segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Humberto de Campos* (A Pérola)


(APÓLOGO PERSA)
Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.

Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a tromba monstruosa, - equóreo (relativo ao mar alto) traço de união colocado entre o mar e as nuvens, - parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou, irônica:

- Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?

Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:

- Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando por nós. Ouves?

A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a terra, embaixo reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava (sofria lamentos), num tumulto de vozes desesperadas.

Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:

- Lá em baixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço (cume) de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!

- Meu Deus!... gemeu a gota d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele extermínio próximo.

Nesse instante, um trovão contínuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade, aparecia de novo, ao sol, a face tranquila do mar.

Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas…
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* Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba (hoje, Humberto de Campos), no Maranhão, em 1886. Ficou órfão de pai com sete anos de idade. Mudou-se com a família para São Luís, onde se empregou no comércio. Com 17 anos passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e depois na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, uma coletânea de versos, intitulado “Poeira”. Em 1912 mudou-se para o Rio de Janeiro empregou-se no jornal “O Imparcial”, e começou a se destacar no meio literário. Em 1919 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Deputado federal pelo Maranhão, inspetor de ensino e Diretor interino da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em 1933, com a saúde já abalada, publicou o livro que se tornou o mais importante de sua carreira, “Memórias”, no qual reúne suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Escreveu poesias, contos, ensaios, crônicas e anedotas. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1934.

Fontes: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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