Poetas... Poetas são como as abelhas que buscam apenas na flor a substância com que fazem o mel. Que lhes importa que, depois da visita ao nectário, a flor murche e feneça? outras há pelo bosque perfumado e para essas outras vão elas aligeirando as asas.
Donzela, que dais ouvidos às canções do poeta, julgais ingenuamente que ele vos pertence, que nunca mais se apartará do juramento feito aos vossos pés, com os olhos nos vossos olhos, procurando, talvez, surpreender a vossa alma? engano vosso — para que ele vos abandone basta que uma outra apareça.
Foi Zeuxis, se me não trai a memória, que, para realizar na tela um tipo de beleza, reuniu na sua oficina várias donzelas, aproveitando de cada uma a linha ou a cor mais pura, o garbo ou a languidez, a esbelteza e a curva graciosa e, depois de rematada a figura, era um complexo maravilhoso e as moças, que se haviam prestado a ser modelos, deixaram no painel do artista um pouco do próprio corpo. Desta ficaram os olhos, daquela ficou a fronte, os cabelos de uma despenhavam-se ondulando sobre os alvíssimos e redondos ombros doutra, as mãos eram de tal, os pés duma outra, era a boca dum rosto, o nariz de outro e assim a obra perfeita era como o mel das abelhas — o conjunto do sabor de múltiplas corolas. Fazem assim os poetas.
Um conheço eu que, depois de me haver lido uma admirável composição em sonoros poemas alexandrinos, toda consagrada à glória de uma mulher ideal, dizendo-lhe eu o nome da criatura inspiradora, fez um momo dobrando lentamente o papel em que fulguravam os lindos versos:
— Estás louco. A boca, efetivamente, é dela, mas os olhos... Ah! se visses os olhos de... Duas violetas, meu amigo! Duas violetas! Nunca vi olhos daquela cor!
— Mas Fulana, objetei, tem uns pés de saloia (grossos). — Sim, os pés são hediondos mas eu, na poesia, refiro-me aos pés imperceptíveis da Cesira. Conheces Cesira? ah! meu caro...
— De sorte que na tua poesia há quatro mulheres!...
— Cinco, aliás: a graça é da Olímpia, ninguém anda como a Olímpia; é uma deusa.
— Mas isso é um gineceu em alexandrinos, homem.
— O poeta não ama a mulher, ama a beleza, concluiu o meu amigo com solenidade.
Não pensava assim o que morreu entre as árvores amigas. Foi um amoroso fiel e calado, não gemia o seu tormento, continha-o no coração e, de quando em quando, lá o exalava em estrofes. Enquanto a criatura amada viveu na mesma cidade em que ele morria abafou medrosamente o seu segredo, como Arvers (Félix Arvers, poeta francês); ela, porém, partiu para outros climas, para outros braços e o solitário, num derradeiro esforço, deixou o seu retiro e publicou a sua história dolorosa. No frontispício do livro, como a legenda sinistra, pôs ele uns versos do Cancioneiro de D. Diniz que resumem toda a sua agonia:
Quizo ben, amigos, e quero e querrey
Hunha mulher que me quis, e quer mal,
E querrá; mays non vos direy eu qual
A mulher; mays tanto vos direy,
Que quis ben, quero, e querrey tal mulher
Que me quis mal sempre, querrá, e quer.
Fomos companheiros em Lambari. Ela também lá estava. Uma vez, à tarde, conversávamos no cottage (cabana) do parque, ouvindo as cigarras, quando ele se pôs a falar no falecimento da sua velha mãe, uma boa e resignada velhinha, que era o seu amparo moral no mundo. Nunca pensara na morte enquanto ela vivera, mas na mesma tarde do enterro, voltando do cemitério, começou a ser perseguido por aquela ideia fatal. Sabia que estava perdido, era como um edifício que ia, aos poucos, caindo e, na sua qualidade de ruína, só acolhia tristezas. Enfim! e, resignado, encolheu os ombros.
— Mas tu tens aproveitado muito aqui, com as águas.
Voltou para o meu rosto os olhos tristes e, com um sorriso melancólico, disse com a sua voz rouca:
— Com as águas...
Súbito um riso cristalino rompeu alegremente o silêncio crepuscular. Ergueu-se o poeta de olhos cravados num caminho que se ia enchendo de festivo barulho. Um bando gárrulo de moças apareceu e, entre elas, esbelta e loura, com uns olhos que fulguravam, a boca mais vermelha que as rosas sanguíneas, onde um sorriso tinha residência, ela, a misteriosa criatura amada. Como se quisesse martirizar o desgraçado, chamou-o, a rir, tomou-lhe o braço e lá o foi levando por entre as flores, a inebriá-lo com o seu perfume de mancenilha (fruto como pequena maçã). Nessa noite, no salão do hotel, o poeta recitou um apólogo: O sapo e a estrela.
Era uma vez uma estrela...
E vai um sapo, o idiota,
Logo apaixonou-se ao vê-la.
O apólogo foi recebido com aplausos gerais, mas num vão de janela, houve quem murmurasse, disfarçando um sorriso: “O sapo... coitado! é ele...” E a estrela andava trefegamente (astutamente) pela sala reunindo pares para uma quadrilha.
E ele, triste, do fundo da sua melancolia de moribundo, ficava-se a contemplá-la, como o sapo contemplava Sirius. Não lhe falava do seu amor; e que lhe havia de dizer se ela era a própria imagem da Vida e ele... sempre a tossir, ouvindo as lástimas dos que auguravam a sua morte próxima. Que, ao menos, a deixassem ali, perto dele. “É a luz da minha última hora”, suspirou, uma vez, disfarçando a mágoa num sorriso.
À volta, no trem, ele queixou-se: “Vai recomeçar o meu sofrimento...” E voltou os olhos marejados para o banco em que ela estava — era o apartamento. No hotel viam-se a toda hora e ele estava sempre a ouvir-lhe a voz, mesmo quando adoeceu pediu que lhe conservassem a porta entreaberta e, como se alvoroçava quando, pelo corredor, vibrava o riso cristalino da formosa indiferente!
No Rio viu-a uma tarde, na rua do Ouvidor, toda vestida de azul:
Chapéu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azuis o para-sol e as luvas, Senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa, toda de azul, por mil bocas bendita,
Vendo-a não se vê mais nada que o azul tonteia....
Como num sonho azul logo nos vem à ideia
Um pedaço de céu azul passeando a terra.
Um dia ela partiu para o campo e de lá a cruel, escrevendo à ama amiga, pedia-lhe que dissesse ao poeta que certamente ele ficaria curado com aqueles puros ares da serra, bebendo aquelas frias águas que emanavam das penhas e o leite gordo que uma boa mulher trazia, todas as manhãs, à porta do hotel. Ele que fosse, que a fosse ver para convencer-se: estava outra, ela mesma achava-se bonita.
E o mísero, sofrendo, lançou-se afoitamente ao trabalho: em oito dias concluiu uma peça, entregou-a ao empresário e partiu. Lá esteve e, enquanto a sentiu perto, louvou a terra e os ares, falando em ressurreição: “ Eu vivo aqui — sinto-me outro”. Ela, porém, desceu e, desde logo, todas as virtudes dos ares puros e das águas límpidas desapareceram. Voltaram os sofrimentos — a febre, a insônia, os suores noturnos até que, um dia, os jornais anunciaram a partida da bem amada para a Europa.
Esse amor era uma misericórdia, a presença da criatura era o amparo daquela vida, tanto que quando ela partiu começou a destruição. A Morte, encontrando o coração ferido, foi abalando as últimas resistências, uma, porém, reagia — era a esperança de que ela voltasse. Mas não, deixou-se ficar em outras terras, nos braços de outro. Bem que a sua Musa presaga soluçara:
“Ela nunca terás nem seu amor.”
Desequilibrado, sem esse ânimo forte, o poeta caiu. Tornou-se-lhe, então, a vida um rosário de dores e as que menos o torturavam eram as que lhe pungiam o corpo — a alma, essa sofria mais acerbamente. E começou o desfalecimento — o solitário achou-se sem o seu “ sonho “, tudo era deserto em torno; nem o seu faceiro sorriso, que era a alegria dos seus olhos, nem a sua voz que era a sua melodia predileta, nem o aroma que ela espargia como se deixasse no ar um sulco de perfume. Lá longe! Como chegar até lá!... Esses poetas, têm, às vezes, sonhos extravagantes... Quem sabe?!
Abatido, quis ainda voltar ao sítio que ela lhe recomendara como sendo um lugar de beleza e saúde. Foi, apeou à porta do mesmo hotel rústico que ela habitara, percorreu vagarosamente os caminhos que ela percorrera, agasalhou-se à sombra da sua árvore predileta e teve visões de amor, viu-a ao longe, sentiu-a entre as flores silvestres:
Tudo de luz se inunda e, dominando tudo
Cheio da própria luz, sobressai na paisagem
O correto perfil dessa que me não ama.
Esse perfil não estava na paisagem — estava no coração, era uma miragem passional, mas... Esses poetas, esses poetas! Quando amam são capazes de tudo e quem sabe se o desgraçado, sem esperança de tornar a vê-la, não fez como aquela escrava do conto que, para juntar-se ao filho morto, cravou um punhal no coração?
Ele não precisava lançar mão de uma arma para realizar esse desejo sinistro — a Morte estava dentro dele e bastou que deixasse a fera sair da jaula, onde a continham os cuidados, para que, em um momento, o martírio findasse. E agora?...
Talvez que, em breve (não vem longe a primavera) a ingrata, que habita um velho castelo de França, receba a visita da alma peregrina.
Uma noite, apoiada ao balcão, olhando o céu, ouvirá cantar um rouxinol nos roseirais em flor. Será tão lindo e tão sentido o canto que ela, apesar de indiferente, voltará o rosto para ouvi-lo e, ouvindo-o, não imaginará que, no pássaro dolente, palpita a alma saudosa do que viveu por ela, do que morreu de amor.
Ah! o soneto d'Arvers, o soneto d'Arvers...
É bem possível que, quando chegar à França a notícia da morte do poeta, seguida dos comentários sobre a sua paixão funesta, ela, deixando no colo a carta anunciadora, exclame, finalizada, na língua que adotou:
“Quelle est done celte fimme?” et na comprendra pas.
(Então quem é essa mulher? e não vai entender)
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Henrique Maximiano Coelho Netto nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.
Fontes:
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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