Apesar de muito vivido, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem mesmo porque o chamavam dos mais variados nomes e nunca de Carlim. Aliás, esse nome ele mesmo se deu.
Andava um dia perdido, porém satisfeito, quando parou junto a um muro e sua sombra. Só queria descansar e situar-se. Talvez não estivesse tão longe de casa. Isto é, de seus amigos, da rua onde costumava dormir.
Recostado ao muro, ouviu vozes de crianças. Faziam perguntas a uma mulher. Gritavam, riam, num vozerio babélico. A moça falava do Sacro Império Romano Germânico. De imperadores, reis, príncipes. De Carlos V, Maximiliano, Borgonha, Solimão, etc. Palavreado difícil, nunca antes ouvido.
Curioso, Carlim procurou ver as crianças e a moça. Descobriu uma janela. Primeiro viu a professora. Falava sem parar, explicava, lia. A certa altura, apontando para uma figura do livro, disse: este é Carlos Quinto. Porém, viu Carlim e nele fixou o olhar. Mirou-o profundamente. E havia tanta ternura (ou tanta piedade) em seus olhos, que aquele instante Carlim sentiu como sendo o seu batismo. Sentiu-se filho, sentiu ter tido mãe. Pois os olhos da moça lembravam os de outra...
A mãe de Carlim morreu debaixo de um carro. E ninguém parou para socorrê-la ou remover seu pobre corpo a lugar seguro. Carlim ainda tentou arrastá-la para a calçada. Por um triz, não morreu também.
Sim, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem do que faziam. Mesmo os gestos e as palavras mais repetidas. “Fulano não vale nada. É um cachorro”. Quando se aproximava de alguém, era enxotado. “Sem vergonha, vira-lata, cão-sem-dono”.
Carlim procurou os amigos. Quem sabia o significado de cão-sem-dono? E passaram a conversar mais. Precisavam se unir, lutar por direitos básicos: casa, comida, carinho, etc. Propuseram a criação de uma sociedade. Alguém brincou: Sociedade dos Cães-Sem-Dono.
A reação dos “outros” não tardou. Devem ter visto Carlim na televisão. Nada de casa, comida e carinho para aqueles vagabundos. Nada de nome. Quem vivia na rua era cão-sem-dono. Portanto, sujeito a comer lixo, levar pontapé, morrer debaixo dos carros. Além do mais, não havia casa para todos. Se aqueles sarnentos deixassem as ruas, eles, os “outros”, estariam perdidos. Adeus casa, comida, carinho, nome...
Pobres de tais rebeldes! Pois muitos foram considerados doidos e, por isso, mortos. Passavam dias e noites a latir, protestar. Cachorros doidos!
Em compensação, Carlim e seus amigos continuariam ao léu, perdidos nas ruas. E a toda hora morre um deles debaixo dos carros. Ontem mesmo foi a vez de Carlim.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).
“Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel, o mago das almas, 18/12/2010)
Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.69-70. Enviado pelo autor.
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