sábado, 24 de maio de 2025

Asas da Poesia * 26 *

 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Enquanto eu tirava espinhos
das rosas que te ofertava,
deixavas nos meus caminhos
os espinhos que eu tirava...
= = = = = = 

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

O amor é primo-irmão da dor

Se minha lágrima feliz vem sem  aviso,
o paraíso assume formas diferentes,
o sentimento que me dou... é tão preciso,
que até meu riso ri das dores insistentes. 

E nesse flash, o meu olhar mais expressivo, 
dentro do espelho do  meu doce encantamento, 
sublima o pranto, pois se choro, estou mais vivo 
e sobrevivo desse  embevecimento. 

Por ser  feliz é desse jeito que me exprimo, 
O amor é primo-irmão da dor que dele emana
e se ele engana o coração, quando sorri, 

não corto a víscera da dor, porque, se esgrimo, 
só me defendo... e até mesmo  a dor insana, 
num riso tênue, restitui o que perdi.
= = = = = = 

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Ao enfrentar dura sorte,
quem ama não se intimida;
se o viver o leva à morte,
o amor pode ser a Vida!
= = = = = = = = =  

Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

O poder do amor

Mote:
Dentre os poderes na terra
o do amor é bem mais forte,
somente o amor vence a morte
e pode acabar a guerra!
(Nilson Matos)

Glosa:
Dentre os poderes na terra
o que tem maior valor,
o que mais poder encerra
é com certeza, o do amor!

Dentre tantos sentimentos,
o do amor é bem mais forte,
pois abriga bons momentos
que indicam o nosso norte!

Pra que contarmos com a sorte,
se o amor é o nosso guia?
Somente o amor vence a morte
e nos traz muita alegria!

O amor é a chave da vida,
sua porta, não nos cerra...
Sua força é conhecida,
e pode acabar a guerra!
= = = = = = 

Quadra Popular

A cantar ganhei dinheiro,
a cantar se me acabou.
O dinheiro mal ganhado,
água deu, água levou.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Maquiavélico

Há horas em que minha alma sente e pensa,
Num tempo nobre que não mais se avista,
Encarnada num príncipe humanista,
Sob o Lírio Vermelho de Florença.

Vejo-a, então, nessa histórica presença,
Harmoniosa e sutil, sensual e egoísta,
Filha do idealismo epicurista,
Formada na moral da Renascença.

Sinto-a, assim, flor amável do Helenismo.
Virtuose — restaurando os velhos mapas
Do gênio antigo, entre exegeta e artista.

E ao mesmo tempo, por diletantismo,
Intrigando a política dos papas,
Com a perfídia elegante de um sofista...
= = = = = = 

Trova de
HAROLDO LYRA
Fortaleza/CE

Com sua vela enfunada
não lhe intimidam navios
e singra, afoita jangada,
os verdes mares bravios.
= = = = = = 

Soneto de
JOAQUIM GANHÃO
Évora/Portugal

Imaginação   

Sou somente uma imaginação?
Será que eu sou uma vida real?
Serei apenas uma breve ilusão'
Verdade ou a mentira no geral?
                 
Estarei simplesmente a sonhar?
Alguém pode a verdade garantir?
O que o sonho nos pode ficcionar,
se é tão real o nosso ver e o ouvir?
                 
Dizem que a vida é uma passagem
então o sonho, o que é realmente?
Será uma ponte pra outra margem?
                 
Será este rio apenas um afluente?
Ou esta vida é visionária miragem
onde coexistimos com o ambiente?
= = = = = = 

Trova de
FILOMENA ZOREK
Irati/PR

No amor a escolha é aposta
que independe da razão,
se a gente gosta ou não gosta
quem decide é o coração.
= = = = = = = = =  

Estância Tríplice de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Sonho de paz

As balas que ecoam, em triste lamento,
na sombra da vida há tanto a esperar,
mas a paz é um rio que flui em movimento,
e o amor é um sonho que pode reinar.

Na mesa da vida há espaço pra todos,
e na voz da razão, a força de amar,
quebrando os preconceitos, se erguendo dos lodos,
para juntos, em paz, finalmente caminhar.

Que as esperanças sejam luzes brilhantes,
que os olhares se cruzem sem mais se temer,
pois um mundo unido são sonhos constantes,
e a paz é o futuro que queremos viver.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Casa dos poetas

Visito sempre a casa dos poetas,
Pois lá me sinto bem a qualquer hora;
É onde eu sempre encontro as mais seletas
Poesias de levar tristeza embora...

Na sala principal estão completas
As obras de imortais e os de agora...
Há versos mil de amor, canções diletas
A um coração que de saudade chora...

Um corredor de trovas me conduz
Às redondilhas numa sala enorme,
Com muito belas odes e poemetos...

A tudo leio e tudo me traz luz
Para eu fugir das mágoas, bem conforme
Às lições que eu aprendo nos sonetos!
= = = = = = 

Trova Humorística de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Só por descuido é que a Helena
acabou por se casar…
Pois, pensou que Cibalena
fosse a pílula… Que azar!
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Invernáculo

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Morreste silencioso…
De ninguém te despediste.
Do mundo nada quiseste.
Ao mundo nada pediste.
= = = = = = 

Soneto de 
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Couto/RJ

A  imagem  do  tempo
 
 O olhar é opaco, a face contraída,
há flacidez nas pálpebras cansadas,
a boca é seca, a tez esmaecida,
encimada por mechas desgrenhadas...
 
Todo o peso das culpas desta vida
repousa sobre as costas encurvadas.
O farto ventre, a carga mais sentida,
castiga as frágeis pernas arqueadas...
 
De confidentes restam a bengala
e uma imagem sagrada, lá na sala:
– Fiéis acompanhantes da velhice!
 
Velhice de incertezas e mistério,
que o tempo vai legando a seu critério...
e a mim agora impôs...sem que eu pedisse!
= = = = = = 

Trova de
LUÍZA NELMA FILLUS
Irati/PR

Vida saudável precisa 
ser a meta do universo. 
Todo povo preconiza:
- Abaixo o mundo perverso! 
= = = = = = = = =  

Poema de 
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

Porque dizes não quando pensas sim?
É timidez, medo do que eu possa dizer?
Sabes que os teus olhos se focam em mim
Lês tudo o que eu não consigo escrever

Nas entrelinhas dos meus versos
Existe um segredo que se esvai no nevoeiro
Todas as palavras inversas se cruzam
Todos os medos ficam pendurados no bengaleiro

Estou protegida quando chove
Quando ninguém me vê no nevoeiro
Não sou D. Sebastião
Sou mais guerreira!
Não desaparecia do nada para a vida inteira!

Quero ser tudo o que sonho
Sim! O impossível vive em mim!
Perco-me no horizonte e amo o infinito
Sei que o amor é e será assim…
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


Perdeu no xadrez também...
e, sem dinheiro, se abate
ouvindo a ordem de alguém:
— Se não der um cheque... mate!
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Minha escola

Eu não sou o poeta dos salões
de ondeante, basta e negra cabeleira.
Não me hás de ver, nos olhos, alusões
de vigílias, de dor e de canseiras.

Não trago o pensamento em convulsões,
de candentes imagens, a fogueira.
Não sou o gênio que talvez supões
e nem levo acadêmica bandeira.

Distribuo os meus versos quais moedas
que pouco a pouco na tua alma hospedas,
raras, como as esmolas de quem passa.

Vou porém me sentir feliz um dia
se acaso alguém vier render-me a graça
de o ter feito ricaço de poesia.
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Benditas sejam as vidas 
que, alegres, serenas, santas, 
vivem a vida envolvidas 
em levar vida a outras tantas!
= = = = = = 

Poema de
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

O palco da vida

Peguei no meu viver, pus nos dois pratos…
Da balança que pesa a minha vida.
Ficou a balouçar, enlouquecida,
Perante a imensidão de tantos fatos!

Desesperei. Quis ver quais os relatos,
Que a deixaram assim, enfurecida!
Teria ela ficado ressentida…
P’lo turbilhão perverso, dos meus atos?

Eu fui mais um ator que desfilou!
Que fez o seu papel, representou!
Que foi palhaço. Herói. E foi guerreiro!

Se errei alguma vez no meu percurso.
Por certo não havia outro recurso,
Terão de condenar, o mundo inteiro!
= = = = = = 

Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Na vida, a luta não cessa
em prol do sonho e do pão
e a liberdade começa
onde acaba a servidão!
= = = = = = 

Hino de 
Terra Roxa/PR

Princesa d'oeste, cheia de encantos,
Rodeada por imensos cafezais
E, onde outrora tudo era selva.
A soja rivaliza com trigais.

Salve salve, Terra Roxa
Princesa de encantos mil
Por teu progresso sempre lutaremos
Queremos ver-te brilhar no Brasil.

Teus fundadores podem orgulhar-se
De seu trabalho que não foi em vão
Os teus jardins e praças tão floridos
A todos, disto, testemunhos dão.

Salve salve, Terra Roxa
Princesa de encantos mil
Por teu progresso sempre lutaremos
Queremos ver-te brilhar no Brasil.

Em ti se unem confissões e raças
Dos que chegaram para trabalhar
Por teu progresso, expansão e glória.
Com os teus filhos, vão se empenhar.

Salve salve, Terra Roxa
Princesa de encantos mil
Por teu progresso sempre lutaremos
Queremos ver-te brilhar no Brasil.

Avante Terra Roxa do Oeste
Prossiga em ritmo forte varonil.
Com fé em Deus alcançará teu alvo
E brilharás, honrando o Brasil.

Salve salve, Terra Roxa
Princesa de encantos mil
Por teu progresso sempre lutaremos
Queremos ver-te brilhar no Brasil.
= = = = = = 

Trova de 
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

No tempestuoso caminho
para ficar ao teu lado,
fui em busca de carinho,
vim na saudade enlaçado…
= = = = = = 

Poema de 
DARIO VELLOZO
Curitiba/PR, 1869-1937

Flor de cacto

Vens do Azul, da Quimera, alma de olhos sidéreos,
Que a minha alma de asceta aos paramos eleva
E à minha viuvez de mágoas e mistérios
Abre as aras do Além para o ofício da treva.

E eu bendigo, e sigo o teu corpo de Sombra,
Peito de névoa e luz; névoa das louras tranças,
Luz do olhar, desse olhar, deliciosa alfombra,
Calvário e serial de minhas esperanças.

Ilusões são punhais. Cada ilusão que aflora
A penumbra de um sonho, alma de olhos sidéreos,
Leva o espectro da cruz às flâmulas da Aurora
Cruz do Além, cruz feral, de mágoas e mistérios.

A carícia cruel de teu seio fremente
Abre as asas do Além pra o ofício da Treva,
E eu te digo. E a minha alma, ajoelhada, sente
Que a tua alma de morta ao passado nos leva...
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

No lar que me fez honrado,
ante os conceitos de espaço,
o respeito era sagrado,
mesmo que o pão fosse escasso!
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O homem e a serpente

Um moço encontrou
Dormente
Serpente
Que o gelo enervou.

À casa a levou,
E logo
Do fogo
Mui perto a chegou.

A vil se animou,
Que em breve
Da neve
O efeito acabou.

A cauda anelou;
Erguendo
E torcendo
O colo, silvou.

A quem a salvou
Do corte
Da morte
Matar intentou.

O moço tomou
Pesado
Machado,
E ao meio a cortou.

A ingrata acabou
Partida,
Com a vida
Seu crime expiou.

O ter caridade
É da humanidade
Um sacro dever:
Porém não a ter
Com feras ingratas
É de almas sensatas.
= = = = = = = = =  

Poema de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Soneto Melancólico

De nada adianta a lua silenciosa
Iluminando o mar tão graciosa.
De que adianta o céu lindo, radiante,
Cintilando estrelinhas brilhantes.

De que adianta tamanha alegria
Se em meu coração só há nostalgia.
De que adianta pássaros cantando
Sem nós dois felizes, nos amando.

Não adianta viver intensamente
Se o agora já não faz mais sentido.
Perdi o rumo do tempo vivido.

De que adianta o mundo girar, girar,
Se você não está no meu universo.
Sem você, o mundo se fez ao inverso.
= = = = = = = = =  

Lima Barreto (O caso do mendigo)

 
Os jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso pela polícia, possuía em seu poder valores que montavam à respeitável quantia de seis contos e pouco.

Ouvi mesmo comentários cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X, que é o homem mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que não dará mais esmolas. E não foi só ele a indignar-se. Em casa de família de minhas relações, a dona da casa, senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignação, que propunha se confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.

Não sei bem o que fez a polícia com o cego. Creio que fez o que o Código e as leis mandam; e, como sei pouco das leis e dos códigos, não, estou certo se ela praticou o alvitre lembrado pela dona da casa de que já falei.

O negócio fez-me pensar e, por pensar, é que cheguei a conclusões diametralmente opostas à opinião geral.

O mendigo não merece censuras, não deve ser perseguido, porque tem todas as justificativas a seu favor. Não há razão para indignação, nem tampouco para perseguição legal ao pobre homem.

Tem ele, em face dos costumes, direito ou não a esmolar? Vejam bem que eu não falo de leis; falo dos costumes. Não há quem não diga: sim. Embora a esmola tenha inimigos, e dos mais conspícuos, entre os quais, creio, está M. Bergeret, ela ainda continua a ser o único meio de manifestação da nossa bondade em face da miséria dos outros. Os séculos a consagraram; e, penso, dada a nossa defeituosa organização social, ela tem grandes justificativas. Mas não é bem disso que eu quero falar. A minha questão é que, em face dos costumes, o homem tinha direito de esmolar. Isto está fora de dúvida.

Naturalmente ele já o fazia há muito tempo, e aquela respeitável quantia de seis contos talvez represente economias de dez ou vinte anos.

Há, pois, ainda esta condição a entender: o tempo em que aquele dinheiro foi junto. Se foi assim num prazo longo, suponhamos dez anos, a coisa é assim de assustar? Não é. Vamos adiante.

Quem seria esse cego antes de ser mendigo? Certamente um operário, um homem humilde, vivendo de pequenos vencimentos, tendo às vezes falta de trabalho; portanto, pelos seus hábitos anteriores de vida e mesmo pelos meios de que se servia para ganhá-la, estava habituado a economizar. É fácil de ver por quê. Os operários nem sempre têm serviço constante. A não ser os de grandes fábricas do Estado ou de particulares, os outros contam que, mais dias, menos dias, estarão sem trabalhar, portanto sem dinheiro; daí lhes vem a necessidade de economizar, para atender a essas épocas de crise.

Devia ser assim o tal cego, antes de o ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro dia, com a falta de prática, o rendimento não foi grande; mas foi o suficiente para pagar um caldo no primeiro frege que encontrou, e uma esteira na mais sórdida das hospedarias da rua da Misericórdia. Esse primeiro dia teve outros iguais e seguidos; e o homem se habituou a comer com duzentos réis e a dormir com quatrocentos; temos, pois, o orçamento do mendigo feito: seiscentos réis (casa e comida) e, talvez, cem réis de café; são, portanto, setecentos réis por dia.

Roupa, certamente, não comprava: davam-lhe. É bem de crer que assim fosse, porque bem sabemos de que maneira pródiga nós nos desfazemos dos velhos ternos.

Está, portanto, o mendigo fixado na despesa de setecentos réis por dia. Nem mais, nem menos; é o que ele gastava. Certamente não fumava e muito menos bebia, porque as exigências do ofício haviam de afastá-lo da "caninha". Quem dá esmola a um pobre cheirando a cachaça? Ninguém.

Habituado a esse orçamento, o homenzinho foi se aperfeiçoando no ofício. Aprendeu a pedir mais dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um cachorrinho, e o seu sucesso na profissão veio.

Já de há muito que ganhava mais do que precisava. Os níqueis caíam, e o que ele havia de fazer deles? Dar aos outros? Se ele era pobre, como podia fazer? Pôr fora? Não; dinheiro não se põe fora. Não pedir mais? Aí interveio uma outra consideração.

Estando habituado à previdência e à economia, o mendigo pensou lá consigo: há dias que vem muito; há dias que vem pouco, sendo assim, vou pedindo sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os dias de nada. Guardou. Mas a quantia aumentava. No começo eram só vinte mil-réis; mas, em seguida foram quarenta, cinquenta, cem. E isso em notas, frágeis papéis, capazes de se deteriorarem, de perderem o valor ao sabor de uma ordem administrativa, de que talvez não tivesse notícia, pois, era cego e não lia, portanto. Que fazer, em tal emergência, daquelas notas? Trocar em ouro? Pesava, e o tilintar especial dos soberanos, talvez atraísse malfeitores, ladrões. Só havia um caminho: trancafiar o dinheiro no banco. Foi, o que ele fez. Estão aí um cego de juízo e um mendigo rico.

Feito o primeiro depósito, seguiram-se a este outros; e, aos poucos, como hábito é segunda natureza, ele foi encarando a mendicidade não mais como um humilhante imposto voluntário, taxado pelos miseráveis aos ricos e remediados; mas como uma profissão lucrativa, lícita e nada vergonhosa.

Continuou com o seu cãozinho, com a sua voz aflautada, com o seu ar dorido a pedir pelas avenidas, pelas ruas comerciais, pelas casas de famílias, um níquel para um pobre cego. Já não era mais pobre; o hábito e os preceitos da profissão não lhe permitiam que pedisse uma esmola para um cego rico.

O processo por que ele chegou a ajuntar a modesta fortuna de que falam os jornais, é tão natural, é tão simples, que, julgo eu, não há razão alguma para essa indignação das almas generosas.

Se ainda continuasse a ser operário, nós ficaríamos indignados se ele tivesse juntado o mesmo pecúlio? Não. Por que então ficamos agora?

É porque ele é mendigo, dirão. Mas é um engano. Ninguém mais que um mendigo tem necessidade de previdência. A esmola não é certa; está na dependência da generosidade dos homens, do seu estado moral psicológico. Há uns que só dão esmolas quando estão tristes, há outros que só dão quando estão alegres e assim por diante. Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte tão incerta, deve ou não ser previdente e econômico?

Não julguem que faço apologia da mendicidade. Não só não faço como não a detrato.

Há ocasiões na vida que a gente pouco tem a escolher; às vezes mesmo nada tem a escolher, pois há um único caminho. É o caso do cego. Que é que ele havia de fazer? Guardar. Mendigar. E, desde que da sua mendicidade veio-lhe mais do que ele precisava, que devia o homem fazer? Positivamente, ele procedeu bem, perfeitamente de acordo com os preceitos sociais, com as regras da moralidade mais comezinha e atendeu às sentenças do Bom homem Ricardo, do falecido Benjamin Franklin.

As pessoas que se indignaram com o estado próspero da fortuna do cego, penso que não refletiram bem, mas, se o fizerem, hão de ver que o homem merecia figurar no Poder da vontade, do conhecidíssimo Smiles.

De resto, ele era espanhol, estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um acidente qualquer tirou-lhe a vista, mas lhe ficou a obrigação de enriquecer. Era o que estava fazendo, quando a polícia foi perturbá-lo. Sinto muito; e são meus desejos que ele seja absolvido do delito que cometeu, volte à sua gloriosa Espanha, compre uma casa de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha generosa; e, se algum dia, no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de Janeiro, deste Brasil imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e leia o ensinamento que o governo da República dá... aos outros, através dos seus vinténs: “A economia é a base da prosperidade".
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO nasceu em 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Era negro e de família pobre. Sua mãe era professora primária e morreu de tuberculose quando Lima Barreto tinha 6 anos. Seu pai era tipógrafo, porém sofria de doença mental. Mas tinha um padrinho com posses - o Visconde de Ouro Preto (1836-1912) -, o que permitiu que o escritor estudasse no Colégio Pedro II. Depois, ingressou na Escola Politécnica, mas não concluiu o curso de Engenharia, pois precisava trabalhar. Em 1903, fez concurso e foi aprovado para atuar junto  à Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Assim, concomitantemente ao trabalho como funcionário público, escrevia os seus textos literários.  Em 1905, trabalhou como jornalista no Correio da Manhã. Lançou, em 1907, a revista Floreal. Em 1909, o seu primeiro romance foi editado em Portugal: Recordações do escrivão Isaías Caminha. O romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado, pela primeira vez, em 1911, no Jornal do Comércio, em forma de folhetim. Em 1914, Lima Barreto foi internado em um hospital psiquiátrico pela primeira vez. Se candidatou três vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, recebeu dela, apenas uma menção honrosa em 1921. Morreu em 1922.

Fontes:
Lima Barreto. Bagatelas. Publicado originalmente em 1911. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (A tempestade e a jornada)

T
exto baseado na trova de Jerson Lima de Brito (Porto Velho/RO)

Não tema sua jornada
se o céu estiver cinzento
que às vezes a trovoada
faz parte do ensinamento!

Na pequena cidade de Valverde, onde as colinas se encontravam com o céu em um abraço eterno, a vida seguia seu curso tranquila, mas repleta de desafios. Os moradores daquela cidade eram conhecidos por sua resiliência e força de espírito. No entanto, havia um jovem chamado Demétrio que frequentemente se deixava abater pelas nuvens cinzentas que pareciam pairar sobre sua vida.

Ele era um sonhador. Desde criança, alimentava grandes aspirações: queria ser escritor. Suas histórias eram recheadas de aventuras e heróis, mas à medida que crescia, as incertezas começaram a envolvê-lo. Ele se via diante de um dilema: como transformar seus sonhos em realidade em meio às dificuldades do dia a dia? A pressão para ter um emprego estável, a expectativa da família e o medo do fracasso o deixavam angustiado.

Em uma tarde particularmente nublada, decidiu que precisava de um tempo para pensar. Pegou seu caderno e saiu em direção ao parque da cidade, um lugar que sempre o inspirava. À medida que caminhava, o céu escurecia e um vento forte começou a soprar. Ele hesitou, mas a necessidade de encontrar respostas o levou adiante. Ao chegar ao parque sentou-se em um banco sob uma árvore frondosa e começou a escrever.

Enquanto suas ideias fluíam, ele percebeu que as nuvens no céu estavam se acumulando, e logo a chuva começou a cair. No início, as gotas eram suaves, quase como um sussurro. Mas, em poucos minutos, a tempestade se intensificou e o que antes era uma leve garoa transformou-se em uma verdadeira tempestade. Demétrio se viu preso, sem abrigo, e um sentimento de desespero começou a tomar conta dele.

No entanto, em meio ao caos, algo inesperado aconteceu. Ele observou as gotas de chuva batendo nas folhas, criando uma melodia única, um ritmo que parecia dançar com a natureza. As árvores, que antes pareciam temerosas, agora se erguiam majestosas, como se estivessem celebrando a tempestade. Ele sentiu uma onda de inspiração e em vez de se deixar levar pelo medo, ele decidiu se entregar àquele momento.

Sob a árvore que o protegia da chuva, com o caderno em mãos, começou a escrever freneticamente. As palavras fluíam como a chuva, e ele percebeu que a tempestade não era um obstáculo, mas uma oportunidade. A trovoada trazia consigo um ensinamento profundo sobre a vida: os desafios e as dificuldades são partes inevitáveis da jornada. Cada gota de chuva, cada relâmpago, representava uma lição, uma chance de crescimento.

Quando a tempestade finalmente começou a desvanecer, sentiu-se renovado. Ele olhou para o céu, que agora começava a clarear, e sorriu. As nuvens cinzentas não eram apenas um símbolo de desespero, mas também de transformação. Ele percebeu que, assim como a natureza, sua vida também passaria por ciclos, com momentos de sol e momentos de chuva. E que não deveria temer esses momentos difíceis, pois eram eles que o moldavam, que lhe ensinavam a ser forte e resiliente.

Ao voltar para casa, Demétrio sentiu-se leve. Ele sabia que o caminho à sua frente ainda seria repleto de desafios, mas estava determinado a enfrentá-los de cabeça erguida. A tempestade daquela tarde se tornara um marco em sua jornada, um lembrete de que o crescimento muitas vezes vem das experiências mais difíceis.

A vida, assim como o tempo, é cheia de surpresas. Não devemos temer a jornada, mesmo quando o céu estiver cinzento, pois às vezes a tempestade faz parte do ensinamento. E são essas tempestades que nos preparam para os dias ensolarados, nos ensinando a valorizar cada raio de sol que brilha em nossas vidas.
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JERSON LIMA DE BRITO, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Gangorra do tempo. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
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Beatrix Potter (O alfaiate de Gloucester)


Na época das espadas, perucas e casacos de aba larga com lapelas floridas – quando os cavalheiros usavam babados e coletes de paduasoy (tecido de seda com fio) e tafetá bordados a ouro – vivia um alfaiate em Gloucester. 

Ele se sentava na vitrine de uma pequena loja na Westgate Street, de pernas cruzadas sobre uma mesa, desde a manhã até o anoitecer.

Durante todo o dia, enquanto durava a luz, ele costurava e cortava, remendando seu cetim, pompadour e stringlute (cordão de alaúde); as coisas tinham nomes estranhos e eram muito caras na época do alfaiate de Gloucester.

Mas, embora costurasse tecidos de luxo para seus vizinhos, ele próprio era muito, muito pobre – um velhinho de óculos, com o rosto franzido, velhos dedos tortos e um terno puído.

Ele cortava os casacos sem desperdício, de acordo com seu pano bordado; eram pontas e pedaços muito pequenos que estavam espalhados sobre a mesa – “Tão estreitos que não servem para nada – exceto coletes para ratos”, disse o alfaiate.

Em um dia muito frio perto da época do Natal, o alfaiate começou a fazer um casaco – um casaco de seda cor de cereja bordado com amores-perfeitos e rosas, e um colete de cetim cor de creme – enfeitado com gaze e chenile verde penteado – para o prefeito de Gloucester.

O alfaiate trabalhava e trabalhava, e falava sozinho. Ele mediu a seda, virou-a várias vezes e aparou-a com sua tesoura; a mesa estava toda coberta de pedaços cor de cereja.

“Sem tecido para nada, e com corte na cruz; não é tecido suficiente; tippets (lenço para os ombros) para ratos e fitas para ralos! Para ratos!” disse o Alfaiate de Gloucester.

Quando os flocos de neve caíram contra as pequenas vidraças de chumbo e bloquearam a luz, o alfaiate havia terminado seu trabalho do dia; toda a seda e cetim estavam recortados sobre a mesa.

Havia doze peças para o casaco e quatro peças para o colete; e havia abas de bolso e punhos e botões, tudo em ordem. Para o forro do casaco havia um fino tafetá amarelo; e para as casas dos botões do colete, havia torção cor de cereja. E tudo estava pronto para costurar pela manhã, tudo medido e com tecido o suficiente – exceto que faltava apenas um único novelo de seda trançada cor de cereja.

O alfaiate saía de sua loja ao anoitecer, pois não dormia ali à noite; ele fechou a janela e trancou a porta, e tirou a chave. Ninguém morava lá à noite, exceto ratinhos marrons, e eles entravam e saíam sem nenhuma chave. Pois por trás dos lambris de madeira de todas as casas antigas de Gloucester, existem pequenas escadas de ratos e alçapões secretos; e os ratos correm de casa em casa por aquelas longas passagens estreitas; eles podem correr por toda a cidade sem ir para as ruas.

Mas o alfaiate saiu de sua loja e voltou para casa na neve. Ele morava bem perto de College Court, perto da entrada de College Green; e embora não fosse uma casa grande, o alfaiate era tão pobre que alugava apenas a cozinha. Ele morava sozinho com seu gato; chamava-se Simpkin.

Agora, durante todo o dia, enquanto o alfaiate estava trabalhando, Simpkin cuidava da casa sozinho; e ele também gostava dos ratos, embora não lhes desse cetim para casacos!

“Miau?” disse o gato quando o alfaiate abriu a porta. “Miau?”

O alfaiate respondeu: “Simpkin, faremos nossa fortuna, mas estou esgotado. Pegue esta moeda (que são nossos últimos quatro pence) e Simpkin, pegue um pipkin de porcelana; compre um pence de pão, um pence de leite e um pence de salsichas. E oh, Simpkin, com o último centavo de nossos quatro pence, compre-me um pence de seda cor de cereja. Mas não perca o último centavo dos quatro pence, Simpkin, ou eu estarei perdido e gasto como um fio de papel, pois NÃO TENHO MAIS PENCES.”

Então Simpkin disse novamente: “Miaw?” e pegou o grão e o pipkin e saiu para a escuridão.

O alfaiate estava muito cansado e começando a passar mal. Sentou-se perto da lareira e falou consigo mesmo sobre aquele casaco maravilhoso.

“Farei minha fortuna – para não ser tendencioso – o prefeito de Gloucester vai se casar no dia de Natal pela manhã, e ele encomendou um casaco e um colete bordado – para ser forrado com tafetá amarelo – e o tafetá é suficiente; não sobra mais em snippets do que servirá para fazer tippets para ratos”

Então o alfaiate começou; pois de repente, interrompendo-o, da cômoda do outro lado da cozinha vieram vários pequenos ruídos.

Tip tap, tip tap, Tip tap tip!

“Agora, o que pode ser isso?” disse o alfaiate de Gloucester, pulando da cadeira. A cômoda estava coberta de louças e pratos de salgueiro e xícaras de chá e canecas.

O alfaiate atravessou a cozinha e ficou imóvel ao lado da cômoda, ouvindo e espiando através dos óculos. Novamente debaixo de uma xícara de chá, vieram aqueles barulhinhos engraçados.

Tip tap, tip tap, Tip tap tip!

“Isso é muito peculiar”, disse o alfaiate de Gloucester; e levantou a xícara de chá que estava de cabeça para baixo.

De lá saiu uma ratinha viva e fez uma reverência ao alfaiate! Então ela pulou para fora da cômoda, e sob o lambril.

O alfaiate sentou-se novamente perto do fogo, aquecendo as pobres mãos frias e murmurando para si mesmo:

“O colete é cortado em cetim cor de pêssego – ponto de pandeiro e botões de rosa em linda seda de fio dental. Será que fui sensato em confiar meus últimos quatro pence a Simpkin? Vinte casas de botão de torção cor de cereja!”

Mas de repente, da cômoda, vieram outros barulhinhos:

Tip tap, tip tap, tip tap tip!

“Isso é extraordinário!” disse o Alfaiate de Gloucester, e virou outra xícara de chá, que estava de cabeça para baixo.

Saiu um ratinho cavalheiro e fez uma reverência ao alfaiate!

E então de toda a cômoda veio um coro de pequenas batidas, todas soando juntas e respondendo umas às outras, como besouros de relógio em uma velha veneziana carcomida por vermes…

Tip tap, tip tap, tip tap tip!

E debaixo de xícaras de chá e de tigelas e bacias, saíram mais e mais ratinhos que pularam da cômoda e para debaixo do lambril.

O alfaiate sentou-se perto do fogo, lamentando: “Vinte e uma casas de botão de seda cor de cereja! Para terminar ao meio-dia de sábado: e esta é a noite de terça-feira. Foi certo soltar aqueles ratos, sem dúvida propriedade de Simpkin? Alack, estou perdido, pois não tenho mais reviravoltas!”

Os ratinhos saíram novamente e ouviram o alfaiate; eles notaram o padrão daquele casaco maravilhoso. Eles sussurraram um para o outro sobre o forro de tafetá e sobre os pequenos ratos.

E então, de repente, todos eles correram juntos pela passagem atrás do lambril, guinchando e chamando uns aos outros, enquanto corriam de casa em casa; e nenhum rato havia restado na cozinha do alfaiate quando Simpkin voltou com o pote de leite!

Simpkin abriu a porta e saltou para dentro, com um furioso “Grr-miaw!” como um gato que está irritado: porque ele odiava a neve, e havia neve em suas orelhas e neve em sua gola na parte de trás do pescoço. Ele colocou o pão e as salsichas sobre a cômoda e cheirou.

“Simpkin”, disse o alfaiate, “onde está o meu novelo?”

Mas Simpkin colocou o pote de leite sobre a cômoda e olhou desconfiado para as xícaras de chá. Ele queria seu jantar de ratinhos gordos!

“Simpkin”, disse o alfaiate, “onde está meu NOVELO?”

Mas Simpkin escondeu um pequeno embrulho no bule de chá, cuspiu e rosnou para o alfaiate; e se Simpkin pudesse falar, ele teria perguntado: “Onde está meu RATO?”

“Alack, estou perdido!” disse o Alfaiate de Gloucester, e foi tristemente para a cama.

Durante toda aquela noite, Simpkin caçou e vasculhou a cozinha, espiando nos armários e embaixo do lambril, e no bule onde havia escondido aquele twist; mas ainda assim ele nunca encontrou um rato!

Sempre que o alfaiate murmurava e falava durante o sono, Simpkin dizia “Miaw-ger-rwss-ch!” e fazia barulhos estranhos e horríveis, como os gatos fazem à noite.

Pois o pobre velho alfaiate estava muito doente com febre, se revirando em sua cama de dossel; e ainda em seus sonhos ele murmurava: “Chega de novelo! Chega de novelo!”

Todo aquele dia ele estava doente, e no dia seguinte, e no seguinte; e o que seria do casaco cor de cereja? Na alfaiataria da Westgate Street, a seda e o cetim bordados estavam recortados sobre a mesa — vinte e uma casas de botão — e quem viria costurá-las, quando a janela estava trancada e a porta também bem trancada?

Mas isso não atrapalhou os ratinhos marrons; eles entram e saem sem nenhuma chave por todas as casas antigas de Gloucester!

Do lado de fora, o pessoal do mercado caminhava pela neve para comprar seus gansos e perus e assar suas tortas de Natal; mas não haveria jantar de Natal para Simpkin e o pobre alfaiate de Gloucester.

O alfaiate ficou doente por três dias e três noites; e então era véspera de Natal, e muito tarde da noite. A lua subiu sobre os telhados e chaminés e olhou para baixo sobre o portão de College Court. Não havia luz nas janelas, nem barulho nas casas; toda a cidade de Gloucester dormia profundamente sob a neve.

E Simpkin ainda queria seus camundongos e miava ao lado da cama de dossel.

Mas é na velha história que todos os animais podem falar, na noite entre a véspera de Natal e o dia de Natal pela manhã (embora haja muito poucas pessoas que possam ouvi-los ou saber o que eles dizem).

Quando o relógio da catedral bateu meia-noite, houve uma resposta – como um eco dos carrilhões – e Simpkin ouviu, saiu pela porta do alfaiate e vagou pela neve.

De todos os telhados e velhas casas de madeira de Gloucester vinham mil vozes alegres cantando as velhas cantigas de Natal — todas as velhas canções de que já ouvi falar, e algumas que não conheço, como os sinos de Whittington.

Primeiro e mais alto, os galos gritaram: “Senhora, levante-se e asse suas tortas!”

“Oh, Dilly, Dilly, Dilly!” suspirou Simpkin.

E agora em um sótão havia luzes e sons de dança, e gatos vinham do outro lado do caminho.

“Ei, idiota, idiota, o gato e o violino! Todos os gatos em Gloucester – exceto eu”, disse Simpkin.

Sob o beiral de madeira, os estorninhos e os pardais cantavam sobre as tortas de Natal; as gralhas acordaram na torre da Catedral; e, embora fosse meia-noite, os galos e os tordos cantavam; o ar estava cheio de pequenas melodias de pássaros.

Mas tudo isso era bastante irritante para o pobre e faminto Simpkin!

Particularmente, ele estava irritado com algumas pequenas vozes estridentes por trás de uma treliça de madeira. Achou que eram morcegos, porque sempre têm vozes bem baixinhas — principalmente na geada negra, quando falam durante o sono, como o Alfaiate de Gloucester.

Eles disseram algo misterioso que soou como—

“Buz, disse a mosca azul, hum, disse a abelha,
Buz e hum eles choram, e nós também!”

E Simpkin saiu sacudindo as orelhas como se tivesse uma abelha em seu chapéu.

Da alfaiataria em Westgate veio um brilho de luz; e quando Simpkin se aproximou para espiar pela janela, ela estava cheia de velas. Houve um corte de tesoura e um corte de linha; e pequenas vozes de camundongos cantavam alto e alegremente—

“Vinte e quatro alfaiates
Foram pegar um caracol,
Os melhores homens entre eles
Durst não toque em sua cauda,
Ela colocou seus chifres
Como uma pequena vaca kyloe,
Corram, alfaiates, corram! 
ou ela pegará todos vocês agora mesmo!”

Então, sem pausa, as vozes dos ratinhos continuaram:

“Peneire a aveia da minha senhora,
Moa a farinha de minha senhora,
Coloque em uma castanha,
Deixe repousar por uma hora…”

“Miau! Miau!” interrompeu Simpkin, e ele arranhou a porta. Mas a chave estava debaixo do travesseiro do alfaiate, ele não conseguiu entrar.

Os ratinhos apenas riram e tentaram outra música:

“Três ratinhos sentaram-se para fiar,
A gatinha passou e ela espiou.
O que vocês estão pensando, meus belos homenzinhos?
Fazendo casacos para cavalheiros.
Devo entrar e cortar seus fios?
Oh, não, senhorita Gatinha, 
você morderia nossas cabeças!”

“Miau! Miau!” exclamou Simpkin. 

“Ei, idiota!” responderam os ratinhos.

“Ei, pequenino, bichinho de estimação!
Os mercadores de Londres usam roupão;
Seda na gola e ouro na bainha,
Marcham tão alegremente os da lojinha!”

Eles clicaram em seus dedais para marcar o tempo, mas nenhuma das canções agradou a Simpkin; ele fungou e miou na porta da loja.

“E então eu comprei
Um pipin e um popkin,
Um Slipkin e um Slopkin,
Tudo por um centavo

e sobre a cômoda da cozinha!” acrescentaram os ratinhos rudes.

“Miau! Raspa! Raspa!” Simpkin deitado no parapeito da janela; enquanto os ratinhos lá dentro pularam de pé e todos começaram a gritar ao mesmo tempo em pequenas vozes gorjeiantes: “Chega de tecer! Chega de tecer!” E eles fecharam as venezianas das janelas e isolaram Simpkin.

Mas ainda através das fendas nas persianas ele podia ouvir o clique de dedais e pequenas vozes de camundongos cantando…

“Chega de tecer! Chega de tecer!”

Simpkin saiu da loja e foi para casa, refletindo em sua mente. Encontrou o pobre velho alfaiate sem febre, dormindo tranquilamente.

Então Simpkin ficou na ponta dos pés e tirou um pequeno embrulho de seda do bule e olhou para ele ao luar; e sentiu-se bastante envergonhado de sua maldade em comparação com aqueles bons ratinhos!

Quando o alfaiate acordou pela manhã, a primeira coisa que viu sobre a colcha de retalhos foi um novelo de seda torcida cor de cereja, e ao lado de sua cama estava o arrependido Simpkin!

“Alack, estou exausto”, disse o alfaiate de Gloucester, “mas tenho meu novelo!”

O sol brilhava na neve quando o alfaiate se levantou e se vestiu e saiu para a rua com Simpkin correndo à sua frente.

Os estorninhos assobiavam nas chaminés e os tordos e outros pássaros cantavam — mas cantavam seus próprios barulhinhos, não as palavras que haviam cantado durante a noite.

“Alack”, disse o alfaiate, “eu tenho meu novelo; mas não tenho mais energia – nem tempo – do que me servirá para fazer uma única casa de botão; pois este é o dia de Natal pela manhã! O prefeito de Gloucester deve se casar ao meio-dia – e onde está seu casaco cor de cereja?”

Ele destrancou a porta da pequena loja na Westgate Street e Simpkin entrou correndo, como um gato que espera alguma coisa.

Mas não havia ninguém lá! Nem mesmo um ratinho marrom!

As tábuas foram varridas; as pequenas pontas de linha e os pequenos pedaços de seda foram todos arrumados e retirados do chão.

Mas sobre a mesa – Oh que alegria! O alfaiate deu um grito – lá, onde ele havia deixado cortes simples de seda – lá estava o mais belo casaco e colete de cetim bordado que já foi usado por um prefeito de Gloucester.

Havia rosas e amores-perfeitos nas orlas do casaco; e o colete foi trabalhado com papoulas e flores de centáurea.

Tudo estava pronto, exceto uma única casa de botão cor de cereja, e onde faltava essa casa de botão havia um pedaço de papel pregado com estas palavras – em letras miúdas:

ACABOU O NOVELO

E a partir de então começou a sorte do Alfaiate de Gloucester; ele ficou bastante robusto e muito rico.


Ele fazia os mais maravilhosos coletes para todos os ricos mercadores de Gloucester e para todos os nobres cavalheiros da região.

Nunca foram vistos tantos babados, ou punhos e lapelas tão bordados! Mas suas casas de botão foram o maior triunfo de tudo.

Os pontos daquelas casas de botão eram tão perfeitos – tão perfeitos – que me pergunto como puderam ser costurados por um velho de óculos, com dedos velhos tortos e dedal de alfaiate.

Os pontos daquelas casas de botão eram tão pequenos — tão pequenos — que pareciam feitos por ratinhos!
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HELEN BEATRIX POTTER (Londres, 1866 — Lakeland/Inglaterra, 1943) foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre por seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal. Sua obra mais famosa é A História do Pedro Coelho. Ela estudou em casa e recebeu das governantas uma educação vitoriana.  O Coelho Benjamim foi uma das primeiras personagens que Beatrix Potter vendeu a uma editora. Beatrix começou por ilustrar contos tradicionais como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", "O Gato das Botas" etc, mas muitas das suas ilustrações incluíam os seus animais de estimação. Beatrix Potter teve bastantes dificuldades em encontrar uma editora que publicasse as suas histórias. Depois de receber várias cartas de rejeição, ela decidiu tratar do assunto sozinha e criou um livro pequeno a preto e branco com a histórias dos quatro coelhinhos e publicou 250 cópias do mesmo que pagou com o seu próprio dinheiro. Frederick Warne & Co, que já tinha rejeitado as histórias de Beatrix, decidiu publicar o que apelidou de "livro dos coelhinhos". A mudança de posição deveu-se ao fato de a editora querer entrar no mercado dos livros infantis de formato pequeno. A História do Pedro Coelho foi publicado em 1902 e foi um enorme sucesso, vendendo 20 000 cópias até ao Natal desse ano. No ano seguinte, foram publicados A História do Esquilo Trinca-Nozes e O Alfaiate de Gloucester. Nos anos seguintes, Beatrix trabalhou com o editor Norman Warne e publicou entre dois e três livros de formato pequeno todos anos, atingindo um total de 23 obras publicadas na sua carreira. Em 1905, Beatrix e Norman Warne, o seu editor, ficaram noivos. O noivado foi mantido em segredo pois a família de Beatrix desaprovava um noivo que vivia de sua profissão de editor, por considerá-lo de classe inferior. Tragicamente, em 25 de agosto de 1905, um mês depois do pedido, Norman morreu de leucemia, quando tinha 37 anos. Isso deixou Beatrix devastada, mas ela fez o máximo para superar esse momento difícil, trabalhando ainda mais do que o costume. Em 1913, aos quarenta e sete anos, Beatrix casou-se com William Heelis, um procurador local, e foi morar em Sawrey. Ela passou a desenhar e a escrever menos, dedicando-se às atividades da fazenda, à criação de carneiros e a comprar muitas terras em Lakeland, para preservá-las. Quando Beatrix Potter morreu, em 1943, deixou mais de 4 000 acres e 15 fazendas para o National Trust, uma organização destinada a preservar lugares de interesse histórico ou de grande beleza cênica, na Inglaterra. Beatrix e William tiveram um casamento feliz que durou trinta anos. Apesar de não terem filhos, Beatrix era um elemento importante da família de William e teve uma relação muito próxima com as suas sobrinhas, que ajudou a educar. Beatrix faleceu em 1943, devido a uma pneumonia e complicações cardíacas em sua residência, chamada Castle Cottage, localizada em Lake District. Os seus restos mortais foram cremados. O seu marido continuou cuidando das propriedades e do trabalho literário e artístico da esposa até à sua morte, em agosto de 1945. Em 2006, a vida de Beatrix Potter foi transformada em um filme, Miss Potter, com Renée Zellweger e Ewan McGregor como protagonistas. 

Fontes:
Beatrix Potter. The Taylor of Gloucester. Publicado originalmente em 1903. Disponível em Domínio Público.  
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatrix_Potter
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