Era uma tarde tranquila na biblioteca de um universo que desafia a nossa compreensão. Estantes infinitas se estendiam até onde os olhos podiam ver, cobertas de livros de todas as épocas e estilos. Em um canto iluminado por um brilho suave, três figuras notáveis saíram de uns livros e tiveram um encontro inusitado além da imaginação: William Shakespeare, Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato.
Shakespeare, com seu ar aristocrático e uma pena na mão, foi o primeiro a se pronunciar.
— Ah, senhores! Que prazer imenso é vê-los! Eu sou William Shakespeare, dramaturgo e poeta. E vocês devem ser os ilustres Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato. Um encontro de mentes brilhantes, sem dúvida!
Poe, com seu olhar sombrio e uma aura de mistério, respondeu:
— Sim, sou eu, Edgar Allan Poe. O gênio do terror e do macabro. E você, Sr. Shakespeare, deve saber que seus sonetos são maravilhosos, mas, francamente, você precisa de um pouco mais de escuridão em suas obras.
Lobato, sempre com um sorriso no rosto e uma caneta na mão, interveio:
— E eu sou Monteiro Lobato, o escritor para crianças e do folclore do Brasil! Prazer em conhecê-los, senhores. Agora, o que vocês precisam é um pouco de imaginação infantil! Shakespeare, seus dramas são tão sérios que eu me pergunto se você já ouviu uma boa piada!
— Vamos lá, então! — disse Shakespeare, ajeitando seu colarinho. — Eu, que escrevi sobre o amor, a ambição e a tragédia, defendo que a complexidade da condição humana é meu forte. O que você tem a dizer sobre isso, Poe?
— Complexidade? — Poe levantou uma sobrancelha. — O que você entende de complexidade, meu caro? Você escreve sobre amores perdidos, enquanto eu exploro as profundezas da loucura e da morte. Em "O Corvo", por exemplo, abordei a obsessão de um homem que perde sua amada. Não é isso que chama a atenção?
Lobato se inclinou para frente, rindo.
— Loucura, sim, mas e o humor? Vocês dois parecem estar sempre tão sérios! Eu, em "O Sítio do Picapau Amarelo", trago a fantasia e a brincadeira! Afinal, quem não gostaria de conversar com um saci ou uma boneca de pano que ganha vida? Isso é o que eu chamo de literatura!
Shakespeare, com um sorriso travesso, respondeu:
— Então você acha que um saci é mais interessante que um Hamlet? Um príncipe que discute sobre a vida e a morte? Venha, Monteiro, não me diga que prefere a companhia de um personagem que não sabe nem se deve existir!
Poe não deixou barato:
— E o que dizer de sua "Comédia dos Erros"? Uma confusão de identidades que só pode ser resolvida com um final feliz? Isso é muito otimista para o meu gosto. Onde está a tragédia, a verdadeira essência da vida?
Lobato, rindo ainda mais, respondeu:
— Olha, eu não diria que confundir personagens é um erro. É mais uma estratégia de marketing! E, Shakespeare, você fala de tragédia, mas seus personagens têm um talento incrível para fazer escolhas ruins. Que tal um pouco de sabedoria popular? "Quem não arrisca, não petisca!" E olha que eu sou um especialista em ensinar isso às crianças!
A conversa continuou, repleta de risadas e provocações. A biblioteca, testemunha desse encontro inusitado, parecia vibrar com a energia das palavras trocadas. Após horas de debate, todos concordaram que, apesar das diferenças, o que realmente importava era o amor pela literatura.
Poe, finalmente relaxando, disse:
— Sejamos francos, senhores. Cada um de nós tem sua própria abordagem para a complexidade do ser humano. Shakespeare com seu romantismo, Lobato com sua fantasia e eu com meu terror.
Shakespeare assentiu, um brilho de compreensão em seus olhos:
— Exatamente, meu amigo. E o que seria do mundo sem essas diferentes vozes? A diversidade é a alma da literatura.
Enquanto Shakespeare, Poe e Lobato discutiam animadamente, uma nova presença se fez notar na biblioteca. A luz suave que iluminava o espaço pareceu se intensificar, e um homem de porte elegante, com um olhar penetrante e um leve sorriso nos lábios, se aproximou. Era Machado de Assis.
— Boa tarde, senhores! Posso me juntar a essa conversa tão vibrante? Sou Machado de Assis, e ouvi falar sobre suas obras. Estou curioso para saber o que pensam sobre "O Alienista".
Shakespeare, sempre cortês, respondeu:
— Senhor Machado, é uma honra tê-lo entre nós. "O Alienista" é uma obra fascinante. A forma como você aborda a loucura e a razão é singular. Mas diga, o que o levou a explorar a mente humana dessa maneira?
Machado, com um brilho nos olhos, explicou:
— A loucura é um tema que me intriga profundamente. Em "O Alienista", eu queria discutir não apenas a sanidade, mas também o que é considerado normal em nossa sociedade. O Dr. Simão Bacamarte, que se dedica a entender a mente, acaba por se perder em sua própria obsessão. É uma crítica à ciência e à razão.
Poe, com um sorriso enigmático, interveio:
— Fascinante, de fato! Mas você não acha que, em sua busca pela razão, Bacamarte se torna uma figura trágica? Ele se assemelha aos meus personagens que, perdidos em suas obsessões, acabam se destruindo. A diferença é que você traz uma ironia bem-humorada à sua narrativa, enquanto eu prefiro o tom sombrio.
Machado assentiu, apreciando a observação.
— Sim, Edgar. A ironia é um dos meus instrumentos. Eu quis mostrar como a busca pela lógica pode ser tão irracional quanto a própria loucura.
Shakespeare, com seu estilo característico, comentou:
— Muito bem colocado, Machado! Mas me pergunto se a crítica social em "O Alienista" não perde um pouco da profundidade emocional que permeia minhas tragédias. Bacamarte, embora intrigante, parece distante. Não seria mais poderoso se ele tivesse um dilema mais humano, como o meu Hamlet, que luta com questões de vida e morte?
Machado sorriu, reconhecendo a validade da crítica.
— Você tem razão, William. A emoção é fundamental na literatura. Contudo, minha intenção foi refletir a sociedade de uma maneira mais cerebral, quase como uma fábula. O que importa é que, ao final, Bacamarte é um espelho de todos nós.
Lobato, sempre entusiasmado, não deixou de defender seu ponto de vista:
— E eu gostaria de adicionar que, enquanto você aborda a loucura, eu trago a fantasia como uma forma de libertação! Os personagens do seu livro, cercados pela racionalidade, poderiam se beneficiar de um pouco de magia! Imagine Bacamarte conversando com o Saci ou criando novas teorias com a ajuda de Emília!
Machado riu, imaginando a cena.
— Seria uma combinação curiosa, sem dúvida! A magia poderia oferecer a Bacamarte o que falta em sua vida: um pouco de leveza.
Após a troca de ideias, Machado de Assis, com seu olhar perspicaz, fez uma reflexão sobre as obras de seus colegas.
— Senhores, é interessante notar que, apesar de nossas abordagens distintas, todos nós tratamos da condição humana. William, você mergulha nas profundezas da emoção, explorando o amor e a tragédia. Edgar, você desafia os limites da sanidade e do terror, revelando a fragilidade do ser humano diante do desconhecido. E Lobato, você nos lembra da importância da imaginação e da infância, onde tudo é possível.
Ele fez uma pausa, permitindo que suas palavras ecoassem.
— Assim como Bacamarte busca entender a mente humana, nós buscamos entender o que nos torna humanos através de nossas obras. Cada um à sua maneira, contribuímos para um entendimento mais profundo da vida e da sociedade. E, se pudermos aprender uns com os outros, talvez possamos criar um universo literário ainda mais rico.
Os três escritores, tocados pela análise de Machado, concordaram, reconhecendo que, no final das contas, a literatura é um diálogo contínuo. Eles estavam apenas começando a explorar as maravilhas que poderiam surgir de suas interações, prontos para desafiar e inspirar uns aos outros, como verdadeiros mestres da palavra.
Com risadas e promessas de um novo encontro, os escritores se despediram, cada um levando consigo a certeza de que, embora suas obras fossem diferentes, a paixão pela escrita os unia em um laço eterno. E assim, na biblioteca dimensional, as histórias continuaram a se entrelaçar, trazendo à vida a magia da literatura.
Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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