sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Renato Frata* (Letra perdida)

Fuçando gavetas, papéis amarelados sorriram. 

Achar o passado que se perdera, às vezes, faz bem; cria a conexão mágica que só o vivido consegue com o ontem, virando hoje e revivendo, mesmo que por segundos, fato cuja importância marcou o dia, a época com seus borrões, e que o tempo, o mais poderoso dos sabões, se esqueceu.

Peguei o maço de folhas ali deixadas e senti, ainda, a baba seca do destilado de outrora pregada sobre as linhas oscilantes do texto, e me repugnei: um tênue cheiro de coisa azeda exalou do papel, calando-me. 

Fui mesmo um insano ao regurgitar, lá atrás no tempo, sobre o escrito. Nunca se deve deixar que a baba escorra pelo trabalho. 

Quanto às linhas sinuosas do amarrado amarelo, uma explicação; o alinhamento desregulado da máquina de escrever fê-la tão bêbada quanto o datilógrafo ao compor o texto em que descreveu que "a noite escura galopava a tristeza de um amor perdido e, nesse negror, estrelas riscadas a carvão estampavam um céu de mortalha".

Tétrico, diria, se compreendesse o texto. 

Devia mesmo estar muito bêbado para ter escrito coisas assim.

Quem consegue barrar a ânsia do embriagado? 

Palavras e ideias somatizam no álcool o medo/melancolia que o absorve, e faz simplesmente o que o coração determina. 

São energias expelidas como varetas em leque a se espalhar pelas veias, até chegarem ansiosas às pontas dos dedos.

Dizia o texto também que "cães vadios lhe serviriam de companhia aos espinhos da solidão" e que "as horas passavam mais lentamente que os goles que dava na bebericagem de um copo sebento e pastoso", como se o copo cheio a se tornar vazio, fosse ou servisse de medida de tempo...

Até que em determinada frase, que reclamava de alguém, uma expressão deixou-me mais perplexo: "... esse amor de mulher solúvel…

Mastigando as bochechas, parei de ler.

- Péra aí! Alguma coisa está errada. Mulher solúvel?

Puxei as frases sem sentido e as reli. Por três vezes. E só aí decifrei o que escrevera na escuridão dos sentimentos não correspondidos.

E não me fiz de rogado; perdoei-me pela pasmaceira etílica deixada envelhecer bêbada nas folhas babadas, pois me lembrei que a velha máquina desalinhada, certa vez, caiu ao chão, deixando escapar, para nunca mais ser encontrada, a bendita letra "V".

No êxtase alcoólico, a letra sumida foi substituída pelo "S", como a cuidar da agonia que a inspiração impunha, livrando, naquele momento, o rapazote de bem-querer, amarrotado pelo desprezo de uma mulher, ao seu ver, volúvel.

O amor contém razões que nem ele mesmo conhece - dizem, mas sempre deixa um rastro, às vezes amarelado e malcheiroso, que pode se tornar incógnita quando se mistura letra que se perdera... vivências que marcaram... paixões evaporadas com o álcool ingerido no ar pesado do quarto de solteiro, de república de jovens esperançosos. 

E enamorados.

Costumeiramente embriagados.
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* Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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