quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Eduardo Affonso* (Cyrano na Pandemia)

* Eduardo Affonso é de Belo Horizonte/MG
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No início da pandemia, a Daniella me mandou um lote de máscaras, cada uma com uma estampa diferente. Tudo higienizado, esterilizado, bem embaladinho.

O uso ainda não era obrigatório, mas quis logo estrear as minhas – em especial uma, perfeita para o passeio com os cachorros, porque tinha desenhos de patas caninas.

A Daniella me conhece razoavelmente, mas devia ter se esquecido do meu perfil. Não o psicológico – o perfil literal mesmo. O narigão.

As máscaras eram do tipo peleja: se cobriam o nariz, descobriam a boca, e vice-versa. Sabe vestido de periguete? Aquele padrão.

Sob pena de parecer neurótico ou obsessivo, passei a usar duas máscaras – uma cobrindo o narigão e parte do lábio superior; outra, a boca e parte do queixo. Funcionou bem, considerando que eu não ia mesmo conversar com ninguém e respiração não chega a ser uma necessidade básica.

Consultei sobre modelos maiores. Claro que havia! E me chegou nova remessa, com máscaras de tamanho mais generoso.

Mas para um nariz como o meu, generosidade não basta. É preciso desperdício.

As pautas identitárias conseguiram que houvesse poltronas mais largas nos cinemas, teatros, auditórios e aviões, para acomodar pessoas com sobrepeso. Lojas passaram a disponibilizar roupas de modelagem compatível com índices de massa corporal pra lá de 30. Mas ninguém pensou nos portadores de nariz pluçaize*.

Não há óculos cujas pontes não nos cavem uma vala horizontal no ponto de apoio. Não há armação com plaquetas afastadas o bastante para nossa envergadura nasal. Vale para óculos de grau, vale para os de natação. Conhece algum narigudo campeão de 800 metros cráu*? Nem eu. Quando você se sentir profundamente frustrado, lembre-se do narigudo que tentou mergulhar de esnórquel*.

Não há boné com aba de 20 cm. Não se vende Rinossoro em embalagem de 500 ml.

O pior é que nem somos uma minoria tão desprezível assim. Juca Chaves, Jean Paul Belmondo, Jean Reno, Luciano Huck, Gerard Depardieu. Para não falar em Maria Bethânia, Maria Callas, Barbra Streisand e a bruxa da Branca de Neve.

Para não incomodar de novo a Daniella, acabei comprando mais algumas máscaras numa loja de artigos hospitalares. Antes, sondei quem estava fabricando máscaras caseiras (sempre é bom dar preferência ao pequeno empreendedor), mas ninguém produzia no tamanho Extra GGG Ultra Plus. O moço da loja disse que aquelas eram “oficiais”, do tipo seguro Golden Platinum, com cobertura total. Quebrei a cara.

Fabricantes de máscaras, óculos, burcas, esnórqueis, vaporizadores: pensem em nós. Claro que o gasto de material vai ser muito maior, mas somos um mercado consumidor disposto a pagar mais caro por um produto adequado à nossa pujança nasal. Se não se adaptarem – como fizeram as indústrias de cosméticos para pele negra, de biquínis manequim 54 ou de tesouras para canhotos – é porque vocês não enxergam um palmo adiante do nariz.
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* VOCABULÁRIO
Cráu = crawl. Técnica de natação.
Esnórquel = tubo oco, preso na boca, utilizado por mergulhadores para respirar debaixo da água.
Pluçaize = plus size. Tamanhos maiores.

Fontes: https://tianeysa.wordpress.com/2020/07/24/cyrano-na-pandemia/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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