domingo, 29 de dezembro de 2024

Newton Sampaio (Festa de S. Antônio)

O vilarejo sem história, apertado em todos os flancos pelos grilhões inflexíveis das serras, libertava-se pouco a pouco da dormida plácida sob a colcha enfeitada de estrelas. A alvorada, sem clarins nem tambores, ia espantando, todavia, bem pra lá dos grotões e dos picos, as sombras bracejantes da noite.

E os primeiros fios de luz, deixando descoloridamente em destacado os contornos grotescos das casas, eram vanguardeiros do sol, que não tardaria a chegar com o seu cortejo de luzes. Depois, quando as curvas fidalgas do horizonte emprestavam linhas esculturais às montanhas plebeias, os telhados sem simetria fuzilaram no ar em chapadões borbulhantes.

Já então, as primeiras manifestações da vida começaram a adejar sobre o lugarejo desconhecido. E o rio — um rio largo que vinha lá de longe, e vinha descrevendo arabescos caprichosos entre a deselegância das cordilheiras — arrastou suas águas no coração da vila e levou, diluída nelas, a vibração sem par da manhã cabocla. 

E assim amanheceu o dia de S. Antônio naquela povoação distante.

Lá na última esquina, um comerciante adiposo abre as portas de sua casa de negócio e varre o assoalho cuspido e imundo.

Coçando-se na quina de um poste sem serventia, um pobre cão vagabundo atira ao ar ladridos esparsos, como que antessofrendo, no começo do dia, a melancolia de mais um dia vivido ao léu e sem dono.

No lar do Benedito Olivério desenrola-se a mesma cena de sempre. Ele, sentado na beira do catre, esforça-se por adaptar ao pé o sapatão de couro. A mulher arrasta os chinelos de um lado para outro. E, junto ao fogão, as crianças, esfregando os olhos ainda cheios de sono e de remela, choramingam impertinentes, reclamando um naco de batata assada.

— Mãe, hoje eu queria comer pão.

— Cala a boca, feição do enorme. Onde já se viu esse luxo?

— Pois hoje é o meu dia, mãe...

E Tonico, o filho mais velho, parado na porta que dá para o quintal, contempla com olhos diferentes o azulado longínquo do Pico Agudo.

— Patroa. Faça a vontade do menino. Pelo menos no dia de S. Antônio.

— Qual nada! Extravagância não é pro bico do pobre.

O Benedito Olivério olha a Nida de soslaio. E matutando em silêncio:

— Coitada de minha mulher! Pra ficar “braba” não pede licença. Por um nadinha está subindo a serra. Também, pudera! Uma porção de filhos já quase criados... E ainda por cima uma doença desgraçada no fígado...

E ajeitando a cinta:

— Toma lá, Tonico.

Com gesto displicente, o menino toma a pratinha. E já descendo a rua esburacada, mete as mãos nos bolsos, atirando a esmo assobios discretos. Reflete. A vida... O que era a vida para ele? Uma pasmaceira sem conta... Batera uma crise na casa!... De segunda a sábado, fora os dias santos, atravessar a ponte de manhãzinha, escalar a serra, e lá na primeira baixada ajudar o pai no algodoal. De tarde, um banho no rio. À noite, conversar com a vovó Francelina, e ouvir dela umas histórias sem sabor. Ainda o prendia à velha a gratidão sincera que nutria. Desde pequeno acostumara-se Tonico no conchego da avó. A mãe vivia numa neurastenia sem fim. Até parecia madrasta...

Na volta vê o estrugir de alegria nos outros meninos. E considera a ironia da véspera. Ele, que se chamava Antônio, não tivera uma distração. Nem um busca-pé. Nem uma bomba de parede. E Tonico fica com uma vontade de transformar o mundo numa enorme bomba e atirá-la de encontro ao sol...

Bem de tarde, no quintal da casa, Tonico estende as vistas como que acompanhando um ponto indeterminado a se deslocar no céu que se afogava no delírio do ocaso.

Invade a atmosfera o bimbalhar compassado de um sino. E quebra-se logo ao longe, na fraqueza de ecos sucessivos.

Tonico pensa em assistir à novena de S. Antônio. “Mas pra quê?” E suspende a pergunta na precocidade de seu ceticismo.

No lugarejo, a comemoração do santo continua. Desde a gritaria da criançada até a coparticipação dos grandes. E na algazarra da matula infantil, quando o balão, inflado como fêmea pandorga, inicia livre a ascensão sem destino. E no espoucar intermitente dos traques minúsculos. E no estralejamento vibrante da foguetada.

Noitinha já, entra Tonico na casa. Os irmãos todos de mãos vazias, mas num assanhamento sem conta, foram espiar a festa das outras crianças. A vovó, como sempre, na novena.

— Pai, eu queria arrebentar uma bomba hoje.

— Diabo de guri pedinchão! (E Nida interrompe brutalmente o pedido). Pensa que nós plantamos dinheiro na horta?

— Não se amofine, patroa. É comigo que ele está falando.

Benedito trincoleja no bolso as moedinhas parcas.

— É um esbanjamento nesta casa... Guarda esse dinheiro, Dito. 

— Deixa, mulher, deixa.

Não se conforma a Nida. Aperta as maxilas de raiva. E praguejando: — Tomara que arrebentem não sei onde essas malditas bombas.

O menino sai em silêncio. Que vontade ainda de comprar uma bomba enorme, do tamanho do mundo, e jogá-la de encontro à lua, no crescente!

— Seu Fidélis. Qual é a maior bomba que o senhor tem aí?

— A maior? É esta. Veio como brinde. Mas eu não sei como brincar com isso. Cuidado, menino. O estouro dessa não é estouro de traque, não.

Na esquina próxima, a criançada se agita. A gargalhada dilui-se perdulariamente em todas as gargantas.

— Pessoal! Escute só o estouro desta!

Tonico, de feições contraídas, quer que todos estejam atentos. Não seria melhor que o mundo inteiro olhasse a casa da esquina, naquele momento, como que a válvula única para sua infinita amargura?

O menino, apertando fortemente na mão direita o perigoso embrulho, precisa tomar impulso. Arreda o passo. Volteia o braço para trás. Ao mesmo tempo, imprudentemente, a Piva, uma irmãzinha do Tonico, corre pela calçada. No entanto, não é mais possível tolher o golpe. Projetada com energia contra a parede, reflete-se um pouco a bomba, e estrondeia junto à menina.

No seu aturdido, Tonico não compreende, no primeiro momento, os gritos lancinantes de dor. Em atonia completa, apenas enxerga a irmãzinha nos braços da gente que acorrera. Depois, pela concentração de todas as energias, desliza como uma sombra na rua deserta.

Lá, nos pilares incoercíveis da ponte, o rio continua a música do atrito. E a música da luz, longe, nas estrelas e no crescente, continua a procurar a superfície da água para a multiplicação do concerto supremo. E a sinfonia da semiloucura quer arrebentar os miolos do Tonico...

Sabedora do ocorrido, Francelina sai como doida à procura do neto. Encontra-o na cabeceira da ponte, com o rosto entre as mãos, chorando. Aconchega-o, carinhosa, ao peito. Beija-o com efusão. E sussurra:

— Tonico. Vamos pra casa. Eu sei de uma história bonita que se deu comigo lá em Minas, numa festa de S. Antônio...

Na rua recomeça a alegria. A mesma barulheira esturdia.

— Santo Antônio! Meu bom Santo Antônio!

E o vilarejo sem história, apertado já em todos os flancos pelas cadeias eternas das serras, cobriu-se melhor na colcha enfeitada de estrelas. E imobilizou-se ainda mais nos grilhões inflexíveis da noite…
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Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 13/06/1933.
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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