quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Newton Sampaio (Castigo)

Andava, o Esteves, nos últimos tempos, com a vista piorando cada vez mais. Não sabia o que vinha a ser aquilo. Foi ao Hospital de Caridade. 

O médico lhe falou em uma porção de coisas que ele não entendeu bem: — cristalino, opacidade, catarata... — recomendando ao pobre velho que não saísse muito de casa, que evitasse a luz forte, que isto, que aquilo.

Esteves, na manhã da consulta, veio para casa profundamente desanimado. Que boa espiga lhe arranjara a vida!

A mulher, a Sinhana, Deus já a levara há muitos anos. Só ficara uma filha, a Lila, que não tardaria a arranjar marido, porque se pusera mulher, de uma hora pra outra.

Tinha enorme pena de sua menina. Ainda bem que Lila era muito cordata, muito disposta a tudo. Mas aquilo lhe doía fundo. Pela felicidade que não lhe poderia dar, jamais.

Na semana santa ninguém foi trabalhar. E Esteves se deixou também ficar em casa. Ruminando, fazendo planos. 

Era na sexta-feira maior. O velho estendeu-se na tarimba, sufocado de calor.

— Que horas são, Lila?

— Já passa das duas, pai.

Lila ia e vinha, arrumando coisas, com os chinelinhos fazendo reque-reque sem parar. Combinara ir à procissão com umas companheiras. E não queria sair sem deixar tudo em ordem.

Passava, a todos os momentos, pela porta do quarto do pai. E, de vez em quando, chegava-se pra perto do velho, a ver se Esteves precisava de água, de café.

— Não, filha. Pode ficar descansada.

Esteves, sem querer, se pôs a observá-la. Lila estava com as formas bem definidas. Busto cheio, ancas nítidas.

Deu uma sacudidela na cabeça.

— O que é isso, diacho?

As mesmas imagens, porém, teimavam. Teimavam cada vez mais fortes.

Quis disfarçar.

— Que horas é a procissão do Senhor Morto?

— O seu vigário marcou pras seis. Mas eu quero sair antes. Por causa da Lurdinha, que me espera.

Lila, no canto da salinha, enfiava a meia na perna bem torneada. 

Do lugar em que se encontrava, Esteves a via perfeitamente. E murmurava:

— Credo! Deus até pode me castigar...

O relógio da igreja badalou três vezes.

— Foi nesta hora que Jesus morreu — refletiu — Bem nesta hora.

Ele estava lá em cima, na cruz, perdoando os nossos pecados. De repente, o sol começou a escurecer... Tudo começou a ficar assim esquisito, cheio de sombras...

Esfregou os olhos.

— Ora dá-se! E isto agora?

Dilatou as pupilas, para enxergar melhor. Mas a porta começou a ficar embaciada. A filha se foi rodeando de um sombreado indefinido. E as pernas da filha cresceram, logo se misturaram, se misturaram as pernas da filha numa só mancha que ia diminuindo, lentamente, que ia diminuindo, que desaparecia.

Esteves, angustiado, deu um salto violento na cama. Procurou um apoio. Não o encontrou.

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

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