quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Figueiredo Pimentel (A faquinha e a bilha quebrada)

Vicente já está de volta da escola, sossegado, sim, mas a deitar sua olhadela para as vistosas lojas. De repente para. Que estará ele a ver com tanta curiosidade? Um açafate cheio de faquinhas brancas, lindíssimas. Ah! como devem cortar bem! Que lâminas tão polidas e brilhantes! E não são caras: – a oito vinténs. Vão-se-lhe os olhos, mas falta-lhe o melhor; oito vinténs é uma quantia demasiada para as suas finanças. A mãe, uma mulher pobre, apesar de trabalhar muito, pode-lhe lá dar dinheiro para comprar uma faquinha!

— Oh! diz o Vicente de si para si; que poderia eu fazer para ganhar aquele dinheiro?

Saía da loja um sujeito carregado de compras.

— Oh! rapazinho, ajudas-me a levar estas encomendas para minha casa?

— De muito boa vontade, respondeu-lhe o Vicente, se não for muito longe, porque minha mãe se zanga quando venho tarde da escola.

— É muito perto daqui, não te demoras nada.

O Vicente pegou em dois pacotes, e foram ambos andando até a rua onde morava o homem.

— Está bem, rapazinho, aqui tens pelo teu trabalho, – e deu-lhe dois vinténs.

— Muito obrigado, meu senhor, mas eu não quero receber dinheiro por um serviço tão pequeno.

— Pois então guarda-os para te lembrares de mim, tornou-lhe o sujeito, entrando em casa.

Para a rua correu Vicente, pulando de contente.

— Ó mãe!! ó mãe! Olhe o que me deram quando eu voltava da escola: dois vinténs, ambos novinhos (e pôs-se a contar o caso à mãe).

— Se eu pudesse ganhar mais seis vinténs, chegava-me exatamente para comprar uma faquinha. Ah! se a mãe soubesse como são bonitas!

— E para que precisas tu de uma faquinha?

— Ó! mãe! Com uma faquinha posso fazer muitas coisas: aparar os meus lápis e os dos meus condiscípulos; cortar ramos na alameda para chicotes e flautinhas; arranjar um barquinho; e até ajudá-la a descascar as batatas para o jantar, porque as nossas facas são muito grandes. Parece-me que já a estou a ouvir dizer: – Então, ainda não viste a faquinha do Vicente? É tão bonita! E a mãe, quando eu tiver os oitos vinténs, dá-me licença para comprar uma?

— Dou sim, filho. O que eu não sei é como tu os hás de ter.

Vicente passou o serão a imaginar como poderia ganhar alguns vinténs, mas, por mais que batesse na testa, foi-se deitar sem nada ter descoberto.

Um dia, às sete horas da manhã, havia apenas alguns instantes em que se levantara, tirou a lama da porta. De repente, ergueu casualmente a cabeça, e deu com o tio Martinho à janela. É um dos vizinhos.

— Oh! pensa o Vicente; o tio Martinho está já tão velho para tirar a neve que lhe caiu à porta; depressa a retirou para ele não escorregar quando for sair.

Dito e feito. Quando Vicente voltava para casa, abriu Martinho a janela e pôs-se a chamá-lo.

— Fizeste bem, meu rapazinho, em me evitar alguma queda. Se repetires isto quando tornar a chover, dou-te um vintém.

Vicente pensou nas faquinhas, e aceitou contentíssimo a proposta. Infelizmente a chuva não cai todos os dias a cântaros, e decorreu muito tempo antes de ter o dinheiro necessário.

E assim passaram-se semanas e semanas. Trabalhando daqui e dali, mesmo assim o menino apenas conseguiu arranjar sete vinténs.

Só lhe faltava um, para completar a quantia com que poderia comprar a ambiciosa faquinha.

— Ah! se chovesse muito esta noite. Era o pensamento fixo do rapazinho, em cada serão, quando se ia deitar.

***

Uma manhã levantou-se, correu à janela para espreitar o tempo, e a mãe viu-o andar aos saltos, e bater palmas.

Não sabia o que isso queria dizer, mas adivinhou-o quando viu o Vicente, depois de lhe ter vindo pedir a bênção, e de lhe dar um beijo, pegar na pá e na vassoura, e sair de casa.

A mãe pôs-se a espreitá-lo. Que azáfama! que desembaraço! As mãos roxas da friagem, mas a vassoura num corrupio.

Acabou. O Martinho abre a porta, sai, tira a bolsa, e o oitavo ambicionado vintém passa da mão do vizinho para a de Vicente. Correr a ir buscar os outros sete vinténs, guardados com tanto carinho numa caixinha, almoçar e partir para a escola, foi obra de um momento.

Como ele salta pela rua fora! Que leva fechado na mão? Um tesouro que tem medo de perder: oito vintenzinhos em que se vai revendo, contando-os e tornando-os a contar.

Lá está já na rua da loja sedutora. Um instante mais e a faquinha é dele.

***

Do outro lado da rua vai uma menina, vestida pobremente, e andando com muita cautela para não escorregar. Parece transida de frio; as mãozinhas, roxas de todo. Leva uma bilha de leite. O Vicente ia já a entrar na loja, quando, de repente, vê a menina escorregar e cair ao atravessar a rua. A bilha quebrou-se-lhe! O leite que ia ser o almoço da avó, todo entornado!

Quando a vê cair, corre para a ajudar a levantar-se. Já em pé, a menina, lavada em lágrimas, conta-lhe que não leva nem um real, e que a avó ainda não almoçou. Vicente olha para os seus oito vinténs, depois para a loja onde estão penduradas as faquinhas, depois para a pequenina, que ainda continuava a chorar. Reflete um momento.

— Vem comigo, diz-lhe ele pegando-lhe na mão; ambas haveis de ter que almoçar.

Levou-a a outra loja em que não se viam faquinhas, mas uma grande quantidade de pratos, xícaras, bilhas de todos os tamanhos e de todas as cores. O rapazinho escolheu uma bilha azul e branca, muito bonita, pagou um tostão à dona da loja, e ato contínuo foi à leiteria, onde a mandou encher de leite. De todo o seu dinheiro, nada lhe sobrou.

A menina, doida de contente por ter uma bilha nova, sorriu-se e consolou-se. Retomou o caminho de casa, levando ao lado o seu novo conhecido, mas sempre com mil precauções para não tornar a cair.

E, ao separar-se dele, perguntou-lhe:

— Como te chamas?

— Vicente.

— E eu, Maria. A minha avó diz que ainda sou pequenina para guardar dinheiro; mas, quando crescer, hei de ter muito, e hei de te comprar um brinquedo, porque hoje foste um anjinho para mim.

As duas crianças ainda conversaram alguns instantes. Depois separaram-se, prometendo que haviam de ser amigos para sempre. Maria correu para avó, mostrou-lhe alvoroçada a sua bilhinha nova e contou-lhe tudo o que lhe aconteceu. Vicente seguiu para a escola, resplandecente de alegria, pela boa ação cometida.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

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