O pai, velho soldado que a vida das guerras alquebrara, gostava de lembrar, à noite, quando toda família se reunia na sala de jantar em roda da grande mesa antiga, os episódios das campanhas que vira.
A mulher não ouvia com prazer aquelas histórias de cargas de cavalaria, de emboscadas, de assaltos, tão cheias de sangue e de horror. Quando o velho recordava aquele tempo, com os cotovelos na mesa e o cigarro no canto da boa, — ela revivia a angústia dos dias passados na solidão, sem notícias do marido que lá andava no Paraguai. Via toda a agonia daqueles seis anos de sobressalto e choro, daquelas noites em que não podia dormir sem ver em sonhos o marido estendido, retalhado de golpes, numa poça de sangue, sem confissão e sem um carinho, entre os montões de cadáveres, sobre os quais passavam, sem respeito, as patas dos cavalos, no ardor da batalha. Lembrava-se da ansiedade e do medo com que esperava o correio, naquelas amaldiçoadas tardes de desespero. Quando não vinham cartas, logo a sua alma adivinhava desgraças. Imaginava o marido prisioneiro, entre os paraguaios, sofrendo tratos duros, chorando lágrimas de vergonha e de raiva. Quando o carteiro lhe entregava um envelope fechado, — quantos minutos ficava ela a mirar e a revolver nas mãos aquele pedaço de papel que vinha do querido ausente, e que tinha recebido os seus beijos e as suas lágrimas de saudade!
Por fim abria a carta. A princípio não podia ler.
As letras se embaralhavam, atrapalhadas. Tremia-lhe nos dedos o papel. Tinha de repousar um pouco: e, quando conseguia terminar a leitura, ficava abatida e sem consolo diante daquelas notícias que não variavam nunca. Era sempre a mesma coisa: não se sabia quando acabaria a guerra; mas Deus velava por ele; era preciso assegurar, conquistando um bom posto, um futuro feliz para os filhos; além disso a Pátria estava acima de tudo...
Ela amarrotava a carta... a Pátria! Que era a Pátria, para valer mais do que ela, mais do que aquelas duas crianças, que dormiam ali, estreitamente unidas, num só berço pequeno, — pobres inocentes que talvez a essa mesma hora já estivessem sem pai? Ficava então a contemplar os filhos, e ali ficava chorando, horas inteiras...
Quando o pai voltou da guerra, vinha major. Fora ferido. Perdera uma perna. A mulher abençoou essa desgraça. Ao menos, assim mutilado, ficava ele posto à margem, dispensado de voltar à mesma existência de perigos e canseiras. Podiam viver modestamente com seu soldo. Qualquer outro trabalho leve de que se pudesse encarregar, dar-lhe-ia o suficiente para educar os filhos. Carlos, o mais velho, preparar-se-ia para qualquer profissão honrosa e tranquila (nunca a profissão do pai): — e Alice, a mais moça, casaria, seria feliz... e a boa mãe já sorria, prevendo para sua velhice essa felicidade absoluta: toda família reunida, calma e livre de desgostos, numa vida sem luxos mas sem privações...
Agora, porém, quando o velho major, durante os serões domésticos, começava a contar os seus episódios de campanha, a mulher estremecia. Recordava-se dos sofrimentos passados, e ansiosamente olhava o filho, Carlos, já mocinho de anos, que escutava o pai, abrindo muito os olhos, em que o prazer de ouvir aquelas façanhas acendia um brilho de febre.
O velho falava. Contava como, um dia, surpreendidos por mais de cem paraguaios em uma emboscada, ele e mais dezenove brasileiros se tinham defendido como leões, conseguindo, por um milagre de intrepidez e de calma, destroçar os inimigos. No entusiasmo da narração, o velho transfigurava-se. O seu braço, estendido no ar, indicava os golpes de espada. A sua voz imitava, ora o ruído contínuo e seco da fuzilaria, ora o estrondo rouco dos canhoneiros. Diante dele, Carlos, também transfigurado, bebia as suas palavras, com inveja, respirando a custo, agitando-se na cadeira. Alice, que tinha então dez anos, admirava o pai e o irmão: e os seus olhos espantados, dilatados pelo medo que lhe faziam essas coisas de guerra, iam do velho ao menino e do menino ao velho. E a mãe quase arrebentava em soluços, vendo a alegria do filho.
Era aquele, há muito tempo, o seu maior receio... Pobre mãe! Desde o tempo em que, o pequenino, Carlos, como as outras crianças, apenas devia pensar em bonecos, — o menino manifestava uma grande predileção pelas coisas da vida militar.
Ficava horas inteiras contemplando as fardas do pai: e, à noite, deixando de estudar, fechando sobre a mesa as suas gramáticas e os seus dicionários, era ele o primeiro a pedir ao velho mais uma daquelas narrações que o embriagavam. Às vezes ia a mãe surpreendê-lo, na sala de visitas, extasiado diante do pequeno armário envidraçado, onde o major guardava as relíquias de sua glória: a espada, as dragonas, as medalhas de outro e bronze, as condecorações esmaltadas, e, entre esses atestados da sua coragem, a bala que lhe atravessara a perna, no combate de Humaitá.
Quando foi preciso escolher uma carreira, Carlos, sem hesitação, declarou que queria ir para a Escola Militar. O velho exultou. A mulher, resignada, não teve protesto.
Os anos correram. Alice, já moça, casou com um militar. E a boa senhora viu assim toda sua família submetida àquela existência que odiava.
Uma noite, conversavam os dois velhos, sós, naquela mesma sala de jantar em que tinham feito explosão os primeiros entusiasmos de Carlos. Falavam do filho. — Não te aflijas, mulher! — dizia o major. — Hoje, anda tudo em paz. O Brasil nunca mais terá guerras: isto é uma geração de molengas. Que perigo corre o nosso rapaz? Formar-se-á em engenharia militar, terá bons empregos, e morrerá de velhice. Não te aflijas, que o Brasil nunca mais terá guerras!
Neste momento, bateram à porta. Vinham dizer à família que Carlos morrera, vítima de um desastre, na Escola. Experimentava uma espingarda. Puxou o gatilho, julgando que a arma estivesse descarregada. Havia dentro uma bala, que lhe varou o peito.
O major sobreviveu pouco a esse desastre. Morreu um ano depois. E a viúva concentrou toda a sua afeição num neto, filho de Alice. E um dia, vendo esse pequenino brincar, fingindo de soldado, com uma barretina de papel e uma espada de pau, a velha murmurou:
— Também este ama a vida de soldado!... Será o que Deus quiser!
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro — Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.
Fontes: Coelho Neto e Olavo Bilac. Contos pátrios para crianças. Publicado em 1931. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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