Naquela véspera de Natal, o senhor Freitas regressava a casa, sozinho como sempre, pois, já há muito tempo que não convivia com ninguém, pois tinha um feitio muito especial que afastava os amigos.
Um saco de plástico na mão esquerda, chapéu-de-chuva no braço direito, uma gabardina muito comprida e muito usada; botas gastas e a “comerem” a bainha das calças já muito coçadas; óculos encarrapitados no seu grosso nariz, e uma boina muito velha na cabeça. Corpo vergado pelo peso de muitos anos – era assim o senhor Freitas!
O dia estava a findar e, o movimento nas ruas era enorme, pois, toda a gente queria chegar a casa o mais cedo possível, com os presentes para os seus familiares e amigos. Chuviscava.
Ninguém parecia reparar naquela personagem, nem este, parecia notar a presença de outros.
Uma criança se abeirou dele:
– Senhor, uma esmolinha por favor… Senhor, uma esmolinha por favor…
– Eu não dou nada a ninguém – vai-te embora daqui!” – Respondeu-lhe com maus modos o velhote.
Mas a pequena insistia
– Hoje é Natal – dê-me uma esmolinha por favor…
– O Natal é só para os outros, garota! O Natal para mim é um dia igual aos outros… … Ai, ai que eu caio, ai…aiii…
E o senhor Freitas escorregou numa casca de banana e caiu mesmo. Logo a criança, muito aflita, gritou-lhe:
– Cuidado, senhor…
– Ai…ai, meu braço. Maldita casca de banana!…
– O senhor machucou-se? Terá algum osso partido? Coitadinho… – Não se cansava de perguntar, muito aflita, a garotinha.
O velhote parecia que nem a ouvia:
– Ai, o meu braço que me dói tanto… Ó garota, apanha-me essas maçãs e também o pão. Ajuda-me a levantar. Mas cuidado, cuidado… Ai, ai o meu braço…
– Tenha calma, eu ajudo o senhor a levantar-se… Vá lá, com muito cuidadinho; vá, vá, pronto. Agora, vou levá-lo ao hospital.
O senhor Freitas, teimosamente, tentava prescindir dos seus préstimos:
– Não preciso de nada, garota! Eu vou sozinho… Mas, ai, ai… O meu braço…
Carinhosamente, a garota tentava convencê-lo a ir tratar-se:
– Está a ver?… o senhor precisa da minha ajuda. Não seja teimoso, nem mauzinho. O senhor até tem cara de homem bom!
– Eu cara de homem bom? Eu bom? Tu estás enganada – ou pretendes enganar-me… Ai…
– Olhe que é preciso ter uma grande paciência para lidar consigo! Você tem cara de homem bom e pronto – é a minha opinião!
Como sempre, o senhor Freitas estava desconfiado:
– Deixa-te disso garota, que a mim não me consegues convencer com essa cara de anjo. Tu queres é o meu dinheiro, nada mais. Ai, o meu rico braço que cada vez me dói mais!
Já revoltada, a garota respondeu-lhe:
– Sou muito pobrezinha e não tenho ninguém que me dê de comer, mas juro que não quero o seu dinheiro, como diz…
– Tretas! É só lérias, pois todos que de mim se abeiram, só querem o meu dinheiro! E vens tu agora, com falinhas mansas, a dizeres que não o queres! E isto só por eu ter cara de homem bom!… Ai… O meu braço que me dói tanto…
A garota revoltada e já com lágrimas nos olhos, retorquiu-lhe:
– O senhor está a ser injusto para comigo!… Por acaso nunca ouviu falar em solidariedade humana?
Embora com muitas dores, o senhor Freitas não desarmava:
– Puuff, sei lá o que é que isso! A única coisa que conheço é o valor do dinheiro!
Mas não ficou sem resposta:
– Então, meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço que deve estar partido, e, talvez assim fique sem dores e com o braço curado! Por acaso o senhor não compreende o significado do Natal?!
– Lá jeito para discursos, tens tu, garota! – comentou o velho “resmungão”.
– Vou-me embora. Como vê, eu não quero o seu dinheiro. Simplesmente, estava a tentar ajudá-lo.
Dando meia-volta, ia-se a afastar, deixando o senhor Freitas muito estupefato.
– Como assim?! Vais-te embora? Tens coragem de me deixares aqui sozinho? Finalmente tu és como os outros que por aqui passam, sem repararem neste pobre velho – que até tem um braço partido…
Ao ouvir isto, a garota parou e respondeu-lhe:
– Mas o senhor é que não quer a minha ajuda!
O velhote ouviu e “engoliu em seco”. Mas, logo continuou:
– Aonde está a tal tua solidariedade que ainda há pouco apregoavas? Sim, aonde é que ela está? Ao deixares aqui sozinho um pobre velho, doente e com um braço partido? Ai, ai que me dói tanto!
A garota sorriu e já mais confiante, retorquiu-lhe:
– Meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço. Talvez assim se cure…
Já em tom quase suplicante, o velhote pediu-lhe:
– Mas o dinheiro não me vai curar! Preciso da tua ajuda! Eu pago-te o que tu quiseres, mas, por favor, ajuda-me a ir ao hospital! Pois preciso de me curar. Ajuda-me, garota!… Por favor!
– Dê cá o saco e o guarda-chuva: Agora, encoste-se ao meu ombro e vamos ao hospital…
E era bonito de ver.
Um velho sovina, curvado pelo peso de muitos anos, encostado ao corpo frágil de uma criança, a caminho do hospital onde ia ser tratado.
Naquela noite de Natal, o senhor Freitas, finalmente, devia de ter compreendido a mensagem de Deus: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”
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Carlos Leite Ribeiro nasceu em Lisboa/Portugal, em 1937 e faleceu em Marinha Grande/Portugal, em 2018.
Fonte:
Texto enviado pelo autor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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