quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 118 *


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Eterna ausência

Esse teu olhar
Abriu uma janela
Em meus arquivos.
Revivi a mesma
Paixão.
Senti calado
A mesma ausência
De outrora.
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

À deriva

Quem me deixa à deriva, desconhece
Que meu barco é movido a sentimentos
Pois meus sonhos, toda vez que a maré cresce,
Agradecem ao poder feliz dos ventos.

Mesmo que a dor me exponha ao relento,
Movimento o meu amor com a fantasia
E é assim que sobrevivo: eu me alimento
Do momento que alimenta a poesia.

A magia de quem sofre e faz sua parte
Vem da arte que se despe da moldura,
Pois nem mesmo um folhetim é um encarte
Para a arte que se esculpe com ternura.

Só quem sabe repintar-se com nobreza,
Vê beleza em cada riso que se doa
E se um riso é feliz por natureza,
Num sorriso, a alegria empluma... e voa.

Num rabisco inusitado, a parceria
Que há com Deus, mais espontânea se revela...
É assim que Ele desenha a fantasia
Da poesia a que harmoniza a cor da tela.

Só quem tem dom de amar e transcrevê-lo
Faz quem lê-lo, transportar-se e compreender
Que a linha solitária de um novelo
Só termina, quando quem sabe tecer

Abençoa o terno olhar embevecido
De quem vê, num simples risco de um bordado,
A ternura que repousa num tecido
Construído om amor, luz e cuidado.

Quem me deixa à deriva, não me deixa,
Alimenta minha eterna inspiração,
Porque, quando minha emoção se queixa,
Ela deixa tão triste meu coração...
Que até mesmo a invenção de alguma gueixa,
Complementa minha dor de solidão.

Quem me deixa, nunca foi meu par perfeito,
Não me deito com olhares insensíveis...
Conteúdos sempre têm algum defeito
E os defeitos também são imprevisíveis...

Meu navio só precisa de um motor:
É o amor que ainda tens para me dar
E se amar é recriar um sonhador,
Deixa ao menos, pelo menos, eu te amar.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Entrelinhas 

  Há no entrelaçar das nossas linhas
      Um mágico encontro,
     Desenhado e tecido pelo destino.
 Há no entrelaçar dos nossos lábios
 Carícias que realizam sonhos,
    Sonhos repletos de cores,
      Aromas,  lindas lembranças...
       Há no entrelaçar dos nossos corações,
  Uma aquarela,
    Um bailado encantado, juntinhos
        Num mesclar de vidas,
    Amor e desejo,
Êxtase e desassossego...
= = = = = = 

Trova Popular

À noite quando me deito
eu rezo à Virgem  Maria,
para sonhar toda  a noite
com quem penso todo o dia.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Serenidade

Feriram-te, alma simples e iludida.
Sobre os teus lábios dóceis a desgraça
Aos poucos esvaziou a sua taça
E sofreste sem trégua e sem guarida.

Entretanto, à surpresa de quem passa,
Ainda e sempre, conservas para a Vida
A flor de um idealismo, a ingênua graça
De uma grande inocência distraída.

A concha azul envolta na cilada
Das algas más, ferida entre os rochedos,
Rolou nas convulsões do mar profundo;

Mas inda assim, poluída e atormentada,
Ocultando puríssimos segredos,
Guarda o sonho das pérolas no fundo.
= = = = = = 

Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP, 1866 – 1924

Soneto da mudança

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto
Mas a vós mesma, e à vossa formosura:
Que, se vos aborrece, me tortura
Ver-me cativo assim do vosso encanto.

Enfadai-vos. Parece-vos que, em quanto
Meu amor se lastima, vos censura:
Mas sendo vós comigo áspera e dura
Que eu por mim brade aos céus não causa espanto.

Se me quereis diverso do que agora
Eu sou, mudai; mudai vós mesma, pois
Ido o rigor que em vosso peito mora,

A mudança será para nós dois:
E então podereis ver, minha senhora,
Que eu sou quem sou por serdes vós quem sois.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO +
São José dos Campos/SP 

Doce prisão

Este vaivém do mar beijando a areia
bem se assemelha à nossa vida a dois:
Também o que nos ata é uma cadeia
que solta... e prende bem, logo depois...

Não cansa o sangue em seu volver na veia,
nem eu por ser cativo seu só, pois
você não é prisão que me aperreia
como a canga que enreda os mansos bois!

Se para ficar livre eu for deixar
a minha praia, ou minha artéria, o quê
além de desengano irei achar?

Prefiro ser cativo nesse ambiente
a que me acostumei, tendo você...
E ser feliz assim, eternamente!
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Arte do Chá

ainda ontem
convidei um amigo
  para ficar em silêncio
comigo

  ele veio
meio a esmo
  praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Pra resistir tua falta,
minh'alma não tem coragem.
Só se iludido pensar
que não perdi tua imagem.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Sou uma leve brisa,
o beijo do dia.
Uma lágrima na noite
fria, solidão sombria.
Sou doce perfume,
suave sangria.
Gargalhada aprisionada
ou veneno, sua alforria.
Sou a rosa do tango,
drama na alegria.
Rodopiando na valsa
sorrio, faço poesia.
= = = = = = 

Poema de 
ALBERTO MARTINS
Santos/SP

O editor

Passa o dia entre livros
Que não existem, ainda estão por ser escritos
Ou nunca chegarão a ser impressos.
Não trabalha no campo
Mas tem as mãos escalavradas:
A pele dos dedos descama feito pergaminho.
De noite voltam para casa
Ele e sua sombra – enxertada de palavras.
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Ao passar do vento

Quando tremula a fronde ao passar de uma brisa
é um sorriso floral dos galhos verdejantes;
quando às águas do lago um leve sopro alisa,
como a sorrir também, felizes e arquejantes;

quando às flores, sem nome, uma aura que desliza
beija e afaga a sonhar doces sonhos distantes;
quando às nuvens no céu azul canta e suaviza
numa glória de sol e brilhos coruscantes;

eu cismo e vejo bem que os arpejos que passam
unidos pelo amor, pelo amor se entrelaçam,
e, alegres, todos vão com modos galhofeiros,

mostrando a nosso olhar, talvez muito cansado,
toda a beleza que há no vento tresloucado,
no sublime correr dos ventos passageiros.
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Naquela noite

1
Ainda sinto o sabor
Da tua meiguice
na minha ternura...
Enraizando sublime amor...
Ainda sinto o calor
Do teu coração de encontro ao meu...

2
O perfume,
a maciez das ondas negras
dos teus cabelos,
a embriagar-me
e a afogar-me
os sentidos...

3
A tua doce voz, aos meus ouvidos,
ainda ouço, a sussurrar baixinho,
ao som do “meu castigo”
que, de fato, nos castigava,
nos torturava,
de amor... E de carinho...

4
Sinto, igualmente, o compasso,
do passo,
dolente,
da dança,
que encanta,
ainda, em mim...

5
E sinto mais:
O afago dos teus braços...
E tu,
toda envolvida,
e quase vencida,
enfim...

6
Ainda agora, escuto o teu “não...”
Assim cheio de suavidade
no eco da minha saudade
Depois que tomei-te,
E apertei-te,
Em meu coração.
= = = = = = 

Poema de
EUGÉNIO DE ANDRADE
Fundão/Portugal, 1923 – 2005, Porto/Portugal

Os livros

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
= = = = = = 

Hino de 
Olinda/PE

Olinda, cofre sublime
de brilhantes tradições.
Teu nome beleza exprime
e produz inspirações.
Teu céu, teu mar, teus coqueiros,
ruínas, praias, luar,
despertam sonhos fagueiros,
deslumbrando o nosso lar.

Estribilho:
Glória a Duarte Coelho,
que ouvindo o justo conselho
de inspiração genial,
deu luz, prestígio, beleza,
força, progresso e grandeza,
a ti, Olinda imortal.

Olinda, tão sedutora,
quanta beleza contens!
sendo assim merecedora
do lindo nome que tens,
De nossa brasilidade
foste o berço singular!
No teu solo a liberdade
nunca deixou de brilhar.

Olinda, honrando a memória
do artista que te fundou,
com ele reparte a glória
que a tua fama alcançou.
Que majestade suprema
existe em tudo o que é teu!
tu és, Olinda, um poema
que a natureza escreveu!…
= = = = = = 

Poema de 
LUÍS DA MOTA FILIPE 
Sintra/Portugal

De uma Lisboa esquecida

Das ondas, das maresias
Dos mares, dos rios
Das canastras, das varinas
Dos barcos, dos pescadores

Das vielas, das guitarras
Dos fados, dos destinos
Das revistas, das canções
Dos teatros, dos aplausos
Das tertúlias, das declamações
Dos poetas, dos Cafés
Das sinas, das sortes
Dos pregões, dos cauteleiros
Das floristas, das feiras
Dos arraias, dos mercados
Das rosas, das sardinheiras
Dos cravos, dos manjericos
Das esquinas, das calçadas
Dos Pátios, dos azulejos
Das praças, das fontes
Dos jardins, dos namorados
Das janelas, das varandas
Dos telhados, dos beirais
Das rezas, das procissões
Dos devotos, dos amantes
Das saudades, das paixões
Dos amores, dos corações

De uma Lisboa… esquecida
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O lobo e o cão magro

A pequena distância duma aldeia,
Um lobo encontra um gozo,
E quer ferrar-lhe o dente.
O cão, manhoso,
E vendo a coisa feia,
Rabo entre pernas, diz humildemente:
«Peço perdão, mas Vossa Senhoria,
Ou não vê bem de perto,
Ou vê decerto
Em mim pobre iguaria!...
Eu sou o que se chama um carga-d’ossos;
Vendido em qualquer talho,
Não valho
Dois tremoços!...
Quer um conselho? Espere. Muito breve,
Meu dono casar deve;
Convidado
Já fui para o noivado;
Tempo de boda,
Tempo de fartura:
Faz-se gordura
Esta magreza toda!...
Tal como sou, não passo dum lambisco;
Enquanto que, depois de uns dias ledos
— Não é por me gabar — mas... um petisco
Eu devo ser
De se lamber
Os dedos!...
Deixe que eu tire o ventre de miséria,
E venha, venha então!»
O lobo crê na léria,
E larga o cão.

Passam dias — e, muito cauteloso,
Entra o lobo na aldeia.
A ver se acha no gozo
Melhor preia.
Mas em lugar seguro, o cão, velhaco:
«Por cá, meu caro? — diz; — prazer sem par!...
Dois dedos de cavaco
Eu e o guarda-portão te vamos dar;
Espera aí portanto,
Abrimos-te o ferrolho!»
Era o guarda-portão
Um canzarrão
Capaz de estrangular um lobo enquanto
O demo esfrega um olho!
O lobo, ao vê-lo, diz todo assustado:
«Senhor guarda-portão, um seu criado!»
E as pernas pôs em rápido exercício!

Ora aqui está um lobo que, a meu ver,
Mostrava não saber
Do seu ofício!
= = = = = = = = =  

Cailin Dragomir (Histórias de Moșneagul*) O Sábio da Aldeia


Em uma manhã em uma pequena aldeia da Romênia, onde o canto dos pássaros e o cheiro do pão fresco permeavam o ar. No centro da aldeia, sob a sombra de uma velha árvore, estava Moșneagul, o velho sábio da comunidade. Com sua longa barba branca e olhos que refletiam a profundidade dos anos, ele era uma figura respeitada e amada por todos.

Moșneagul tinha o dom de contar histórias. As crianças se agrupavam ao seu redor, ansiosas por ouvir suas narrativas sobre heróis e dragões, amores impossíveis e aventuras épicas. Mas, mais do que isso, ele era um guardião da sabedoria popular. Suas histórias não eram apenas entretenimento; traziam lições de vida, conselhos que ressoavam através das gerações.

Certa vez, um jovem chamado Andrei, cheio de dúvidas sobre seu futuro, decidiu procurar Moșneagul. Com o coração pesado, ele se sentou à sombra da árvore, buscando respostas. O velho o observou por um momento, com um sorriso sereno.

- Meu jovem, o que te aflige? - perguntou Moșneagul, sua voz suave como a brisa da manhã.

Andrei suspirou e começou a falar sobre suas incertezas, suas aspirações e medos. O velho ouvia atentamente, sem interromper. Quando o jovem terminou, Moșneagul fez uma pausa, como se estivesse pesando as palavras que escolheria.

- Lembre-se, Andrei - começou ele -, a vida é como um rio. Às vezes, as correntezas são fortes, e as pedras podem parecer obstáculos intransponíveis. Mas cada curva e cada desvio têm seu propósito. O importante é seguir em frente, aprendendo com cada desafio.

A sabedoria do velho ecoou na mente de Andrei. Ele percebeu que não precisava ter todas as respostas naquele momento, mas sim a coragem de continuar sua jornada.

Os dias passaram, e a presença de Moșneagul continuava a ser uma luz na aldeia. Ele não apenas contava histórias, mas também cultivava um senso de comunidade. Os aldeões, em suas conversas diárias, frequentemente citavam suas palavras, como se fossem provérbios. “A paciência é uma virtude” e “O amor é a chave que abre todas as portas” tornaram-se mantras que guiavam suas vidas.

Em uma tarde de outono, enquanto as folhas caíam como ouro, Moșneagul reuniu os aldeões para uma celebração. Ele queria compartilhar uma história especial, uma que falasse sobre a importância da união e da empatia. Com a fogueira crepitando ao seu redor, ele começou a narrar a história de um grupo de viajantes que, ao se depararem com um desafio, aprenderam que a força estava na colaboração.

A cada palavra, os rostos dos ouvintes iluminavam-se. O velho sábio tinha uma habilidade única de tornar cada história um espelho, refletindo as lutas e triunfos de cada um ali presente.

No final da noite, enquanto as estrelas brilhavam no céu, os aldeões sentiram-se mais conectados, mais unidos. Moșneagul, com seu coração generoso e sua sabedoria infinita, havia cumprido mais uma vez sua missão: ensinar que, na simplicidade da vida cotidiana, reside a verdadeira grandeza.

Assim, sob a sombra da velha árvore, Moșneagul continuou a ser a alma da aldeia, um farol de esperança e conhecimento, lembrando a todos que, mesmo nas dificuldades, a sabedoria e o amor sempre encontram um caminho.
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* Nota do autor:
Moșneagul, que significa "o velho" em romeno, é uma figura arquetípica nas tradições folclóricas da Romênia. Ele representa a sabedoria acumulada ao longo dos anos e a conexão profunda com a cultura e as tradições locais. É frequentemente retratado como um sábio que possui um vasto conhecimento sobre a vida, a natureza e as relações humanas. Ele serve como mentor para jovens e adultos, oferecendo conselhos valiosos e orientações que muitas vezes são baseadas em experiências pessoais e sabedoria popular. As histórias contadas por ele são uma parte essencial da cultura romena. Elas geralmente abordam temas universais, como amor, amizade, coragem, e a luta entre o bem e o mal. Suas narrativas muitas vezes incluem elementos do folclore, como criaturas míticas, heróis e lições morais. Ele frequentemente menciona plantas, animais e fenômenos naturais em suas histórias, usando-os como metáforas para ensinar lições sobre a vida e a convivência harmoniosa com o meio ambiente. 

Uma das principais funções de Moșneagul é transmitir a sabedoria das gerações passadas. Suas histórias são uma forma de preservar a memória cultural, passando adiante tradições, costumes e valores que poderiam se perder com o tempo. Moșneagul é muitas vezes visto como a personificação da tradição e da cultura romena. Ele representa a voz do povo, refletindo suas esperanças, medos e aspirações. Suas histórias ajudam a manter a identidade cultural viva, especialmente em tempos de mudança. Apesar da profundidade de suas lições, as histórias de Moșneagul frequentemente contêm humor e ironia. Ele utiliza o riso como uma forma de ensinar, fazendo com que as pessoas reflitam sobre suas próprias vidas de maneira leve e acessível.

As histórias de dele não apenas educam, mas também fortalecem a coesão social na aldeia. Elas criam um senso de pertencimento e identidade, unindo as pessoas em torno de valores compartilhados. Ele é mais do que um simples contador de histórias; ele é um símbolo da sabedoria coletiva, uma ponte entre o passado e o presente, e um farol de esperança e inspiração para todos que o ouvem.
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       Cailin Dragomir nasceu em 1949, na vibrante cidade de Timișoara, na Romênia. Desde cedo, demonstrou uma paixão inata pela literatura e pela arte das palavras. Ele cresceu em um ambiente que refletia a rica herança cultural da sua cidade, onde a música e a poesia se entrelaçavam nas conversas cotidianas. Após concluir o ensino médio, ingressou na Universidade, onde se destacou em seus estudos de literatura. Sua dedicação e talento o levaram a continuar sua formação acadêmica, culminando em um pós-doutorado. Durante esse período, ele mergulhou na obra de grandes poetas romenos e internacionais, desenvolvendo um estilo próprio que misturava o lirismo clássico com uma abordagem contemporânea. Em 1992, tomou a decisão de se mudar para o Brasil, em busca de novas oportunidades e experiências. Ao chegar ao país, ele se estabeleceu em São Paulo, onde rapidamente se destacou como professor de literatura. Suas aulas eram conhecidas pela abordagem criativa e envolvente, inspirando os estudantes a apreciar a literatura de maneira profunda e significativa. Além de sua carreira acadêmica, cultivava uma paixão pelo xadrez. Ele se tornou um jogador forte e respeitado, participando de torneios e promovendo o jogo entre seus alunos. Dragomir acreditava que o xadrez, assim como a literatura, era uma forma de arte que desenvolvia o pensamento crítico e a estratégia, habilidades essenciais tanto na vida quanto na escrita. E em um clube de xadrez ele veio a conhecer o diretor dele, José Feldman, com que estreitou laços de amizade não só pelo jogo, mas pela literatura, além do fato de que ambos possuíam uma paixão pela música e Feldman ser filho de pais romenos. Ao longo de sua vida, Cailin Dragomir se estabeleceu como uma figura influente na cena literária e educacional, deixando um legado duradouro tanto na Romênia quanto no Brasil. A influência da cultura romena em sua poesia se manifesta em diversos aspectos de sua obra. A rica tradição literária da Romênia, que inclui poetas como Mihai Eminescu e George Coșbuc, moldou a sensibilidade estética dele. Ele usa uma linguagem lírica e metafórica, incorporando elementos do folclore e da mitologia romena, que são essenciais na poesia romena clássica. A natureza é um tema recorrente na poesia romena, e Dragomir não é exceção. Suas descrições vívidas de paisagens romenas, como as montanhas dos Cárpatos e os campos de flores, refletem uma profunda conexão com o ambiente natural, transmitem uma sensação de integração e nostalgia.
       A riqueza do folclore romeno permeia sua poesia, com referências a mitos, lendas e tradições populares. Utiliza esses elementos para criar uma ponte entre a modernidade e as raízes culturais, trazendo à tona a sabedoria ancestral que ainda ressoa na vida contemporânea. A poesia romena é conhecida por sua profundidade emocional e introspecção. Seguindo essa tradição, explora sentimentos complexos como amor, perda e saudade, utilizando uma abordagem que reflete tanto a sensibilidade individual quanto a experiência compartilhada do povo romeno. Ele muitas vezes incorpora ritmos e cadências que evocam a sonoridade da música popular romena, criando uma harmonia entre palavra e som que enriquece a experiência do leitor.
       Após sua mudança para o Brasil, passou a incorporar a experiência da diáspora em sua poesia. Essa nova perspectiva enriqueceu sua obra, permitindo uma fusão de influências culturais que resultou em uma poesia mais ampla, reflexiva e acessível a diferentes públicos. 
       Em suas obras faz referências a figuras mitológicas romenas, como "Zmeu", um dragão que frequentemente aparece em contos populares. Ele utiliza essa figura para simbolizar desafios e superações, inserindo a luta contra o Zmeu como uma metáfora para as dificuldades da vida. Também é comum encontrar menções a "nossas montanhas", como os "Cárpatos", que não apenas servem como cenário, mas também como símbolo de resistência e força. Cailin pode descrever a beleza dessas montanhas em relação à história do povo romeno, evocando sentimentos de pertencimento. Ele inclui personagens folclóricos como "Moșneagul" (o velho sábio) e "Zână" (a fada), representando a sabedoria ancestral e a proteção, respectivamente. Esses personagens são frequentemente utilizados para transmitir lições de vida e a importância das tradições. Além disso, faz alusão a festivais tradicionais, como "Mărțișor", que celebra a chegada da primavera. Em seus versos, ele descreve a troca de fitas brancas e vermelhas como um símbolo de renovação e esperança, refletindo a alegria da vida. Histórias de amores impossíveis, como a lenda de "Făt-Frumos" e "Ilena Cosânzeana", podem ser exploradas em sua poesia. Ele usa essas narrativas para abordar temas de amor e sacrifício, conectando a experiência pessoal com a tradição. Há a presença de criaturas míticas, como o "Chimera" ou o "Roc", descrevendo esses seres como guardiões de segredos e mistérios, simbolizando os desafios que todos enfrentamos em busca de conhecimento. Esses elementos folclóricos não apenas enriquecem a poesia de Cailin Dragomir, mas também criam uma ponte entre o passado e o presente, permitindo que ele dialogue com suas raízes culturais enquanto se adapta a novas influências. Essa fusão é uma das marcas distintivas de sua obra.
          Como poeta, Dragomir publicou três livros : 1. "Ecos da Alma" - Uma coletânea de poemas introspectivos que exploram a complexidade das emoções humanas; 2. "Sussurros da Memória" - Uma obra que reflete sobre o passado, a nostalgia e a busca pela identidade; 3. "Caminhos de Luz" - Uma série de poemas que celebram a beleza da natureza e a conexão entre o ser humano e o mundo ao seu redor.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Humberto de Campos (Para salvar Melila)


O advogado brasileiro Joaquim Taludo de Menezes havia se notabilizado, no Rio, pelo seus famosos expedientes de rábula. Os recursos de que lançava mão eram de tal ordem, que nunca perdera, praticamente, uma questão: ou ganhava-a legalmente, ou, se perdia, irritava de tal modo o advogado da outra parte, que este acabava por abandonar o pleito, para não se medir com semelhante adversário.

Forte, musculoso, bigode arrepiado, havia nele, ao mesmo tempo, o advogado e o capanga. Impetuoso, não media palavras; e onde não chegava a convicção, chegava o braço, de modo a ser necessário, de vez em quando, a intervenção dos guardas do foro para subjugar a sua eloquência.

Enriquecido por esse processo, resolveu Taludo de Menezes fazer uma viagem à Europa. Não falando nem compreendendo o francês, a Europa, na sua Geografia, se limitava a Portugal. Em Lisboa, viu, porém, que a língua espanhola pouco diferia da portuguesa, e atravessou a fronteira, com rumo a Madri.

Por essa ocasião, agitava-se o país todo com a primeira campanha dos mouros contra o domínio espanhol, em Marrocos. Na imprensa, nos "meetings", no parlamento, não se discutia outra coisa. Soprava na península um vento de indignação, que se detinha, apenas, amainando as velas dos galeões do entusiasmo, na fronteira de Portugal. O próprio monarca, vibrando com o seu povo, dirigiu ao parlamento uma "fala do trono", em que dizia, ao estilo protocolar: "Querem tirar ao Vosso Rei aquilo que ele herdou dos seus maiores. Melila, joia da minha coroa, está ameaçada. Cabe-vos defender o patrimônio do Vosso Soberano, pondo-o a salvo de qualquer surpresa dos meus inimigos".

Essa proclamação impressionou Taludo de Menezes. Fosse ele advogado em Espanha, e não tomariam ao seu augusto monarca a "joia da coroa".

— Mas eu vou intervir! — resolveu, de repente, dando um murro na mesa do restaurante onde fazia refeições. — Vou procurar o Rei, e ensinar-lhe um meio de não perder Melila!

Dois dias depois, era, realmente, o advogado brasileiro recebido pelo soberano.

— Majestade — declarou, solene, após uma infinidade de "gafes". — Eu tenho um processo para Vossa Majestade não ficar sem a "joia da Coroa". Posso dizer!

— Pois, não! — aquiesceu o monarca.

Taludo de Menezes subiu um degrau do trono, olhou em torno, e, chegando a boca ao ouvido do Rei, segredou:

— Ponha-a no nome da sua esposa!...

E esfregou as mãos, contente.
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.
Fontes:
Humberto de Campos. Grãos de Mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Raquel Pivetta (Sozinhos de ônibus)


Léo tinha um problema sério na vista, motivo pelo qual a mãe se preocupava demasiadamente com a segurança do menino. Certo dia, ela precisou que ele fosse à cidade vizinha para pagar uma conta. Raquel, a prima com quem Léo sempre andava pra cima e pra baixo, seria responsável por tomar os cuidados, já que era mais velha. Antes de saírem, a mãe de Léo fez uma lista de recomendações às crianças:

— Observem tudo à sua volta; não deem conversa a estranhos; tomem muito cuidado ao atravessarem as pistas; prestem atenção nas placas dos ônibus.

Ela ainda estava insegura de deixar aqueles dois irem sozinhos de ônibus, afinal era tão longe, tão perigoso…

— Fique tranquila, tia, a gente vai com cuidado — disse Raquel, destemida.

Tomaram o rumo da parada. Sempre que um ônibus se aproximava, eles pediam informação aos companheiros de espera, já que Raquel também não enxergava lá essas coisas. Instantes depois, a placa esperada surgiu, e então eles entraram e seguiram viagem tranquilos.

Ao chegarem ao destino, Léo pagou a conta, conforme recomendado pela mãe, e tudo ia correndo muito bem por sinal. Nem parecia verdade, pois aqueles dois não passavam um dia sequer sem ter uma história inusitada para contar. Pois bem, mas a história ainda não tinha terminado.

Quando estavam caminhando em direção ao ponto para pegar o ônibus de volta, Léo deu a entender que teve um mal-estar — Raquel não compreendeu muito bem o que estava acontecendo. Ele apenas havia dito:

— Raquel, eu vou ali. Espere aqui, que já volto.

Ela ficou esperando por horas, e nada de Léo aparecer. Raquel já não sabia o que fazer. Celular não existia nem em pensamento naquela época.

Cansada de esperar, Raquel resolveu procurá-lo. Entrou em todas as lojas da quadra comercial… Mas nada, nem rastro do Léo.

“Minha nossa, o que será que aconteceu com o Léo? A tia me recomendou tanto!” — Raquel se perguntava, já entrando em desespero.

Estava escurecendo, e não lhe restava mais nada a fazer a não ser voltar para casa. Ela ainda tinha certa esperança de que Léo tivesse voltado também.

Raquel entrou no ônibus preocupada e apreensiva, sem conseguir parar de pensar no primo — o que ia dizer à tia?

Foi quando Raquel teve a impressão de ouvir uma voz distante, vindo sabe-se lá de onde, decerto do além — pelo menos era o que parecia aquilo. Ela temia que já fosse a voz do espírito de Léo. Estava assustada e foi rezando durante toda a viagem.

Ao chegar à parada de destino, Raquel foi uma das primeiras pessoas a descer do ônibus. Ela olhou para trás e se deparou com um mundo de gente saindo em seguida, até que teve uma surpresa:

— Léo!? — Raquel perguntou, pasmada.

— Raqueeeel! Você estava neste ônibus? — perguntou Léo.

Pronto, a partir dali a aflição foi embora, tudo voltou a ser leve como andar na rua de chinelo, chupando dindim e rindo da blusa vestida do avesso. Léo e Raquel nem imaginavam que, depois de tal pesadelo em formato de desencontro, estariam no mesmo ônibus de volta, assim como não conjecturavam que aquele dia seria eternizado em suas lembranças e, de certa forma, revivido por meio de uma crônica.
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Raquel Machado Pivetta é de Brasília/DF, analista de sistemas e revisora de textos. Apaixonada pela língua portuguesa, fundou o site Viva Gramática, onde compartilha crônicas que exploram, com sensibilidade literária, as nuances do cotidiano.

Fontes
https://vivagramatica.com.br/viva-gramatica-sozinhos-de-onibus/
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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Silmar Bohrer (Croniquinha) 146

"Eu conheço meus canários". Verdadeiramente. 

Os canarinhos do bosco são a companhia diária junto ao meu planetinha verde. Mal rompe a manhã (Oh Drumond !) deixam os ninhos, ou a galharia, e descem até a casa da quirerinha, onde ficam bicando a ração matinal. 

Depois?! Depois seguem o ritual do dia a dia, ciscando entre as folhas no chão em busca de bichinhos, alguma minhoca, um corozinho subjacente no solo. E a água, onde vão bebericar, refestelando no bebedouro, sacudindo asas e penas, pura algazarra no banho para afastar o calor.

A mãe-natura é fascinante em belezas e delícias, e os canarinhos são parte da fauna do bosco, onde outros tantos habitam - joões-de-barro, sabiás, tico-ticos - , e com suas cantorias e alaridos envolvem e enternecem o pequeno mundo da florestinha.

Nestes momentos de encantamento a gente acaba se convencendo de que Lao Tsé bem fundamentou o culto ao Tao, que nada mais é do que nossa interação com a natureza e todos os seres vivos.
      
O Tao é literalmente o "caminho" que leva ao entendimento de que somos todos nativos, que              precisamos viver em harmonia neste chão fascinante chamado planeta Terra.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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Zitkala-Ša (O Grande Espírito)

Quando o espírito me incha o peito, adoro vagar tranquilamente entre as colinas verdes; ou, às vezes, sentado à beira do murmurante Missouri, maravilho-me com o imenso azul acima. Com os olhos semicerrados, observo as enormes sombras das nuvens em seu jogo silencioso sobre os altos penhascos à minha frente, enquanto em meus ouvidos ondulam as cadências doces e suaves da canção do rio. Mãos postas repousam em meu colo, por um tempo esquecido. Meu coração e eu jazemos pequenos sobre a terra como um grão de areia pulsante.

Nuvens flutuantes e águas tilintantes, juntamente com o calor de um agradável dia de verão, revelam com eloquência o amoroso mistério que nos cerca. Durante o tempo em que fiquei sentado à beira ensolarada do rio, cresci um pouco, embora minha resposta não fosse tão claramente manifesta quanto na grama verde que margeia a borda do penhasco alto atrás de mim.

Por fim, refazendo a trilha incerta que sobe o barranco íngreme, procuro as terras planas onde crescem as flores selvagens da pradaria. E elas, as pequenas e adoráveis pessoas, acalmam minha alma com seu hálito perfumado.

Seus rostos redondos e pitorescos, de tonalidade variada, convencem o coração, que salta de alegre surpresa, de que eles também são símbolos vivos do pensamento onipotente. Com o olhar ávido de uma criança, absorvo as miríades de formas estelares moldadas em cores exuberantes sobre o verde. Bela é a essência espiritual que elas personificam.

Deixo-os balançando ao vento, mas levo comigo a marca deles em meu coração. Paro para descansar sobre uma rocha incrustada na encosta de uma colina, de frente para o leito baixo do rio. Ali, o Menino-da-Pedra, de quem o aborígene americano fala, brinca, atirando suas flechas de bebê e gritando de alegria para os minúsculos raios que saem dos bicos das flechas voadoras. Que guerreiro ideal ele se tornou, frustrando o cerco das pragas de toda a terra até triunfar sobre seu ataque unido. E ali jazia ele — Inyan, nosso tataravô, mais velho que a colina em que descansou, mais velho que a raça dos homens que amam contar sobre sua maravilhosa carreira.

Entrelaçado com o fio desta lenda indígena da rocha, eu gostaria de traçar um conhecimento sutil do povo nativo que os permitisse reconhecer um parentesco com toda e qualquer parte deste vasto universo. Seguindo uma trilha antiga, sigo em direção à aldeia indígena.

Com a forte e feliz sensação de que tanto o grande quanto o pequeno estão tão seguramente envolvidos em sua magnitude que, sem perder, cada um tem seu campo individual de oportunidades, estou flutuando com boa natureza.

Peito Amarelo, balançando no caule esguio de um girassol selvagem, gorjeia uma doce certeza disso enquanto passo por perto. Interrompendo a canção cristalina e clara, ele vira sua cabecinha de um lado para o outro, observando-me sabiamente enquanto eu lentamente ando com os pés calçados com mocassins. Então, novamente, ele se entrega à sua canção de alegria. Voa, voa de um lado para o outro, ele preenche o céu de verão com sua melodia rápida e doce. E realmente parece que sua vigorosa liberdade reside mais em seu pequeno espírito do que em suas asas.

Com esses pensamentos, chego à cabana de madeira, para onde sou fortemente atraído pelo laço de uma criança com uma mãe idosa. Meu amigo de quatro patas sai ao meu encontro, saltitando pelo meu caminho com inconfundível deleite. Chän é uma cadela preta e peluda, "uma vira-lata puro-sangue" de quem gosto muito. Chän parece entender muitas palavras em Sioux e vai para o tapete mesmo quando sussurro a palavra, embora geralmente eu ache que ela se guia pelo tom de voz.

Muitas vezes, ela tenta imitar a inflexão deslizante e a voz arrastada para o divertimento dos nossos convidados, mas sua articulação está além do meu ouvido. Com as duas mãos, seguro sua cabeça peluda e olho em seus grandes olhos castanhos. Imediatamente, as pupilas dilatadas se contraem em minúsculos pontos pretos, como se o espírito travesso interior escapasse do meu questionamento.

Finalmente, ao retomar a cadeira à minha escrivaninha, sinto uma profunda simpatia por meus semelhantes, pois pareço ver claramente novamente que todos são semelhantes. As linhas raciais, que antes eram amargamente reais, agora não servem mais do que delinear um mosaico vivo de seres humanos. E mesmo aqui, homens da mesma cor são como as teclas de marfim de um instrumento onde cada uma se assemelha a todas as outras, mas difere delas em tom e qualidade de voz. E aquelas criaturas que são por um tempo meros ecos da nota de outra não são diferentes da fábula do homem magro e doente cuja sombra distorcida, vestida como uma criatura real, veio até o velho mestre para fazê-lo seguir como uma sombra. Assim, com compaixão por todos os ecos em forma humana, saúdo o "pregador nativo" de rosto solene que encontro à minha espera. Escuto com respeito pela criatura de Deus, embora ele pronuncie de forma estranha as frases estridente de um credo intolerante.

Como nossa tribo é uma grande família, onde cada pessoa é parente de todas as outras, ele se dirigiu a mim:

"Prima, vim do culto matinal para conversar com você."

"Sim?", perguntei, interrogativamente, enquanto ele parava para me dizer alguma coisa.

Mexendo-se inquieto na cadeira de encosto reto em que estava sentado, ele começou: "Todos os dias santos (domingo), olho ao redor da casa do nosso pequeno Deus e, não o vendo lá, fico decepcionado. É por isso que venho hoje.

Prima, observando-o de longe, não vejo comportamento impróprio e ouço apenas bons relatos a seu respeito, o que me faz desejar ainda mais que você fosse membro da igreja. Prima, fui ensinado há muitos anos por missionários gentis a ler o livro sagrado. Esses homens piedosos também me ensinaram a loucura de nossas antigas crenças.

"Há um Deus que recompensa ou castiga a raça dos mortos. Na região superior, os mortos cristãos reúnem-se em cânticos e orações incessantes. No poço profundo abaixo, os pecadores dançam em chamas torturantes.

"Pense nessas coisas, prima, e escolha agora evitar a condenação do fogo do inferno!" Seguiu-se um longo silêncio no qual ele apertou e desfez os dedos entrelaçados com mais força.

Como relâmpagos instantâneos, surgiram imagens criadas por minha própria mãe, pois ela também agora é seguidora da nova superstição.

"Apagando a fresta da nossa cabana de madeira, uma mão maligna enfiou uma vela acesa feita de capim seco trançado, mas não conseguiu, pois o fogo se apagou e o tição meio queimado caiu no chão. Bem acima dele, em uma prateleira, estava o livro sagrado. Foi isso que encontramos após nosso retorno de uma visita de vários dias. Certamente, algum grande poder está oculto no livro sagrado!"

Afastando dos meus olhos muitas imagens semelhantes, ofereci o almoço ao índio convertido, sentado sem dizer nada e com o rosto abatido. Assim que ele se levantou da mesa com "Prima, eu o saboreei", o sino da igreja tocou.

Para lá, ele saiu apressado com seu sermão da tarde. Observei-o enquanto ele se apressava, com os olhos fixos na estrada empoeirada, até desaparecer ao final de um quarto de milha.

O pequeno incidente me fez lembrar do exemplar de um artigo missionário que me foi trazido à mente há alguns dias, no qual um pugilista "cristão" comentou um artigo meu recente, pervertendo grosseiramente o espírito da minha pena. Ainda assim, não me esqueceria de que o missionário de rosto pálido e o aborígene encapuzado são ambos criaturas de Deus, embora suas próprias concepções de Amor Infinito sejam realmente pequenas. Uma criança pequena engatinhando em um mundo maravilhoso, prefiro aos seus dogmas minhas excursões aos jardins naturais, onde a voz do Grande Espírito é ouvida no chilrear dos pássaros, no ondular das águas caudalosas e no doce sopro das flores.

Aqui, em um silêncio fugaz, sou despertado pelo manto esvoaçante do Grande Espírito. Para minha consciência mais íntima, o universo fenomenal é um manto real, vibrando com Seu sopro divino. Presos em suas franjas esvoaçantes estão as lantejoulas e os brilhantes oscilantes do sol, da lua e das estrelas. 
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. American indian stories. Publicada originalmente em 1921. 
(tradução do inglês por Jfeldman)
Disponível em Domínio Público. 
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