DESDE QUE me entendo por gente (e olha que isso faz bom tempo), vivo privado da minha liberdade de ir e vir, custodiado numa cadeia de edificação ciclópica, como se tivesse sido esquecido pelo destino no meio do Oceano Atlântico, e onde a minha cela, para piorar meu quadro diabólico se assemelhe a uma espécie de gaiola dos loucos e desvairados, como a das edificadas naquela antiga prisão do século dezenove, conhecida como a fortaleza de Boyard, erigida entre as ilhas de Aix e Oléron, no sudoeste da França. De uma dessas celas, tento, em vão virar fumaça em pleno ar, sem, no entanto, lograr êxito de pelo menos dar de cara com uma chaminé salvadora.
Na verdade, esse cárcere não fica muito distanciado de se assemelhar — sem tirar nem pôr — a um daqueles cativeiros dos tempos da Roma antiga onde se confinavam os escravos rebeldes desobedientes de seus amos e senhores. Faço referência, obviamente, ao calabouço dos tempos — ou seja — registro a minha desdita como se morresse um pouco a cada dia num lugar ermo e ignominioso destituído das benesses de um céu mavioso e de um sol bonito e aconchegante incrustrado nos cafundós de meu “eu” interior. Em meu recôndito, os minutos se arrastam como correntes enferrujadas e as horas se amontoam sobre os ponteiros como pedras pesadas ao redor dos meus pés de passos calejados.
O tempo — essa entidade implacável — construiu, para mim, um mundo de paredes invisíveis, tipo um labirinto que exala o tempo todo um estado de desespero e a noção de “passado presente-e-futuro” se entrelaça em uma espécie de música bestificada enlaçada numa dança lancinante e enganosa de vida perpétua. Cada dia, quando acordo, tenho a impressão de que o cubículo onde me encontro, mostra meu corpo acrescido de um novo grilhão. Com ele, igualmente acorrentado, a minha liberdade de voar, fugir, sumir, dar no pé, entra em parafuso torto. Enfim, o delírio de me escafeder para algum lugar menos desumano, vai na onda. Mingua, perde a textura. Com isso, as tentativas me parecem e se me afiguram como um registro do rascunho de uma lembrança distante, assim como uma promessa que nunca chegará.
Sempre que desperto, a cada manhã, o mesmo ciclo de flagelos volta à carga. Retorna com força total, como se eu estivesse manietado em um loop interminável de rotinas e obrigações das quais não poderia, de nenhuma forma, abrir mão. Os minutos, por conta, parecem se esticar e encolher, brincando com a minha percepção, fazendo com que o tempo (o meu tempo) passe à revelia, e, para meu desassossego, se consuma de forma cruel e caprichosa. De contrapeso, o meu passado, com suas memórias e arrependimentos, se faz vivo como uma sombra constante.
As sombras nos contornos de um rosto extremamente negro, como a destituição total da ausência de sol no Círculo Polar Antártico, ao sul do planeta Terra. Essa negritude, a bem da verdade, me persegue com suas imagens fragmentadas de sons e ruídos, barulhos e fuzarcas que não consigo esquecer. Tento, em vão, mas ao final, me desencorajo vencido e acuado. Cada escolha que faço errada, cada momento que já me chega perdido, se reflete nas paredes e nas grades de minha prisão. O que poderia ter sido e o que realmente foi, se unem, se misturam, se mesclam, se associam em um mosaico de nostalgias e arrependimentos.
O meu imediato, o meu hodierno, o meu agora, ou ainda, o meu espaço efêmero e fugaz —, em outras palavras de igual porte —, ou sintetizando, o profundo rés-do-chão onde vivo e vegeto a maior parte do tempo, não me deixa deslanchar, singrar novos ventos, ou reviver ainda que por um espaço ínfimo, o sonho de Ícaro. Mesmo aqui, alfinetado pelos percalços diurnos diários, a sensação malograda e frustrante de estar encadeado, chumbado, aferrado e submetido, não me larga, não me deixa, não me abandona, tampouco desgruda. O presente, o meu presente é ainda uma série de tarefas intermináveis repletas de responsabilidades esmagadoras. Cada uma delas se arrastando de volta à minha cela.
As oportunidades surgidas, parecem escorregar entre os meus dedos, como areia fina que não possa de nenhuma forma humana segurar. O meu amanhã, por outro lado, ou o porvir dilatado das minhas quimeras, é um horizonte afastado, frio gélido e nebuloso. Parece uma promessa fria e fraca, tipo assim, um Nirvana que possivelmente nunca se materializará. Apesar desses prós e contras, não estou de braços cruzados, ou “A espera de um milagre,” como o calvário vivido por John Coffey, que morreu inocente na cadeira elétrica, por um bárbaro crime que não cometeu. Os fenômenos incomuns nunca foram meus parceiros.
Sempre se fizeram distanciadamente elásticas. Espero e planejo. Entretanto, a incerteza, ao contrário, é a única certeza dentro do meu agora. A cada passo que empreendo em direção ao futuro, ou ao que presumo ser um trajeto de fisionomia próspera, porém, tal civilidade não se materializa. Em razão disso, me sinto um zero ao quadrado. Um “nada” obtuso puxado de volta para um buraco de profundidade sem via segura, de onde possa regressar, alvissareiro, sem as espessas correntes de um tempo magnânimo não me tolhendo o seguir adiante. Sempre que tento escapar desse inferno que me queima os ossos, apesar de todos os esforços.
A verdadeira liberdade (pelo menos o tênue sopro que às vezes me contempla), ou dito de forma mais esclarecedora, a que sonho vinte e quatro horas, surge em forma de um devaneio, ou um ponto equidistante. Uma quimera disparatada. Tudo me chega como uma visão distorcida, alterada, disparatada que se dissolve quando tento alcançá-la. As horas passam, os dias se tornam semanas, e as semanas se transformam em anos. O tempo, ou o meu tempo é o meu carcereiro implacável, e eu sou seu prisioneiro. No entanto, talvez a verdadeira chave para a minha liberdade esteja na aceitação do tempo como ele é, ou, de alguma forma ainda não aprendida, careça de escavar e a condicionar como previsível o imprevisível, e, infinitamente impersistente, o persistente.
Viver atado às garras de um cubículo do tempo é um desafio constante. Talvez, acredito seja a mesma senda, ou uma oportunidade única para me encontrar em algum lugar seguro. Um espaço que não repita esse canto em que estou. Mas a pergunta é: encontrar exatamente o quê? Afinal, em que mundo vegeto? Sempre me questiono e não obtenho resposta. Seria o significado nas ínfimas bobagens não vistas, as coisas ou as brechas, ou entre os percalços e os grilhões perseguidos que me atormentam? Oxalá, no final, a verdadeira liberdade não seja a ausência de tempo. Por certo, a minha felicidade se coadune ao fetiche da capacidade de viver plenamente dentro de suas garras e literalmente envolto dos calcanhares à raiz dos cabelos, “titaniquiados” sei lá, no naufrágio inaudito das minhas próprias e severas limitações.
Fonte: Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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