segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Renato Frata (Visita)

A poeira acumulada sobre a lápide saiu com água e vassouradas, na rápida faxina. Fazia algum tempo que não visitava o túmulo de meus pais; por isso, quase findo o expediente, juntei balde e vassoura para me colocar à tarefa. O anseio da chegada do outono já diminuía a robustez do sol, de modo que não me preocupei com seu excesso embora o calor desse o tom de tarde ensolarada com nuvens claras em vadiagem.

No céu de outono se escondem as maiores belezas, já dissera alguém e, naquele dia, quando o sol já projetava um barrado vermelho tingindo o horizonte, um azul acinzentado se alimentava em meio a uma ou outra nuvem de algodão a lhe quebrar a cor, o que significava que a seca se manteria. Absorto e em meio ao mudo silêncio de vozes no recanto, somente esfregares e piares se ouvia. De resto, a solidão com seu manto sóbrio junto ã beleza entristecida dos fachos de luz vazados como flechas fosforescentes entre ramos, esticados e debruçados alisando-se em túmulos impolutos e granitados, decorados com bronzes e cristais a mostrarem posse dos ocupantes e, também, porque não dizer, disseminavam-se a não ver diferença naquelas campas menores de acabamento simples, com pinturas gastas ou até sem elas, adornadas por cruzes de madeira e números enferrujados nas placas indicativas, e o fazia por igual, com a mesma beleza, sem se importar com essa exagerada diferença.

Alguns estavam limpos e asseados, outros, porém, á mercê das travas do tempo, carentes de limpeza e zelo no mais explícito descaso. Para aqueles fachos, porém, sem se aterem à distinção da aparência e pompa, todos mereceram clarões na proporção que os ramos permitiam ao quararem a luz e, convenhamos, poder notar essa beleza num fim de tarde, com lúmens tão nítidos a criarem visões esplêndidas na singela expressão da igualdade, o ignorar das especificidades tumulares direcionando-se a esmo como o sol ordenava, repetia aos meus olhos a certeza de que finda a vida tudo se iguala ao voltar ao pó, embora, pelo nascimento, cada qual devesse ser livre e igual em dignidade, em direito e em disposição. 

E aí me veio uma dúvida que hoje, centrado em mim, ponho-me em comiseração sem encontrar resposta entre muitas que bailam soltas em dança maluca: por que tanta diferença entre os seres, já que a vida reserva para si a busca incessante da sabedoria? Não deveria o homem, de qualquer estágio econômico e social saber sonhar com tudo o que existe e não apenas consigo e, com isso, se permitir àquilo que o sonho em si revela? Por que a vida não mostra a todos o mesmo caminho das oportunidades? Por que somente a morte e não a vida, nos iguala independentemente dos abrigos que nos dão no cemitério?

A luz projetada em leque iluminando pontos dispersos, somada à terra esfarelada em voejo (esvoaçante) pelo vento ao silêncio soturno do vazio na tarde modorrenta, à solidão penumbrosa de melancolia que escorria aos olhos do sol poente e à cor do esquecimento estampada em várias tumbas, criaram esse conjunto de indagações. Bom de observar e ruim de se ruminar, impossível de aceitar. A diferença na vida faz a constância! - é o ditado. Por isso nos acostumamos... e passamos ao largo, longe das cercas necessárias, cegos para a pobreza e particularidades humanas.

Pois, daí a pouco, sem menos esperar, uma aragem impregnada de poeira cheirando à terra saturou o ar e me fez sentir inusitadas sensações a me assomarem sem que desse conta da sua pujança. Se não digo bela, no mínimo era surreal pelo esplendor mostrado.

O sol, como a se despedir findo em encantos na realidade perversa que relegamos, pôs-me cruz no coração. 

Por que nunca notara tais diferenças? Se as notei, por que as releguei? Não saberia dizer. Foi tão instantâneo que a rapidez do tempo não me permitiu decifrar esses sentimentos, e nem sei ainda o porquê de ter juntado os elementos incomuns num momento tão íntimo que é a visita a falecidos.

A quietude ampliada pelo sol sendo absorvido num pré–crepúsculo em meio ao vento morno da boca da noite, como ordem sistemática, calaram-se os pássaros para fazer em mim daquele silêncio o grito da realidade. O tremular das chamas vivas no veleiro a suportar o buliçoso que as soprava, ajudou-me a concluir que o conjunto luz, poeira, silêncio e solidão, a despeito do que possam representar em outras situações, jamais seriam observados se eu estivesse envolvido apenas na tarefa de limpeza, oração e recolhimento a que me havia proposto. Mas esse silêncio morno que ali habita a fazer júbilo ao sol que se esvaía, talvez tenha aberto essa porta de observação para criar sensações nunca experimentadas como compusessem uma sonata muda do recordar para invadir minha alma, criar sinestesias e, com isso, colocar aumentativos nas próprias sensações como bússolas internas a nortearem os movimentos da alma.

De vassoura em punho, enquanto o silêncio de túmulos tristes falava na voz branda do vento e a solidão respondia na diminuição sistemática do lento apagar dos fachos, senti a aliança do sossego da morte com a imensa tristeza no encapelado mar da vida: nada demais em se tratando de um cemitério.

Não tive medo nem receio, mas condoimento pelos meus e por tantos que ali repousam em meio a essa diversidade própria do ser vivo e, parado em mim de compleição austera, notei que além daqueles elementos insistentemente presentes havia outro ao qual reputei interessante: o abandono. Sim, dos túmulos esquecidos. 

Eles representavam a indiferença, o afastamento, o ignorar a quem ali se pôs. Abandono, tenho por mim, é o nome que se dá à estação em que o trem da vida se acomoda para a eternidade ao passar pelas estações sombrias do Desespero, da Saudade, da Lembrança, da Desesperança, advindas dos estágios de deslembrança da perda de alguém.

Coisas do tempo, eu acho, que com suas manobras sobre nós reserva. A chegada desse trem mostra que ao escorrer tudo se vai para não retornar e, nesse chegar definitivo, apaga-se a lousa na qual se registrou a vida deixando, como sinal dessa passagem, apenas borrões incompreensíveis, tantas as razões, as (in)certezas, as dúvidas vivenciadas. Visão que pode ser comparada à lágrima que de tanto doer, seca e, sem se aperceber ao processo de secamento, inunda tanto o coração para fazê-lo transbordar para a alma, a quem se dá o nome tristeza, símbolo cogente (coercitivo), mas natural, do cemitério.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: 
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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