quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Abbie Phillips Walker (Festa na casa do sr. Raposo)

O Sr. Raposo era frequentemente perturbado pelo Sr. Cão e seu dono, então ele decidiu se mudar para o primeiro andar da floresta em vez de morar no andar térreo. Uma noite, ele olhou em volta ao luar e, para sua alegria, descobriu o lugar que queria morar.

Era uma casa construída nos galhos de uma grande árvore. Alguns meninos provavelmente haviam construído no ano anterior. 

“Com alguns reparos aqui e ali, esta será a casa mais bonita da floresta”, disse Raposo satisfeito.

Então ele foi procurar tudo o que precisava para tornar sua casa confortável longe do Sr. Homem. Ele até encontrou uma velha chaminé para manter seu fogão queimando bem. E em poucos dias, o Sr. Raposo contou a todos os seus amigos sobre sua nova casa e os convidou para uma festa em casa.

O Sr. Cobra, o Sr. Rato de Bolsa e o Sr. Esquilo não se incomodaram quando descobriram que a nova casa do Sr. Raposo estava na grande árvore. Mas o Sr. Coelho e o Sr. Texugo pareciam muito tristes e disseram que não aceitariam o convite amigável do Sr. Raposo, por mais que quisessem. Eles não podiam subir na árvore.

O Sr. Raposo pegou uma escada emprestada do Sr. Homem, e quando o Sr. Coelho e o Sr. Texugo disseram que não poderiam vir, ele percebeu que teria problemas para entrar em casa, especialmente se estivesse com pressa. Então ele decidiu que o Sr. Homem provavelmente não precisava da escada tanto quanto ele e que a escada seria uma boa adição à sua casa.

Quando ele contou ao Sr. Texugo e ao Sr. Coelho sobre a escada, eles decidiram ir, afinal, e uma noite, quando a lua estava brilhando, todos os animais iriam à casa do Sr. Raposo para comer. O Sr. Raposo achou que gastaria menos dinheiro se desse sopa aos convidados, então pegou todos os ossos que havia recolhido e os colocou em uma panela no fogão para cozinhar.

A fumaça subia de sua chaminé e espalhava o delicioso aroma de sopa. O Sr. Cão, que por acaso estava correndo pela floresta, viu a fumaça e sentiu o cheiro delicioso. Ele abanou o rabo e olhou para a casa na árvore. Então ele uivou e arranhou a árvore e, ao contorná-la, com os olhos fixos na casa o tempo todo, esbarrou na escada.

“Ah, que sorte!” ele disse, subiu e foi até a casa do Sr. Raposo, onde tirou a tampa da panela.

Levou menos de um segundo para tirar a panela do fogão, despejar a sopa na pia e deixar os ossos esfriarem. Então ele teve um delicioso banquete. Ele comeu até ficar sonolento, depois deitou no chão e adormeceu. O Sr. Cão não sabia que o Sr. Raposo morava naquela casa. Não que tivesse medo dele, mas teria dormido com um olho aberto para poder agarrá-lo.

O Sr. Raposo vagou pelas colinas, procurando um peru ou uma galinha perdida, e só voltou para casa quase anoitecendo. Subiu a escada correndo sem acender a luz e foi direto ao fogão ver como estava a sopa. Então ele tropeçou no Sr. Cão. O Sr. Cão deu um pulo com um latido rouco. O Sr. Raposo fugiu o mais rápido que pôde, mas não usou a escada, pulou pela janela e quase quebrou o pescoço. O Sr. Cão latiu ferozmente para ele.

O Sr. Raposo não parava de correr, e o Sr. Cão, pensando nos ossos que ainda não tinha comido, afastou-se da janela e atirou-se sobre os ossos. Enquanto ele ainda comia, chegaram os primeiros convidados da festa. O Sr. Cobra não precisava da escada para entrar, nem o Sr. Rato de Bolsa. O Sr. Esquilo não teve problemas para escalar. Mas eles pensaram que seria indelicado ir de qualquer outra maneira.

O Sr. Rato de Bolsa subiu a escada primeiro, seguido pelo Sr. Cobra. Então o Sr. Texugo e o Sr. Coelho subiram, enquanto o Sr. Esquilo subiu correndo a escada. Quando estavam na metade do caminho, o Sr. Cão, que ouviu barulho do lado de fora, foi até a porta. Ele deu a eles a maior surpresa de suas vidas, mas ele próprio ficou tão surpreso que nem latiu a princípio.

Depois que ele se recuperou do choque, ele saiu pela porta latindo. Mas o Sr. Cão não estava acostumado a descer uma escada e, no primeiro degrau, escorregou e caiu. Os convidados pularam imediatamente quando o Sr. Cão latiu, mas ainda não haviam saído do caminho quando o Sr. Cão caiu em cima deles. Junto com o Sr. Cão, o Sr. Rato de Bolsa, o Sr. Cobra e o Sr. Texugo caíram.

O Sr. Esquilo pulou em um galho da árvore e não se intimidou com a provação. Ele disse que era a visão mais engraçada que já tinha visto e tinha uma bela vista de onde estava sentado. Mas o Sr. Coelho disse que tinha certeza de que sua perspectiva era a melhor porque ele estava mais próximo da base da escada quando a queda começou. Ele tinha acabado de sair do caminho a tempo quando todos caíram no chão.

“Não dava nem para ver quem era quem, era um caos”, disse o Sr. Coelho, que mais tarde conversou sobre isso com o Sr. Esquilo.

Demorou muito para o Sr. Raposo convencer os convidados de que não pretendia receber o Sr. Cão em sua festa em casa. Mas quando o Sr. Esquilo disse a eles que realmente foi o Sr. Cão que comeu os ossos do chão e limpou a panela sem o Sr. Raposo saber, eles finalmente perdoaram o Sr. Raposo. O Sr. Raposo decidiu que o andar térreo era o mais seguro para ele, afinal. Quando ele se estabeleceu novamente, ele deu uma nova festa em casa, mas desta vez, o Sr. Cão não estava lá, felizmente.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> 
Abbie Phillips Walker. Contos para crianças. Disponível em Domínio Público.
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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 124 : Solange Colombara

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 129

Historicamente as civilizações surgiram pequenas, humildes, sem posses ou riquezas. Desembarcamos neste campo grande sem nada. Adaptamos.  Vamos em busca daquilo que a essência pede.  À luta.  Ganhos e perdas. Provamos da doçura e do amargor da existência. Capitulamos?  Não desistimos. Seguimos sorvendo do cálice agridoce da vida.

Se o tempo é "o que existe, inexistindo", vamos atrelados ao calendário em busca das manhãs serenas, das tardes açucenas, dos dias embebidos de alumbramento. 

Para onde?  Quem sabe?  Quem?  Seguimos bebericando momentos fugazes sondando o Destino que leva ao outro lado  do porto de chegada.  

E divagando a gente lembra Eduardo Galeano:  "A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos ela se afasta dois  passos.  Caminho dez passos e o horizonte  corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia ? Serve para isso : para que não deixe de  caminhar ".
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SILMAR BOHRER nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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José Feldman (A Esperança nunca morre)

Gumercindo, um senhor viúvo de 75 anos, passava seus dias em uma rotina tranquila, mas marcada pela solidão. Seu filho, Tião, de 25 anos, era seu maior orgulho e a razão de muitos sorrisos. No entanto, uma discussão durante um jantar, uma daquelas que surgem do nada, fez com que a relação entre eles desmoronasse. Tião, impetuoso e determinado a não aceitar a realidade que o cercava, saiu de casa sem se despedir, deixando seu pai com o coração pesado e a alma magoada.

Os anos passaram, e Tião, ao invés de buscar a reconciliação, mergulhou em sua carreira e em sua vida, tornando-se uma figura pública conhecida. O sucesso, no entanto, não preencheu o vazio deixado pela falta do pai. Gumercindo, por sua vez, esperava. Cada dia, sentado na varanda de sua casa, ele olhava pela rua, esperando que o filho voltasse. O orgulho que sentia por Tião era imenso, mas a dor do abandono o corroía lentamente.

Foi em um dia qualquer, após cinco longos anos, que Tião leu uma notícia devastadora em um jornal: seu pai havia falecido. O mundo ao seu redor pareceu desmoronar. Desesperado, ele decidiu voltar para a cidade onde cresceu, onde a casa que um dia foi cheia de risos agora guardava apenas ecos de memórias.

Ao chegar, encontrou a casa fechada, como se o tempo tivesse parado. Foi então que Leandro, um vizinho e amigo de Gumercindo, ao vê-lo, se aproximou. Ele possuía a chave da casa e, percebendo a dor nos olhos de Tião, abriu a porta. O cheiro de madeira antiga e o silêncio o acolheram de maneira quase dolorosa.

Enquanto caminhava pela casa, Tião se surpreendeu ao ver recortes de jornais e fotos pendurados nas paredes. Cada conquista sua, desde a infância até a vida adulta, estava ali, como uma galeria de orgulho e amor. Gumercindo, mesmo na ausência do filho, havia encontrado maneiras de celebrar o seu sucesso. E foi nesse momento que Leandro começou a contar histórias sobre Gumercindo.

“Seu pai sentava aqui todos os dias, na varanda. Ele falava de você com tanto carinho...”, disse Leandro, com a voz embargada. “Ele esperava a sua volta, sonhando em poder te abraçar novamente. Mas a tristeza foi tomando conta dele. Ele tinha leucemia, e eu sempre tentava cuidar dele, mas a falta de você o consumia.”

Tião escutava em silêncio, cada palavra como uma punhalada em seu coração. A imagem de seu pai esperando por ele, definindo-se dia após dia, foi mais do que ele poderia suportar. Ele nunca soube o quanto o pai o amava, mesmo quando se afastaram. E agora, o peso da culpa começou a se instalar.

A morte de Gumercindo não foi apenas uma perda, foi um divisor de águas. Tião, tomado pela dor e pela solidão, começou a beber. A bebida se tornou sua única companheira, uma tentativa de apagar a lembrança da dor que ele mesmo causara. Mas Leandro, já idoso e com sua própria batalha contra o câncer, não o abandonou. Ele percebia que Tião precisava de ajuda.

Com o tempo, a relação entre eles se fortaleceu. Tião começou a cuidar de Leandro, retribuindo o carinho que recebera. E em um momento de fraqueza, quando a vida de Leandro se esvaía, ele sussurrou: “Seu pai tinha muito orgulho de você. Agora eu sei por quê. Obrigado por seu carinho, seu pai me passou um recado, caso você voltasse: Eu te perdoo, meu filho, você vive em meu coração.”

Essas palavras foram um bálsamo para Tião. Ele entendeu que o amor de um pai é incondicional e que, mesmo nas piores circunstâncias, sempre há espaço para o perdão. A vida, com suas reviravoltas, havia lhe ensinado uma lição dolorosa, mas necessária.

Após a morte de Leandro, Tião se viu imerso em um mar de sentimentos conflitantes. A culpa que já o consumia pela morte de seu pai agora se amplificava, pois sentia que havia falhado mais uma vez, perdendo outra figura paterna importante em sua vida.

No início, ele ficou recluso, revivendo suas memórias com Leandro, lembrando-se do apoio que recebeu e das lições que aprendeu. Ele começou a perceber que a relação com Leandro, assim como a que teve com seu pai, era marcada por amor e aprendizado. Essa reflexão o levou a aceitar que a culpa não deveria ser um fardo, mas uma motivação para mudar.

Ele decidiu enfrentar sua dor em vez de se afogar nela. Ele começou a frequentar grupos de apoio, onde compartilhava suas experiências e ouvia histórias de outras pessoas. Isso não apenas o ajudou a lidar com seus sentimentos, mas também lhe ensinou sobre empatia e a importância de cultivar relacionamentos.

Com o tempo, começou a honrar a memória de seu pai e Leandro de maneiras práticas. Ele se envolveu em atividades comunitárias, ajudando jovens que enfrentavam desafios semelhantes aos que ele mesmo passou. Ao fazer isso, sentia que estava transformando sua dor em algo positivo, contribuindo para a vida de outros e, assim, mantendo vivos os legados de amor e orgulho de seus pais.

Através da escrita, Tião começou a expressar seus sentimentos em um diário. Ele escrevia cartas para seu pai e Leandro, compartilhando suas reflexões, arrependimentos e promessas de mudança. Esse processo se tornou uma forma de cura, permitindo-lhe dialogar com os que haviam partido e encontrar paz interior.

Com o tempo, percebeu que a culpa poderia ser transformada em força. Ele decidiu que não queria mais viver à sombra da dor, mas sim como um exemplo do que Gumercindo e Leandro sempre acreditaram que ele poderia ser. Essa nova perspectiva o ajudou a reconstruir sua vida, cercando-se de pessoas que o apoiavam e incentivavam.

A culpa, embora pesada, se tornou uma aliada na jornada dele. Ele aprendeu que, para honrar aqueles que amava, precisava viver plenamente e com propósito. Assim, não apenas lidou com sua dor, mas também encontrou um caminho para a redenção, transformando sua vida em um tributo ao amor que sempre recebera.

Tião percebeu a importância de não abandonar os pais, de valorizar cada momento. Eles sempre têm orgulho e muito amor pelos filhos, mesmo quando a relação parece estar quebrada. E, assim, ele decidiu não apenas honrar a memória de seu pai, mas também se tornar um homem melhor, não apenas para si, mas para aqueles que ainda o cercavam.

A vida, afinal, é muito curta para ser vivida com arrependimentos. Ele prometeu a si mesmo que, ao olhar para o futuro, faria isso com amor e gratidão, sabendo que, em cada passo, carregaria consigo o legado de seu pai.

Fontes:
 José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Aparecido Raimundo de Souza (Quando o Azul e o Branco se misturam...)

DENTRO DO ESTOJO dois lápis de cores diferentes discutem:

O Azul, imponente:
— A minha cor é mais bonita que a sua! 

O branco:
— Seu convencido. Deixa de ser bobo. Eu, o Branco, sou mais querido e amado pela Aninha do que você.

O Azul: 
— Engano seu. Eu sou o preferido dela...

O Branco:
— É mesmo? Desde quando?

O Azul: 
— Desde o momento em que ela foi na papelaria com a mãe, e meu viu dentro da caixinha, entre meus doze irmãos.

O Branco:
— Seu bobo. Bobo e desengonçado. Se acha o tal. 

O Azul:
— De fato, eu não me acho. Eu sou o tal. Se você reparar os cadernos da Aninha, seja o de Matemática, seja o de Português, e até o de Inglês, perceberá que todos os desenhos que ela fez para ilustrarem as páginas, eu me sobressaio. Dou de dez a zero em você!

O Branco:
— Você é um azul metido. Não passa de um desbotado, ou melhor, superado. Já o branco, ou o meu branco, melhor me expressando, está em tudo o que é cristalino... por onde passo, deixo tudo às claras e transparente. O branco mostra os podres do azul.

O Azul:
— Você, seu branco azedo, se esqueceu que eu estou no topo. Sou o azul do céu infinito, o azul das águas do mar imenso. Sou ainda o azul da bandeira e também o azul da Esperança...

O Branco:
— Alto lá. A esperança não é azul. É verde.

O Azul:
— Não mude o rumo da nossa prosa. O seu branco tira o brilho das coisas mais simples. Se você se olhar no espelho, perceberá que em face do descorado que deu origem às suas raízes, você se fez anêmico e quase invisível.

O Branco:
— Olha só o coitadinho, se fazendo de vítima. Cresça, moço. Meu branco está na alvura das nuvens, nos jalecos das pessoas que cuidam dos doentes nos hospitais, no açúcar que desfaz o amargo, na maisena da papa dos nenéns, no sal que tempera os pratos mais sofisticados, igualmente nos refrigeradores (você, por acaso já viu uma geladeira azul?). Também estou no branco da neve que cai, nos cabelos dos longevos, na maioria dos carros que rodam aí pelas ruas da cidade... 

O Azul:
— Não seja por isso: o meu azul está presente nas Araras azuis, nos Gaios azuis, nos Sapos-boi-azuis nas Garças azuis, sem falar que existe uma empresa aérea com aviões azuis cortando os ares deste Brasil imenso. Me faço presente nas campanhas do “Novembro Azul”, que conscientiza o homem a cuidar do câncer de próstata... e um particular que tenho certeza, você nunca ouviu alguém mencionar: as crianças com autismo usam muito o azul em seus desenhos. Mudando o quadro, veja por exemplo, os times de futebol. O Grêmio de Porto Alegre é azul... as mulheres preferem vestidos azuis, sapatos azuis, lingeries azuis... quer mais? O Cruzeiro de Minas é azul. Não posso me esquecer que estou na crista da onda em canções famosas, como “Azul da Cor do Mar”, do Tim Maia, no “Azul” do Djavan, no “Todo Azul do Mar” do KLB...  

O Branco:
— Acabou?

O Azul:
— Sim. Acabei. 

O Branco: 
— Você realmente se acha... cretino de uma figa. Vou lhe dar o troco. Suas proezas são legais e bacanas. Sua cabecinha oca pode até se vangloriar, ou seu ego se imaginar o maioral, o intocável, todavia, ouça o que vou dizer e guarde a sete chaves para nunca se esquecer... você alardeou ser música famosa, time de primeira linha, aviões, carros, o raio que o parta... porém, numa coisa, eu ganho de você. E ganho longe...  

O Azul:
— Diga lá, seu Branco sem noção. Sou todo ouvidos. No que você me ganha?!

O Branco:
— Eu represento a coisa mais importante neste mundo. Maior que seus times, suas músicas, seus cantores, seus aviões... quando tiver um tempinho, pergunte à Aninha... 

O Azul:
— Não vou perguntar nada para ela. Quero saber de você. Fala logo, não estou com paciência.

O Branco:
— Eu represento meu caro companheiro Azul, ou melhor, eu simbolizo, eu patenteio o retrato fiel e sem retorques ao pé da letra, daquilo que toda a humanidade busca incansavelmente: a PAZ!
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Monteiro Lobato (A mulher dengosa)

Era uma vez um homem que se casou com uma mulher muito cheia de dengues. Fingia não ter apetite. Quando se sentava à mesa era para tocar apenas nos pratos. Comia três grãos de arroz e já cruzava o talher, como se tivesse comido um boi inteiro.

O marido desconfiou de tanta falta de apetite, porque apesar daquele eterno jejum ela estava bem gordinha. E imaginou uma peça.

— Mulher — disse ele — tenho de fazer uma viagem de muitos dias. Adeus.

E partiu com a mala às costas — mas deu jeito de voltar sem ser percebido e de esconder-se na cozinha, atrás do pilão.

Logo que se viu só em casa, a mulher dos dengues suspirou de alívio e correu à cozinha.

— Joaquina — disse à cozinheira — prepare-me depressa uma sopa bem grossa, que quero almoçar.

A negra preparou uma panelada de sopa, que a dengosa engoliu até o finzinho.

Logo depois disse à cozinheira:

— Joaquina mate um frango e prepare-me um ensopado para o jantar.

A negra preparou o ensopado, que ela comeu sem deixar uma isca.

— Agora, Joaquina, prepare-me uns bijus bem fininhos para eu merendar.

E merendou os bijus, sem deixar nem um farelo.

— E agora, Joaquina, prepare-me um prato de mandioca bem enxuta para eu cear.

A negra preparou a mandioca, que a dengosa comeu até não poder mais.

O marido então escapou do seu esconderijo e foi bater na porta da rua, fingindo estar chegando da viagem. Era um dia de chuva bem forte.

Quando a mulher abriu e deu com o homem, ficou desapontada. Ele explicou que havia desistido da tal viagem e voltado.

— Mas maridinho, como chegou você tão enxuto, debaixo duma chuva tão grossa?

O marido respondeu:

— Se a chuva fosse tão grossa como a sopa que você almoçou, eu viria tão ensopado como o frango que você jantou; mas como era uma chuva fina como os bijus que você merendou, eu cheguei tão enxuto como a mandioca que você ceou.

A dengosa ficou admiradíssima daquelas palavras e desapontadíssima ao compreender que o esposo tinha descoberto sua manha. E acabou com os dengues.
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MONTEIRO LOBATO (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta "Uma velha praga" foi publicada n'O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892-1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882-1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883-1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer "implorar votos". Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 12

 

José Feldman (O sonho do poeta)

Texto construído tendo por base a trova de Carolina Ramos (Santos/SP)

Sofredor desde menino 
e tendo o sonho por meta 
quis saber qual seu destino,
diz-lhe o cigano: - Poeta!

Numa pequena cidade do interior de São Paulo, onde as ruas de paralelepípedos contavam histórias de tempos passados, havia um menino chamado Odair. Desde muito jovem, ele se sentia diferente dos outros. Enquanto seus amigos se divertiam jogando futebol ou brincando na rua, ele passava horas observando as nuvens, sonhando acordado e escrevendo os sentimentos que brotavam de sua alma. Era um sonhador, um poeta em formação, mesmo que as palavras ainda não tivessem encontrado seu lugar nas páginas de um caderno.

Ele cresceu em uma família simples, onde o sofrimento e as dificuldades eram companheiros constantes. Seu pai, um trabalhador incansável, lutava para sustentar a família, enquanto sua mãe, sempre otimista, tentava encontrar a beleza nas pequenas coisas do dia a dia. Desde menino, Odair aprendeu que a vida era uma jornada repleta de desafios, mas seu coração pulsava com a esperança de que os sonhos poderiam, um dia, se transformar em realidade.

Certa manhã, enquanto caminhava pela feira da cidade, viu um grupo de pessoas reunidas em torno de um homem distinto, vestido com roupas coloridas e adornos brilhantes. Era um cigano, conhecido por suas previsões e sabedoria. A curiosidade tomou conta dele, e se aproximou para ouvir o que o homem tinha a dizer. Os murmúrios da multidão eram cheios de expectativa, e o cigano parecia ter uma aura mágica que atraía todos a ele.

Quando chegou sua vez, Odair, nervoso, pediu ao cigano que lhe dissesse qual era seu destino. O homem olhou fundo em seus olhos, como se estivesse penetrando em sua alma. Após um longo silêncio, ele sorriu e disse: “Sofredor desde menino e tendo o sonho por meta, quis saber qual seu destino. E eu lhe digo: Poeta!”

Aquelas palavras ecoaram na mente de Odair como um tambor distante. Ele não sabia ao certo o que o cigano queria dizer, mas algo dentro dele se acendeu. O sonho que sempre carregou como um fardo agora se apresentava como uma identidade. Ser poeta era mais do que escrever; era uma forma de viver, de transformar o sofrimento em arte. Sentiu que, de alguma forma, aquele encontro mudaria sua vida para sempre.

Após a feira, ele passou a dedicar-se ainda mais à sua escrita. Cada dor, cada alegria, cada momento de sua vida se tornava um verso, uma estrofe, uma canção. Ele escrevia sobre as lutas de sua família, as belezas do cotidiano, os amores perdidos e as esperanças renovadas. Com o passar do tempo, suas palavras começaram a ganhar vida própria, como se estivessem aguardando o momento certo para florescer.

Porém, a jornada do poeta não era fácil. Odair enfrentou a rejeição de editoras, a crítica de pessoas que não compreendiam sua arte e, por vezes, até a falta de inspiração. Mas, mesmo nos momentos de desânimo, ele se lembrava das palavras do cigano. O sonho de ser poeta era sua meta, e ele não poderia desistir. Assim, continuou a escrever, mesmo quando as palavras pareciam se esconder nas sombras.

Certa noite, enquanto caminhava à beira do lago que tanto amava, sentou-se à sombra de uma árvore e refletiu sobre sua vida. Ele olhou para a superfície da água, que refletia a luz da lua, e sentiu uma onda de gratidão. As dificuldades que enfrentara o tornaram mais forte, mais sensível ao mundo ao seu redor. Ele entendeu que a dor e o sofrimento são partes essenciais da vida, moldando não apenas quem somos, mas também a arte que criamos.

Com o tempo, começou a compartilhar seus poemas em pequenos saraus e encontros literários na cidade. As pessoas começaram a reconhecer seu talento, e suas palavras tocaram os corações de muitos. Aquela conexão que ele sempre buscava finalmente se concretizava. O sofrimento, que antes parecia um fardo, agora se transformava em uma ponte que unia almas.

Anos se passaram, e Odair tornou-se um poeta respeitado em sua comunidade. Com suas publicações e leituras, ele inspirou outros a encontrar suas vozes e a expressar seus sentimentos. O cigano, com suas palavras enigmáticas, havia acertado: o destino dele era ser um poeta, e ele havia cumprido essa missão com coragem e determinação.

Certa tarde, ao receber um prêmio por suas contribuições à literatura, Odair subiu ao palco e, antes de agradecer, lembrou-se do cigano. Ele compartilhou com a plateia a mensagem que sempre guiou sua jornada: “Nunca subestime o poder dos sonhos. Eles podem ser a luz que brilha nas horas mais escuras. O sofrimento é apenas um capítulo da vida, e o que importa é como escolhemos contar nossa história.”

E assim, ele se tornou um símbolo de esperança e inspiração, provando que mesmo as jornadas mais difíceis podem levar a destinos extraordinários. Que, ao longo de nossa vida, possamos lembrar que, mesmo nas sombras do sofrimento, os sonhos são a chave para a transformação e a verdadeira realização.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Viriato Padilha (Manuel do Riachão)

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente no norte, a lenda da misteriosa personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico do Piauí a Sergipe.

Em alguns lugares se acredita que Manuel do Riachão era o Diabo em pessoa. Em outros o apresentam simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe das trevas, afim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, se afirmando que sua parada em qualquer lugar era prenúncio de calamidade súbita e inexplicável. O povo guarda lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, se dispersavam os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, perdiam-se as lavouras, e até as pessoas se sentiam atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava por seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar muito tempo em algum ponto. Desde logo a indignação popular se levantava contra seus costumes singulares, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a encapar a viola e buscar outro lugar, até que, sendo ali também perseguido, recomeçasse a eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão. Os lugares que de preferência frequentava eram as tabernas, as mesas de jogo e, principalmente, os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Descrevamos a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

Numa noite de São João se folgava ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação. A criançada pagodeava em redor do fogo, assando batata e macaxeira no borralho. Na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folguedo, se conheciam muito e eram parentes próximos, afastados ou vizinhos bastante íntimos.

Assim se notava em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e moças, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.

Foi no meio dessa festa simples e boa que se lembrou um dia aparecer o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas: Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

Esse bardo errante, sempre precedido de antipatia popular, se vira obrigado a abandonar Icó, onde assombrara pela perícia em improvisar mas onde também incorrera gravemente no desagrado público por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento de uma praga de lagarta que devastou completamente os roçados de milho.

A calamidade foi tomada como consequência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente nas tabernas do Icó, pôs a preciosa viola em bandoleira e até lá foi, estrada fora, procurando novos auditórios pra exibição de seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já estava na chapada do Apodi, sôfrego pra cantar, visto como no caminho não encontrara parceiro com o qual se divertir.

Manuel do Riachão passava na estrada, quando viu a fogueira e a festa à qual já nos referimos. Sem hesitação se encaminhou ao lugar da patuscada e, se aproveitando de um momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou, com voz forte, estas duas quadras:

Senhora dona da festa
me ouça, faça favô
Não trago fome nem sede
nem me atormenta o calô
Só quero, senhora minha
dizer aos convidados
que, quando meu peito se abre
se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que estavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão que, em pé, no meio do terreiro, continuava tangendo o rasgado na viola, sem dizer palavra, como esperando que alguém aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Naquela festa não haveria alguém que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam mutuamente, ansiosos pra uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha (cabelo arrepiado) crescida, Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava
Meu peito retinia
Dava um grito no Icó
E no Cariri se ouvia
Senhora dona da casa
faça favô, mande entrá
Quem a tua porta bate
pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga de Xico Bordão, que, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, o cumprimentou e o tomando no braço, o introduziu na sala. Rapazes e moças se sentaram nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois Bordão se declarou logo vencido e se retirou da sala, envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram ao meio do aposento outro cantador, Xico Casa-Velha, que também tinha sua fumaça de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu.

Dizendo seu nome numa quadrinha, Riachão se aproveitou dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente pra confundir o adversário.

Ainda um terceiro cantador se sentou no fatídico tamborete: Era Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho. E Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, se levantou, fez uma grande mesura e, recuando até a porta, se preparava pra se despedir em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que alguém soubesse de onde entrara, um rapaz muito pálido, de longo cabelo dourado e anelado, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço se adiantou na sala, e se sentando no tamborete onde foram vencidos Bordão, Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, se fazendo acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão
Não dê já a despedida
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, se sentindo nomear em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremecimento e fixou os olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava dedilhando no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões. E ele, procurando disfarçar, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe
Temos tempo pra trová
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem sinal de emoção denunciou ao ouvir a resposta atrevida de Riachão.

Ao mesmo tempo que em todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio um pressentimento vago lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as mãos, que eram de uma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os teu!
Seu Manué do Riachão
Teu riacho não correu.

Manuel do Riachão tornou a fitar os olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento. O famoso violeiro como procurava saber quem parecia querer revelar ao auditório matuto sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer entrada em tempo e responder com visível mau-humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu
não foi por falta de inverno
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a se admirar da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam os dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras?, perguntavam, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas que acompanhavam os versos do Riachão se extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, ainda sem levantar a fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão
que triste sina é a tua
Na noite que vosmecê canta
no céu não se vê a Lua.

Riachão se torceu no tamborete, incomodado por essa segunda investida a sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a Lua não aparece
Na noite de meu descante
É, moço do machetinho
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fixos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento se flutuava como uma neblina levemente dourada que o envolvia todo, e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no machetinho, com voz que mais parecia um rosário de suspiros docemente abemolados:

Padre, Filho, Espírito Santo
É o santo sinal da cruz
Bendito seja teu nome
Senhora mãe de Jesus.

E ao mesmo tempo que cantava esta copla o moço do machetinho levantava lentamente os olhos do chão, até os fitar em cheio em Manuel do Riachão, que, sem se saber por quê, se perturbou com a luz serena, profundamente azul que deles jorrava e, em sua confusão, deu uma nota falsa no acompanhamento e não pôde encontrar logo a réplica.

O moço do machetinho tornou a baixar os grandes olhos e, antes que o outro se restabelecesse completamente, lhe despediu mais esta quadra:

Seu Manué do Riachão
um caburé suspirô
Tempere, amigo, a viola
que o bordão desafinô.

Então Manuel do Riachão já se acalmara, e assim respondeu de pronto:

Minha viola, seu moço, tropica, 
mas não focinha. 
Tem ganho em tecla função 
coroa e grau de rainha.

No entanto, apesar dessa bravata de cantador laureado, Manuel do Riachão denunciava no semblante esquálido crescente perturbação. E embora só o encarara de frente uma vez, o moço pálido bem percebia, e assim saiu com esta:

Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo
Tua viola enrouquece
tua voz esmorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu, incontinenti:

Não te glorie com isso
Cantante do ponche-pala
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala.

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho com tanta doçura que parecia que os dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou na segunda vez os olhos serenos, tornou a fitar em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão
Meu amigo e camarada
Vosmecê se avexa tanto
Eu me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a se confundir: Os dedos rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o corpo todo tremeu e, na segunda vez nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, a voz ficando aguda e firme:

Seu Manué do Riachão
Depois da flô vem a espiga
Quero que vosmecê reze
o padre-nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta a seu sentimento religioso, Manuel do Riachão se ergueu com um salto. Todo o corpo foi tomado por um tremor convulsivo. E torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola com tanta raiva, que as, fazia arrebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala
Não sou padre pra rezá
Renego os santos da igreja
Renego a pedra do artá.

Ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram e também a fogueira que crepitava no terreiro. Todos foram tomados de assombro.

No luar que entrava na janela viram que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa
Abra a porta, acenda a luz
Estamos com o Diabo em casa
Rezemos o credo em cruz.

Assim que acabou de cantar se ouviu na sala um estrondo medonho. Se abrindo logo o assoalho, de meio a meio, nele se enterrou e sumiu o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. Seu amplo ponche-pala cinzento se transformara em par de asas brancas como a neblina da manhã. E seu machete tomara a forma duma palma, que comprimiu ao seio e, sempre subindo, voou na janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos o pudessem seguir.

É assim que o povo do norte conta como Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
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ANNÍBAL DE ANDRADA MASCARENHAS (Minas Gerais, 11 de Junho de 1866 – Fortaleza, Ceará, 17 de Setembro de 1924) foi contista, jornalista, dono de jornal, poeta, autor de literatura infantil, historiador, professor, republicano e tradutor brasileiro. Apresentava-se com seu nome próprio e com alguns pseudônimos, entre eles o mais famoso é Viriato Padilha. Também utilizou outros pseudônimos em seus artigos, contos e crônicas, tais como: Aníbal Demóstenes, Tycho Brahe de Araújo Machado, Sancho Pança. Porém é notavelmente conhecido como o primeiro. Foi dono do Jornal Jacobinista chamado A Bomba, mais tarde conhecido como O Nacional.
Algumas Obras: Curso de História do Brasil, 1898; O Fabricante Moderno de Perfumes, Essencias, Sabões e Sabonetes, 1919; O orador do povo, 1935; Histórias do arco da velha, 1897; Os roceiros, 1899; Livro dos phantasmas, 1925; Histórias brasileiras - contos para crianças; Sábios ilustres, etc.

Fontes:
Viriato Padilha. Livro dos phantasmas. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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domingo, 16 de fevereiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 11

 

José Feldman (A Síndrome da Folha em Branco Madrugada Adentro)

A madrugada se estende como um tapete sujo e sem graça, daqueles que você encontra em liquidações de garagem. E eu, no meio desse tapete, revirando-me na cama como um frango assado esquecido no forno. A insônia e a falta de inspiração formam uma dupla imbatível, tipo Batman e Robin da desgraça criativa. Só que, no caso, o Coringa sou eu, rindo histericamente do meu próprio fracasso literário.

Deveria estar sonhando com mundos fantásticos, personagens cativantes e reviravoltas mirabolantes. Em vez disso, a minha mente é um deserto árido, onde o único oásis é a contagem regressiva para o amanhecer. E cada segundo parece uma eternidade, martelando nos meus ouvidos como o baterista de uma banda de heavy metal bêbado.

A inspiração, essa vadia ingrata, me abandonou faz tempo. Acho que ela fugiu para uma ilha deserta com um grupo de escritores adolescentes que escrevem fanfics eróticas sobre duendes. E eu, aqui, com um bloqueio criativo do tamanho do Monte Everest.

Já tentei de tudo para driblar a insônia. Chá de camomila? Me deixa mais irritado. Contar carneirinhos? Acabo imaginando um churrasco e fico com fome. Meditação guiada? Adormeço no meio e acordo com a voz da instrutora dizendo: "Visualize sua paz interior… Zzzzzz… Ei, acorda!".

O problema é que a minha cabeça não desliga. Fica repassando os mesmos pensamentos obsessivamente: Por que a geladeira faz esse barulho estranho? Será que eu deixei o ferro ligado? Por que a Adele ainda não me convidou para ser o tema de uma música?

E, claro, a questão central: Por que diabos eu não consigo escrever NADA?!

Já tentei escrever sobre a minha insônia. Virou um tratado filosófico existencial tão chato que nem eu aguentei reler. Tentei escrever sobre a falta de inspiração. Virou uma metalinguagem pretensiosa que faria Jean-Paul Sartre ter um ataque de soluços.

Chego a invejar os meus vizinhos. Aposto que eles estão lá, roncando como ursos em hibernação, enquanto eu luto contra a sanidade em meio à escuridão. Será que eles têm o segredo para uma vida plena e bem dormida? Ou será que eles só usam tampões de ouvido e tomam soníferos escondido?

De repente, uma luz! Tive uma ideia! Vou escrever sobre… não, espera, já escrevi sobre isso antes. Era sobre um astronauta que se apaixona por uma alienígena que trabalha em um food truck de tacos espaciais. Foi um fracasso retumbante.

Acho que preciso mudar de ambiente. Talvez o problema seja o meu quarto. Essa cama, com esse colchão macio e esses lençóis de algodão que me abraçam como uma mãe judia superprotetora. Espera aí… talvez o problema seja o edredom! Ele é tão quentinho e aconchegante que me induz ao sono, mas não ao sono profundo e revigorante, e sim a um estado de semi-coma que me deixa mais cansado do que antes.

É isso! Vou me livrar do edredom! Vou dormir no chão, enrolado em um cobertor de lã áspero e desconfortável. Assim, vou ficar acordado e alerta, pronto para capturar as ideias que ousarem cruzar o meu caminho.

(Cinco minutos depois)

Ok, o chão é duro. O cobertor pinica. E estou com frio. Mas pelo menos estou acordado! E… e… e…

(Ronco alto e prolongado)

Pelo visto, a maldição do edredom é mais forte do que eu imaginava. E a insônia, a inspiração zero e o sono incontrolável formam um triângulo amoroso perverso que me condena a uma vida de crônicas inconclusivas e madrugadas desperdiçadas.

Mas, ei, pelo menos tenho material para escrever. De novo. Se eu conseguir acordar, é claro. E se a inspiração resolver dar as caras. E se a parar de assistir vídeos de gatinhos no YouTube… Bem, talvez eu devesse me contentar em dormir e sonhar com a Adele me convidando para um show. Pelo menos no sonho, eu sou um escritor famoso e bem-sucedido. E a pizza de calabreza com borda recheada nunca acaba.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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