora para participar do preâmbulo matinal que se aproxima. Ela se faz presente diante de mim, não apenas aos olhos, mas em minha alma - meus pensamentos - e me faz refletir sobre os sonhos e anseios que tive, realizados ou não. Uma fonte inesgotável de vida, que segue seu caminho pelos pontos de luz estelar ou pela escuridão que deles se avizinha.

Enquanto a contemplo, a Aurora anuncia um novo ciclo que se inicia a partir dela, renova as energias vitais e espirituais para seguir adiante com os desejos e projetos para os dias vindouros, ainda que ela não me acompanhe em toda essa jornada.

Majestosa - e divina - sempre surge com suas cores em vários lugares, cada qual a seu tempo e em circunstâncias exclusivas, comove os apaixonados ou assusta os desinformados, mas nunca deixa de trazer a lume o anúncio de que um novo dia brilhará para nós.

A Aurora faz crer que cada manhã nos renova e faz limpar nossas almas das coisas e dos fatos passados, necrosados pelo destempero das divergências ou das decepções pessoais. Ela nos faz limpar as más lembranças e crer que o brilho do sol que anuncia será o início de novos e melhores dias.

O sereno que a acompanha também me faz pensar em quão frágeis somos perante ela e seu infinito potencial renovador dos dias e da vida que dela seguem.

Às vezes a sinto tocar meus ossos, como se testasse minha resistência ao clima quase congelante, no aguardo do luminoso calor do astro-rei, o sol.

Ao amanhecer, contemplo o azul celestial do céu, iluminado e aquecido pelos raios de luz solar, que a dispensou para se firmar ao longo do dia. E a vida – minha e das outras pessoas - continua. Até ser renovada por nova contemplação da serena, divina e majestosa Aurora...
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* O autor é de Votorantim/SP

(esta crônica obteve o Menção Honrosa no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. 
Livro enviado por Luiza Fillus.
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Vereda da Poesia = 169 =


Trova de
LISETE JOHNSON
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS

Num arco-íris de cores,
fui descendo de mansinho
sem, se quer, pisar nas flores
que plantaste em meu caminho.
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Poema de 
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Definindo saudade

Saudade, ternura ausente,
que sempre se faz presente
quando nos quer ver sofrer...
Saudade, ternura ingrata
mesmo amando, nos maltrata
Sem nos deixar entender.
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Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Selva: bela e exuberante;
cria, de rara beleza,
de Deus que, naquele instante,
nominou-a... Natureza!
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Poema de
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

A mulher da moldura

Ela via a moldura como escudo
Escudo como janela
Janela de uma prisão
Prisão com um carcereiro
Que a impedia de se aventurar
Semblante pérfido a lhe vigiar.

Ela sonha em caminhar por uma alameda
Vestida com seda.
A moldura se revela um retrato
Olha o opressor e trama sua fuga de fato
É o fim deste cárcere, afinal
Ele dormirá, ela menciona em tom triunfal.

Atravessa a moldura...
Coração pulsante, olhos atentos
Avista o destino a um passo da porta
Um instante que acolhe e conforta
E a alma que antes sofria,
Dança com liberdade e alegria.
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Desconfio das vitórias
que neste mundo colhi.
- Se as coisas são ilusórias,
quem garante que eu venci?
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Soneto de
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)

Ironia de Natal

Disseram que meu pai tinha viajado,
mas não saiu de mala nem sacola...
E tudo desde então ficou mudado.
Venderam meu carrinho e minha bola...

E aos poucos, eu fui vendo, desolado
morrer o passarinho na gaiola.
O fogão cada vez mais apagado
e meus irmãos deixarem de ir à escola...

Depois era preciso "se mudar";
um homem trouxe escrito num papel
que minha mãe, ao ler, pôs-se a chorar...

Era Natal e minha mãe, descrente,
saindo às ruas, qual Papai Noel,
foi dando os filhos todos de presente…
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A solidão me angustia
e à noite aumenta o meu drama,
vendo a cadeira vazia
que a tua ausência reclama!
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Poema de 
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/RS

Extravagância e elegância

Gosto de extravagância
porque ela rima com fragrância.
Almas perfumadas me interessam...

Gosto de certos exageros!
De sorrisos largos,
pensamentos loucos
e abraços demorados.

Mas acredito que, extravagância
e elegância precisam andar juntas.
Uma tem a energia do “dar”,
e a outra, do “receber”.

A pessoa elegante sabe se vestir
e se portar com as vestes da educação,
da reciprocidade e da
empatia pelo que o outro sente...

Elegância é amor, razão,
estudo, acerto, proteção.
Extravagância é sentimento, paixão,
audácia e liberdade plena.

Gosto de pessoas que possuem
em suas entranhas, essa mistura
de loucura com docilidade.
Elas sempre conquistam o meu coração...
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Eu fui náufrago da sorte
em um mar de solidão,
mas teu amor foi suporte
e tábua de salvação!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Talentos

Se eu tivesse talento de um pintor,
ia passar a vida a retratar
o teu rosto a sorrir, meu grande amor,
razão de meu viver e meu sonhar!

Se meu engenho fosse de escultor
talentoso, eu iria trabalhar
dia e noite, buscando com ardor,
tua imagem da pedra retirar...

Mas meu talento é pouco para tanto,
eu só posso sonhar com teu encanto,
sem jamais conseguir representá-lo.

Pois nem sequer eu numa simples trova
consegui retratar-te, como prova
de quanto és linda, para meu regalo!
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Caminheiro de olhos baços,
em busca dos teus carinhos,
para que servem meus passos,
se me apagaste os caminhos?
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Hino de
ITABIRA/MG

Tem belezas minha terra
Vou cantar a minha lira
A primeira é mais sublime
O seu nome é Itabira

Ela tem três altas serras
Com a Serra do Esmeril
O seu ferro é dos melhores
É o primeiro do Brasil

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil.

Em seus campos verdejantes
Nascem flores a granel
Em seus bosques almejantes
Frutos mais doces que o mel.

Tem o poço d'Água Santa
E as fontes do Pará
Quem de suas águas bebe
Não se esquece mais de lá.

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil

Ali canta o sabiá
Patativa e Bem-te-vi
O canário, o pintassilgo
A saudosa juriti.

Ela voa no progresso
Porque ama a instrução
E seus filhos dela esperam
Do Brasil a salvação

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Este meu andar sisudo,
que modela a caminhada
já retrata quase tudo
que a vida transforma em nada!
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Recordando Velhas Canções
ESTÃO VOLTANDO AS FLORES 
(marcha-rancho, 1962) 
Paulo Soledade

Vê, 
estão voltando as flores
Vê, 
nessa manhã tão linda
Vê, 
como é bonita a vida
Vê, 
há esperança ainda

Vê, 
as nuvens vão passando
Vê, 
um novo céu se abrindo
Vê, 
o sol iluminando

Por onde nós vamos indo
Por onde nós vamos indo.
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Trova de
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Estrela que me seduz
és a imagem da esperança:
- brilhante, mas não traz luz;
tão linda, mas não se alcança.
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 124


Que bom se a gente pudesse alçar voos em busca daquelas nuvens e do infinito a que chamamos céu, ou céus  -  são tantos na vastidão do universo! E as camândulas (
rosário de contas grossas) de estrelas?  Quisera achegar-me bem perto das amadinhas Três Marias, aquelas das noites estreladas, com quem converso em momentos de silêncio, de inspiração e alumbramento .  

Mas esquecemos dos recônditos do ser, da intimidade da vida  -  ali é que encontramos a seiva, o doce , o mel para nossos dias. Observamos tanto o exterior, mas é no âmago dos pensares e sentimentos que a vida tem mais sentido em todos os sentidos.

E a gente bem pode parodiar o pensador alemão Wolfgang Goethe, dizendo ele "Mais alto devemos olhar, mais alto devemos subir".

Também nós podemos dizer - mais longe nos aprofundar, bisbilhotar, meditar, olhando para o céu interior, onde temos tanta coisa escondida a ser explorada pelos EUS interiores.  Porque relíquias verdadeiras, riquezas perenes, estão incrustadas no âmago de cada um. Saibamos farejá-las, buscá-las, encontrá-las.  

São tantas pepitas de vida dentro da vida.

Fonte: Texto enviado pelo autor.

Célio Simões* (O nosso português de cada dia) “Novo em folha”

Apesar de muito usada, nem todo mundo conhece a origem da expressão “novo em folha”, quase sempre relacionada a livros. A língua portuguesa é muito rica e expressões passam de geração para geração, sem que se saiba como surgiram. Muitas permanecem imutáveis ao longo dos anos, porém outras sofrem influências e acabam se adaptando aos novos tempos. Mas não há dúvida de que elas enriquecem e dão peculiaridade ao nosso idioma.

Algumas delas têm origem no nosso próprio país, são antigas, remontam ao tempo do império, enquanto outras tem conotação estrangeira, religiosa,  mitológica, mística ou histórica. “Novo em folha”, como dito antes, foi inspirada na utilização do papel, particularmente dos livros, tendo em mente as folhas de papel brancas, limpas e sem amassados de livros recém-impressos, novinhos, sem dobras e sem riscos. Mas atualmente a frase pode estar relacionada a outros objetos e também a pessoas.

Quando nos referimos a algo que nunca foi usado ou que está em ótimo estado é trivial falarmos que o objeto está “novo em folha”. Ou quando uma pessoa, após enfrentar uma enfermidade se vê totalmente curada, os familiares dizem que ela está “nova em folha” ou “pronta para outra”. É fácil perceber que usamos o adjetivo "novo" para nos referir tanto a objetos como a pessoas.

Mas e a “folha”? O que a “folha” tem a ver com um carro novo, um sapato recém-comprado ou a alguém que acabou de sair de um hospital? Isso acontece justamente porque a expressão vem das folhas de papel limpinhas e sem máculas, tipo os livros novos quando acabam de ser impressos e não de nenhuma árvore.

Há quem use o termo para dizer que comprou um carro “novo em folha”, para distinguir da aquisição de um seminovo. Mas não é só com o carro zero bala que surge sua utilização, cabe também para um sapato novo, uma roupa nova ou qualquer outro objeto, desde que adquiridos recentemente e em estado impecável.  

Quem nunca ouviu: - Comprei uma televisão de 50 polegadas “nova em folha”. Ou, com o mesmo sentido: - Ganhei um computador usado, e depois de uma repaginada, ficou “novo em folha”. As fofoqueiras diriam: - Vocês viram a fulana depois da plástica no rosto? Rejuvenesceu, está “novinha em folha...”.

Mas há situações incomuns em que essa expressão é incluída no diálogo para enfatizar o que se pensa sobre algo ou alguma coisa. Como o sujeito que procurou a oficina, levando seu antigo relógio de pêndulo para mais uma vez ser recuperado. Antes de sair, disse ele ao relojoeiro, com o intuito de enfatizar a importância que o objeto tinha para ele:

- Mas, por favor, tenha muito cuidado com ele, me devolva funcionando, “novo em folha”. É que esse relógio pertenceu ao meu avô e dessa marca não se fabrica mais...

Ao que o outro ironicamente respondeu:

- Graças a Deus...

A música popular brasileira não deixou passar a oportunidade de utilizar a expressão e foi isso que fez o “Trio Xamego”, na composição intitulada “Novinho em Folha”, cujos versos ratificam o sentido com que ela é usada: 

Aqui estou eu, novinho em folha 
De chapéu de couro, alparcata, culote e gibão 
Pra cantar as modas de cabra da peste 
Que vem do nordeste do meu torrão 
Pra cantar tudo que vem lá da serra 
Da minha terra no meu sertão. 

Eu não tenho reinado 
não tenho coroa 
Mas dentro da arte, modéstia à parte 
Eu levo a vida tão boa 
Trago a zabumba numa sacola 
Mas não peço esmola a nenhum cidadão 
Novinho em folha estou por aqui 
E ninguém vai impedir de eu cantar meu baião!”

Portanto, para tudo que o que está “estalando de novo”, usamos a expressão “novo ou novinho em folha” como um adjetivo, isto é, uma palavra que se junta ao substantivo para modificar o seu significado, acrescentando-lhe qualidade, natureza, modo de ser ou o próprio estado em que a pessoa se encontra. Rodrigo Santos (O Pensador) cunhou uma frase para expressar uma sensação conhecida de todos nós: “Durmo com a expectativa de acordar novo em folha e acordo como se tivesse sido atropelado por um caminhão!”. Quem nunca se sentiu assim?...
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Estas expressões idiomáticas são publicadas na Terça da Cultura Popular em sites do Pará.
Nas palavras de Célio Simões “A TERÇA DA CULTURA POPULAR começou por acaso. Publiquei num dos sites em que escrevo, um texto explicando a origem de certas expressões idiomáticas, que usamos quase sem perceber nos diálogos do cotidiano. Cito, como exemplo, algumas já divulgadas: Chato de galocha, Mão de vaca, Casa da mãe Joana, Santinha de pau oco, Chegar de mãos abanando, Sem eira nem beira, Dor de cotovelo, etc. Outras virão, na medida do possível. Atualmente tais textos são divulgados por vários sites e blogs de Belém (1), Santarém (1), Óbidos (2), Manaus (1)”
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

domingo, 1 de dezembro de 2024

José Feldman (O Ônibus da Confusão)

Nota do autor: Há cerca de 50 anos trabalhei no transporte de passageiros de ônibus urbano, na cidade de Belo Horizonte/MG, verificando quantas pessoas subiam e desciam no ônibus, para calcular a distância apropriada entre os pontos, daí caiu um temporal, as ruas alagaram, o motorista se perdeu ao desviar, saiu discussão, teve gente histérica, foi uma confusão generalizada, daí a ideia deste conto.

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Era uma tarde chuvosa na cidade, e o ônibus lotado seguia sua rotina habitual. As gotas de chuva tamborilavam no teto, fazendo uma sinfonia que misturava-se ao barulho das conversas e risadas dos passageiros. No entanto, o clima descontraído logo foi interrompido por um forte estrondo.

— O que foi isso? — gritou Dona Maria, uma senhora de cabelo grisalho, segurando a bolsa com firmeza.

— Deve ser só o trovão, Dona Maria! — respondeu João, um jovem de camiseta vermelha, tentando manter o bom humor.

Mas o motorista, preocupado com a enxurrada que começava a invadir as ruas, decidiu desviar o trajeto. Ele virou à esquerda, depois à direita, mas logo percebeu que estava perdido.

— Pessoal, estamos enfrentando um pequeno desvio! — anunciou ele pelo microfone, mas a voz dele mal conseguiu se sobrepor ao barulho dos passageiros.

— Pequeno desvio? Estou a caminho de uma reunião importante! — protestou o Sr. Almeida, um executivo apressado que estava ao telefone. Ele olhou pela janela e viu a água subindo. — Isso não é um desvio, é uma aventura!

— Eu conheço um atalho! — gritou Tânia, uma estudante com uma mochila cheia de livros. — É só seguir pela Rua das Flores!

— Rua das Flores? Você está louca? — respondeu Carlos, um senhor com um chapéu de palha. — Essa rua está sempre alagada! Vamos pela Avenida Central!

— Avenida Central? — interrompeu Mariana, uma jovem com um guarda-chuva quebrado. — A última vez que passei por lá, estava um caos! Precisamos de um plano!

Os passageiros começaram a discutir entre si, cada um defendendo sua própria ideia de qual caminho seguir.

— Pessoal, calma! Eu tenho um mapa! — anunciou Pedro, um rapaz que estava na parte de trás do ônibus. Ele estava tão empolgado que quase levantou do banco. — Aqui diz que podemos pegar a Rua da Alegria!

— Rua da Alegria? — riu Dona Maria. — Com esse temporal, só se for alegria de ver o barco que vamos precisar para atravessar!

— Olha, eu não sei de vocês, mas eu vou descer. Não estou a fim de ser levado por um tsunami! — disse a Sra. Glória, uma mulher mais velha, já se levantando.

— Não, não! Fica todo mundo aqui! — gritou o motorista, tentando manter a ordem. — Precisamos decidir juntos!

— Eu sempre confiei no GPS! — disse o jovem com um celular na mão. — Vamos ver pra onde ele nos leva!

— GPS? E se ele estiver errado? — retrucou Carlos. — Eu confio mais no meu instinto!

A discussão continuava, e o ônibus parecia um verdadeiro tribunal. Cada um defendia sua ideia com fervor, e logo o motorista se viu sem saber a quem ouvir.

— Olha, uma solução pode ser perguntar ao pessoal da rua! — sugeriu Tânia, apontando para um grupo de pessoas que se abrigava em uma marquise.

— Boa ideia! — exclamou o motorista, aliviado. — Vou parar!

Ele estacionou o ônibus em um lugar seguro, e todos os passageiros se aglomeraram na porta.

— O que está acontecendo? — perguntou um dos homens na marquise, enxugando a chuva do rosto.

— Estamos perdidos! Qual é o melhor caminho para a Avenida Central? — perguntou o motorista.

O homem olhou para o céu, pensou por um momento e respondeu:

— Amigo, se eu fosse você, fugiria para o mais perto possível da praia. Aqui não vai ter Avenida Central, só um mar de água!

Os passageiros se entreolharam, um misto de risadas nervosas e uma leve sensação de desespero.

— Eu não vou pra praia! — gritou a Sra. Glória, já com a mão na cintura. — Isso é loucura!

— Então que tal seguir pela Rua do Sol? — sugeriu a jovem Mariana, que parecia ter uma ideia mais otimista. — Pode ser que lá a água não esteja tão alta.

— Rua do Sol? É a única que ainda não ouvi! — disse Pedro, com um sorriso.

— Vamos nessa! — decidiu o motorista, voltando para o volante. — Rua do Sol, aqui vamos nós!

O ônibus seguiu pela nova rota, e a tensão começou a se dissipar. Os passageiros voltaram a conversar, agora em um tom mais leve.

— Vocês acham que vamos chegar a tempo? — perguntou João, olhando pela janela.

— Chegar a tempo do quê? — riu Tânia. — Se não nos afogar primeiro!

— Olha, se tudo der certo, ainda podemos fazer uma festa na praia! — brincou Carlos, arrancando risadas.

— Festa? Com essa chuva? — ironizou a Sra. Glória. — O que vai ter na festa? Natação?

A conversa fluiu e, de repente, o ônibus parecia mais um salão de festas do que um transporte público sufocado. Momentos depois, eles chegaram à Rua do Sol, que estava inundada, mas a água não era tão alta.

— Ufa, estamos a salvo! — exclamou Dona Maria, aliviada. — Agora só falta saber como voltamos pra casa!

— Ah, isso é fácil! — disse Pedro, puxando seu mapa. — Vamos descobrir juntos!

E assim, entre risadas e histórias, o ônibus lotado virou um ponto de encontro, onde a amizade e a camaradagem floresceram mesmo diante da tempestade. Aquele dia, que começou com um temporal, acabou em uma verdadeira aventura, unindo pessoas diferentes por um único objetivo: encontrar o caminho de volta para casa.
 
Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul,
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