quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Arthur Thomaz (Voo atrapalhado)

O autor é de Campinas/SP
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Jorge Henrique e Mário Jorge, piloto e copiloto de uma companhia internacional, recém-chegados de um longo voo, hospedaram-se no hotel conveniado e, após um pequeno descanso, resolveram se aventurar na noite da cidade.

Indicado pelo concierge, foram até um famoso bar na avenida principal. Sentaram-se à mesa e pediram dois sofisticados drinques por pura ostentação. Ao notar que duas esplendorosas mulheres os fitavam ostensivamente, Jorge perguntou ao amigo se não era estranho o fato delas estarem flertando com dois caras feinhos como eles. Mario brincou dizendo que era por causa das caríssimas bebidas que eles estavam consumindo. Dirigiu-se até a mesa das moças e as convidou para tomar algo com eles.

Algum tempo depois, elas manifestaram o desejo de ir com eles até o quarto do hotel. Acordaram com o som das batidas da camareira na porta. Nus, com as mãos amarradas e sem lembrar nada dos acontecimentos da véspera.

Todos os objetos de valor haviam desaparecido, incluindo dinheiro e cartões de crédito. Entenderam que foram vítimas do famoso golpe "boa noite Cinderela" e, resignados, foram até o distrito policial registrar a ocorrência.

Num requinte de crueldade, as duas levaram seus cintos obrigando-os a improvisar com um barbante cedido pelo gerente do hotel. Segurando as calças, na delegacia ainda ouviram gracejos dos policiais perguntando se as "cinderelas" iriam estrelar filmes da Disney.

De volta ao hotel, colocaram seus uniformes, compraram cintos novos e apresentaram-se para o voo de retorno.

Não foram informados que além da amnésia, a droga que ingeriram permanecia no organismo provocando intensa sonolência.

Entraram na cabine do avião e após a decolagem, Jorge Henrique fez o cumprimento habitual aos passageiros e esqueceu ligado o intercomunicador.

Ao ver Mario Jorge dormindo ao lado gritou que, “não era hora de dormir”.

A moça gordinha da primeira fileira, ao ouvir que o piloto estava dormindo, em histeria, jogou-se ao chão parecendo ter uma convulsão, que passou assim que ela ouviu Alexandre o comissário de bordo, chamar a enfermagem para aplicar-lhe uma injeção. Então ela voltou à poltrona e continuou a gritar, histericamente, que o piloto estava dormindo na cabine.

 Kátia, Valéria e Alexandre, os comissários de bordo, tentavam em vão acalmar os passageiros.

Outra senhora gritava para abrirem a porta porque ela queria descer. Alguns, incluindo os mais fervorosos ateus, pediam ajuda às suas divindades. Ouvia-se gritos por Alá, Jesus, Buda, Ogum, Jeová e até Zeus.

Um marinheiro reformado, aos berros, dizia que era um atentado dos muçulmanos o que foi veementemente rebatido por um jovem barbudo com o Alcorão nas mãos. Quase deflagrando mais um conflito entre ocidente e oriente.

Mais atrás, um homem com as faces vermelhas e que tomava whisky em uma pequena garrafa, bradou que iria morrer; portanto, tomaria mais uma dose.

Três crianças, ao ouvir a palavra morrer, chorando, perguntaram à mãe se elas também morreriam. A mãe, como sempre, respondeu que não sabia e que perguntassem ao papai. O pai, em pânico, sorrateiramente esgueirou-se e foi beber whisky com o homem da face avermelhada.

Nesse momento, levantou-se alguém que parecia um pastor e gritou para que todos levantassem, dessem as mãos e orassem. Aumentou a confusão porque todos se ergueram ao mesmo tempo.

Nesta situação caótica, ouviu-se uma potentíssima voz de um grisalho senhor dizendo que era piloto aposentado e que iria assumir o comando da aeronave no lugar do dorminhoco piloto.

Fez-se um silêncio imediato.

 O senhor dirigiu-se à cabine sob o olhar apreensivo de todos. Com firmeza entrou e fechou a porta da cabine. Antes de desligar o intercomunicador, disse em voz alta a fim de que todos os passageiros ouvissem, que agora assumiria o comando. Desligou o aparelho, acordou o copiloto e disse que não era piloto nem de patinete, mas que na hora achou que era a única solução para acalmar a histeria coletiva.

Pegou o quepe, colocou na cabeça, saiu da cabine e falou aos passageiros que já estava no comando e que todos sentassem para prosseguir a viagem em segurança.

Aclamaram-no aos gritos de mito, herói e outros adjetivos.

A aterrissagem foi tranquila e o novo comandante foi carregado nos ombros dos passageiros por todo o aeroporto. Logo que se desvencilhou da multidão, desapareceu antes que alguém descobrisse que nunca havia sequer entrado em um avião até aquela data.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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