quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Gilmário Braga (Clara, a feia)

O autor é de Serra/ES
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Eu começo essa história fazendo a seguinte pergunta: Até que ponto beleza é fundamental? Esteticamente falando, eu nunca fui, digamos assim: Uma mulher chegada à beleza, e mesmo assim sempre convivi bem com isso, até porque não tenho como mudar. Boniteza em minha pessoa somente aquela que vem de dentro, e isso já é mais do que o suficiente para eu me sentir uma pessoa feliz. Nas festas que costumava frequentar raramente algum rapaz me tirava para dançar. Naquela época ainda dançávamos de rosto coladinho, hoje não se usa mais fazer isso. Eles preferiam sempre as meninas mais bonitas. Às vezes isso me incomodava um pouco, mas não era sempre que eu me sentia assim. Minhas tentativas de arranjar um namorado, ter um relacionamento sério eram sempre frustradas. Os rapazes sempre tinham uma desculpa para não me namorar. Chegou um momento que isso começou a mexer muito comigo.

Eu me reporto agora ao ano de 1982, época boa onde as coisas eram bem diferentes de hoje em dia. Chegamos ao fim do ano, e com ele as merecidas férias, e nessa ocasião recebemos em nossa casa a minha prima Judith que veio de Minas Gerais passar uns dias conosco no Espírito Santo. Minha prima era animada, alegre, pra cima e adorava sair, curtir a vida. Um belo dia a tarde ao chegarmos da praia, resolvemos por iniciativa dela acessar um serviço que uma empresa de telefonia disponibilizava aos seus usuários. As pessoas daquela época devem lembrar do chamado serviço 145. Esse serviço era febre na época e muita gente se divertia com isso. Funcionava assim: Você discava este número e ouvia várias pessoas conversando ao mesmo tempo, era uma espécie de linhas cruzadas. Muitas pessoas passaram a se conhecer e se relacionarem a partir dessas conversas. Bastava a gente passar o nosso contato ou apanhar o de alguém que nos interessasse. Hoje em dia isso é bem menos complexo devido as redes sociais.

– Então, Clara. Vamos tentar? Não temos nada a perder. O máximo que pode acontecer é a gente tirar uma onda com a cara dos rapazes, ou eles com a nossa cara. – Disse Judith.

– Não sei, prima. Eu me acho muito tímida para essas coisas. E depois passar o meu contato para quem eu não conheço pode ser uma furada.

– Que nada, Clara. Deixa de bobagem. O que alguém pode fazer tendo somente o seu número? Quem sabe nessas linhas cruzadas esteja o seu príncipe encantado (risos). 

– Montado no cavalo branco e tudo. – Complementei sorrindo.

Judith insistiu tanto que eu acabei topando, e diante disso ela imediatamente discou. Durante alguns minutos ela conversou com várias pessoas, e pelo visto aquele não era o dia de sorte dela.

– Agora é sua vez, Clara. Coragem. Eu estou sentindo que hoje é o seu dia de sorte.

– Será, prima?

– Se você não tentar não terá como saber. Vamos, prima! Coragem!

Meio trêmula e sem jeito apanhei o telefone e disquei. Era a primeira vez que acessava este serviço. Várias linhas se cruzavam ao mesmo tempo. Uns falavam bobagens, mulheres davam gargalhadas, mas também tinha aquelas pessoas que falavam o que se aproveitasse. Depois de alguns minutos tentando entender alguma coisa, um homem, com uma voz romântica, linda, despertou meu interesse e eu o dele também. Trocamos mais algumas palavras e o nossos contatos. 

– Viu aí prima. Eu disse que hoje era seu dia de sorte.

– Será? Eu estou tão acostumada a levar fora que um a mais um a menos não vai fazer diferença.

– Deixa de ser pessimista, Clara. Acredite! Pense positivo.

Na semana seguinte Judith foi embora. Passei dias ansiosa para que chegasse logo o dia do nosso encontro onde finalmente eu conheceria o misterioso Otto, pois foi este o nome que ele me deu. Marcamos de nos encontrarmos em um restaurante muito conhecido na cidade. Eu cheguei propositalmente meia hora depois do horário combinado, disse o nome e as características dele para o garçom e fui conduzida até a mesa onde ele supostamente me aguardava. Confesso que me surpreendi. Otto estava muito bem vestido, de aparência agradável. Eu estava diante de um homem simplesmente lindo. Aproximei-me e o cumprimentei.

– Boa tarde!

Ele virou-se para mim. Usava óculos escuros na ocasião.

– Otto? – Perguntei.

– Sim. Boa tarde. Você deve ser a Clara (pausa) – Sente-se por favor!    

Eu sentei-me de frente para ele e nos pusemos a conversar. Que homem bonito ele era! Conversamos sobre vários assuntos, mas não me animei muito. Certamente um homem bonito daquele não iria querer nada comigo, e para falar verdade, eu já estava preparada para terminar aquele encontro como bons amigos. Mais curioso é que em nenhum momento ele retirou os óculos. No início me incomodou, mas depois não dei importância. A conversa com ele estava muito agradável.

– Você quer beber alguma coisa, Clara?

– Um suco está ótimo.

– Me fala um pouco mais sobre você! Como você é por exemplo.

– Você quer saber como eu sou? Isso?

– Sim. Me fala sobre você!

Enquanto conversávamos, eu tinha a nítida sensação de que Otto não olhava para mim, e sim em minha direção. Confesso que fiquei meio confusa quando ele perguntou como eu era. Pela primeira vez estava diante de um homem que conversava comigo à vontade, sem pressa ou querendo logo terminar aquele encontro e sem se preocupar com a minha aparência. Seria mesmo o meu dia de sorte como disse a Judith? E tomada por um impulso resolvi arriscar:   

– E então, Otto? Eu sou como você esperava ou eu frustrei suas expectativas? 

– Como assim, Clara? Não entendi.

– Eu achei que você fosse me dizer alguma coisa quando estivesse diante de mim.

Ele fez um breve silêncio e logo em seguida disse:

– Infelizmente eu não posso te ver.

– Na hora eu não entendi e perguntei: Como assim não pode me ver? Estamos aqui há horas conversando.

 Ele tomou fôlego e prosseguiu:

– Eu sou deficiente visual, Clara. Não enxergo nada. Sou totalmente cego. Perdi a visão ainda na adolescência. Se houver outra oportunidade te conto como tudo aconteceu.

Eu tomei um choque com aquela revelação. Cego? Que pena, um homem tão bonito. Tentei disfarçar meus sentimentos naquela hora. Logo em seguida tomei coragem e abri meu coração para ele dizendo exatamente como eu era e com isso a minha dificuldade de conseguir um relacionamento amoroso. Ele me ouviu em silêncio e depois disse:

– Pois para mim você é a mais linda das criaturas, a mais linda das mulheres. Que importância tem a beleza física? Eu estou diante de uma mulher de alma nobre, de coração puro, e com toda certeza tem muito a oferecer. Seu afeto, seu carinho e seu amor.

As palavras de Otto me deixaram emocionada. Eu nunca tinha ouvido isso de alguém. Eu estava feliz, as lágrimas desciam em meu rosto, mas era um choro de alegria. Naquela hora eu tive a certeza que estava diante do homem da minha vida. Saímos dali como namorados, e pouco tempo depois nossas famílias foram apresentadas e tanto de um lado como do outro recebemos todo apoio.

Namoramos, noivamos e nos casamos, e como não poderia deixar de ser, minha prima Judith foi nossa madrinha de casamento. Continuamos juntos e somos felizes até hoje. Agora posso dizer que em se tratando de amor, beleza não é fundamental. O amor sim. Este será sempre fundamental para conservarmos uma relação, além de respeito e cumplicidade.

Palavras do autor: 
Embora essa seja uma obra de ficção, nos deparamos com diversas situações como essa em nosso cotidiano.

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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