José era um homem comum, um judeu não praticante que trabalhava incansavelmente em um hospital na cidade, jovem ainda, tinha cerca de 21 anos de idade. O dia a dia se desenrolava entre tubos de ensaio, mas havia algo de especial em seu coração que ainda não tinha despertado. Isso mudou quando conheceu Najla, uma colega de trabalho, uma jovem de beleza estonteante e olhos que refletiam a dor de uma vida conturbada. Ela era jovem também, 19 anos de idade, filha de imigrantes libaneses que traziam consigo a cultura e a religião com muita devoção.
A atração entre eles foi imediata, mas havia um empecilho: Najla estava em um relacionamento com um rapaz que parecia prometer o mundo a ela. No entanto, essa promessa se desfez como um castelo de areia quando ele a engravidou e desapareceu, deixando-a sozinha e vulnerável. A família de Najla, profundamente religiosa, a declarou impura e a expulsou de casa, condenando-a ao ostracismo por um erro que não era apenas dela.
Desesperada e sem ter aonde ir, Najla encontrou abrigo em José. Ele, que sempre teve um coração generoso, não hesitou em alugar um pequeno apartamento para que ela pudesse ter um lugar seguro para esperar o nascimento de seu filho. Durante o dia, ele convivia com sua família, que nada suspeitava de seu amor secreto. À noite, ele se tornava o porto seguro de Najla, compartilhando momentos de ternura e esperança em meio a um mundo que parecia estar contra eles.
O amor que floresceu entre os dois era um oásis em um deserto de intolerância. José adotou a ideia de que a filha que estava por vir, seria um símbolo de sua união, um laço que desafiava as barreiras que a sociedade impunha. O nascimento de Yasmin, em 9 de dezembro de 1975, trouxe uma luz nova à vida de ambos. José não a via apenas como a filha de Najla; ele a amava como se fosse sua, um amor profundo e incondicional.
Mas essa felicidade era efêmera. Em 14 de maio de 1976, tudo mudou. Naquele dia fatídico, José, Najla e Yasmin estavam deixando o prédio para um passeio no parque planejando o futuro juntos, em um momento simples virou tragédia. Ao saírem do apartamento, dois ladrões armados os abordaram. O pânico se instalou quando um dos bandidos tentou arrancar a pulseira do pulso de Yasmin. Com um empurrão, a inocente criança caiu, batendo a cabeça e rolando escada abaixo, enquanto seu choro ecoava em meio ao caos.
José, em um ato desesperado, correu para agarrar Yasmin, mas quando finalmente a alcançou, o silêncio que se seguiu era ensurdecedor. Ela já estava sem vida. O grito de Najla, misturado ao desespero de José, atraiu vizinhos que correram para ajudar, mas nada poderia salvar a pequena. Os ladrões fugiram diante do ocorrido. A cena era um pesadelo, um momento que se tornaria uma ferida aberta em suas almas.
A vida continuou, mas José e Najla foram consumidos pela dor. O luto se transformou em um peso insuportável; um mês depois, Najla fez a escolha trágica de tirar a própria vida. Ele se viu sozinho, mergulhado em uma depressão que parecia não ter fim. Sua família, alheia ao que realmente havia acontecido, levou-o a um psiquiatra. No entanto, a ajuda parecia inútil diante de sua dor insuportável. Em um momento de desespero, ele tentou se suicidar, mas o destino tinha outros planos e ele sobreviveu, sentindo-se ainda mais desamparado.
A culpa corroía sua alma. Ele culpou Deus, questionando a razão pela qual um amor tão puro e sincero entre um judeu e uma árabe não poderia existir em paz. As noites se tornaram um tormento; os sonhos eram assombrados pela imagem de Yasmin rolando escada abaixo, pelos gritos de Najla, pela dor que não se dissipava.
A tragédia de José e Najla se desenrolava como uma peça shakespeariana, repleta de amor, perda e a eterna busca por aceitação em um mundo que muitas vezes se recusa a entender. O amor que havia florescido entre eles, mesmo em meio a tanta adversidade, foi sucumbindo sob o peso da intolerância e da tragédia. A história deles, marcada por momentos de beleza e dor, nos lembra que, apesar das barreiras que tentamos erguer, o amor verdadeiro é uma força imbatível, ainda que, por vezes, tragicamente efêmera.
Décadas se passaram desde aquela tragédia que transformou José, mas a dor que ele carrega é tão viva quanto no primeiro dia. Tentou reconstruir sua vida, mas a imagem de Yasmin rolando escada abaixo e a visão de Najla, caída no meio da rua, não o abandonaram. Essas memórias o assombram, como sombras persistentes que se recusam a se dissipar.
Hoje, sozinho em sua casa, nos momentos de quietude, especialmente à noite, quando a escuridão cobre o mundo, os pesadelos vêm. Ele se vê novamente naquele dia fatídico, o grito de Najla ecoando em seus ouvidos, a impotência de não poder salvar a filha que nunca teve a chance de conhecer. José repete para si mesmo que deveria ter feito mais, que deveria ter encontrado uma maneira de protegê-las. A culpa é um peso que ele carrega, uma carga invisível que o atormenta.
A ideia de ter filhos nunca foi uma possibilidade. O medo de reviver aquela perda, de ver outra criança diante de um perigo semelhante, paralisou seu desejo de paternidade. Ele observa as crianças brincando no parque, sentindo uma mistura de amor e dor. Os risos que ecoam ao seu redor apenas intensificam o vazio em seu coração. As lembranças de Yasmin, que poderia ter corrido por aquelas mesmas calçadas, o perseguem como um fantasma.
As noites se arrastam, e os pesadelos se tornam mais frequentes. Ele acorda em suor, o coração acelerado, tentando se lembrar que o que passou não pode ser mudado. Mas a mente é traiçoeira, e os sonhos levam-no de volta àquela escada, àquele momento de desespero. Ele se pergunta se algum dia encontrará a paz que tanto almeja, se as cicatrizes da mente podem realmente cicatrizar.
Os anos se acumularam, mas a dor não diminuiu. Ele busca consolo em pequenos rituais, em memória de Najla e Yasmin, falando com elas em sussurros, como se ainda pudesse alcançar suas almas. Ele vive com a esperança de que, ao menos, elas saibam que ele as amou profundamente, que sua vida foi marcada por um amor que desafiava todas as barreiras, mas que também trouxe uma dor insuportável.
A sombra do passado é uma companheira constante, e José convive com ela. Ele sabe que, mesmo após tanto tempo, o amor e a perda estão entrelaçados em sua história, e que a memória de Yasmin e Najla permanecerá viva dentro dele, como um lembrete de que a vida é preciosa, mas também frágil.
Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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