quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Almofadinha de Ouro)

Era uma vez uma menina muito bonita e graciosa, filha única, e que teve a infelicidade de ficar órfã de mãe. Seu pai ficou ainda moço e casou novamente, com uma viúva que tinha uma filha, pondo-se mocinha e muito feia e orgulhosa. 

A madrasta, na presença do marido, tratava a enteada bem, mas como esse vivia viajando, vingava-se, obrigando-a em trabalhos pesados, como lavar roupa, limpar a estrebaria, o galinheiro, a casa inteira, etc. A mocinha começou a viver amargurada e sofrendo toda a espécie de privações e insultos. De tanto padecer, perdeu a paciência e achou que o remédio era fugir daquele purgatório.

Antes de tomar essa decisão, a moça rezava todas as noites à Nossa Senhora, que era sua madrinha, pedindo que lhe ensinasse os caminhos do bom proceder. 

Nossa Senhora virou-se numa velhinha e falou com ela no caminho do rio, explicando tudo. Abençoou-a e lhe deu uma almofadinha de ouro que era encantada. Quando precisasse de alguma coisa, pedisse à almofadinha de ouro, que fora dotada por Deus com poderes.

Deixando a casa, a moça andou muitos dias, com fome e sede, e acabou encontrando uma ocupação num palácio vistoso, residência de um príncipe solteiro e muito agradável.

A moça, para não causar suspeitas e despertar maldades, sujou o rosto e andava tão imunda que só lhe deram o serviço de tratar das galinhas e dos porcos, dormindo no fundo do quintal, num quartinho escuro e isolado do palácio.

Dia vai e dia vem, anunciaram três dias de festas e toda a gente ficou influída para esse divertimento preparando as roupas novas, encomendando os arranjos e fazendo cálculos. O príncipe era um dos mais alegres e as moças da cidade desejavam que ele se engraçasse de uma delas e casasse, por ocasião das festas.

Chegando o primeiro dia, o príncipe foi para o baile e os empregados do palácio fugiram para ver as luzes e a entrada das pessoas que iam dançar. A princesa velha, mãe do príncipe, foi também.

Ficando sozinha, a moça tomou banho, penteou-se e pediu à almofadinha de ouro que lhe desse um vestido cor do campo com suas flores e uma carruagem com criados.

Apareceu, incontinenti, o pedido, e a moça vestiu-se e compareceu à festa, causando um assombro pela sua formosura e beleza do traje. O príncipe largou todas as outras e só dançou com ela. 

Como lembrança do encontro, fez-lhe presente de um anel. Perto da meia-noite a moça desapareceu, fugindo para casa onde trocou a roupa; o vestido e o carro sumiram.

No segundo dia aconteceu a mesma coisa. A moça levou um vestido cor do mar com todos os seus peixinhos e o príncipe ficou encantado por ela, dançando, servindo-a e conversando. Deu-lhe uns brincos. Antes da meia-noite a moça não foi encontrada em parte alguma. Já estava em casa, suja e feia como habitualmente parecia aos olhos de todos.

No terceiro dia, o mesmo sucedido. Desta vez o vestido era da cor do céu com todos os seus astros, e a moça encandeava (deslumbrava) a vista pelo brilho das joias. O príncipe só faltava gritar de contente. Presenteou-lhe com um colar e ficou triste quando ela desapareceu, antes da meia-noite.

Passados os três dias, só se falava na cidade naquele assunto da moça desconhecida, com os três vestidos mais bonitos do mundo. O príncipe procurou-a como um cego procura a luz e não a encontrou em parte alguma. 

Estava tão apaixonado que adoeceu de cama, trancou-se no quarto e só deixava entrar sua mãe. Todo mundo lastimava a doença do príncipe e os médicos não tinham mais remédio para aconselhar nem receita que servisse. O príncipe nem queria comer e a princesa velha fazia as maiores promessas para que o filho se alimentasse, fosse como fosse.

Um dia a moça disse à princesa velha que queria fazer um bolo para o príncipe doente. A princesa achou graça no atrevimento, mas tanto a moça pediu e rogou que obteve o consentimento. Preparou-se, foi para a cozinha e fez um bolo dourado, colocando dentro da massa o anel que o príncipe lhe dera na primeira noite do baile.

O príncipe nem queria ver a comida, mas sua mãe tanto pediu que ele cortou um pedaço do bolo e, ao levar à boca, reparou num objeto que aparecia na parte restante no prato. Puxou com o bico da faca e reconheceu o anel. 

Comeu todo o bolo, melhorando, e declarou que queria outro bolo feito pela mesma pessoa. 

A moça fez o outro bolo e neste mandou o brinco, que o príncipe achou e ficou certo de que a moça estava por perto. 

Pediu outro bolo e neste veio o colar. Então, sem ter mais dúvida, disse à princesa velha que mandasse ao seu quarto quem fizera os três bolos. 

A princesa obrigou a moça a mudar de roupa, perfumar-se para tirar o mau cheiro do galinheiro, e disse que se apresentasse ao seu filho.

A moça subiu a escada, com a almofadinha de ouro na mão, e, assim que bateu na porta, pediu que lhe aparecesse no corpo o vestido do terceiro dia da festa, dos pés à cabeça. Quando a porta se abriu e ela entrou, o príncipe deu um grito de alegria, levantou-se da cama bonzinho de saúde, chamando pela mãe e mostrando a moça que estava mais bonita do que nas noites passadas.

Casaram-se imediatamente, contando a moça sua história, e foram felizes até a morte.
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Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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