domingo, 17 de agosto de 2025

Renato Frata (Folha vazia)

Diante de mim jazia uma folha vazia, solta sobre a mesa escura. Parecia, no seu esplendor branco e intocado, que chamava por mim nesse pretenso abandono e refleti: talvez o exagero de sua alvura se tenha feito pelo reflexo da janela que se deita com ela no tampo. 

Luz e folha, então, compuseram algo: o contraste entre o escuro e o claro fazendo-se notar, atraiu meus olhos e, com eles, o olhar. 

Ou seria minha imaginação?

Há momentos em que a percepção dá às coisas conotação inesperada: a flor olhada todos os dias, repentinamente nos parece mais bela; os olhos dos filhos que se mostram mais brilhantes, e por que não, uma folha displicentemente largada sobre um tampo a pedir por um traço, ou uma letra.

Sim, a folha branca pedia para ser maculada. Meus dedos, olhei-os, se paralisaram para depois se contraírem em rejeição. Gesto desnecessário, já que na estante ao lado havia à disposição, uma caixa com vários lápis. 

À minha frente se estendia a casta folha retangular exposta à luz como a pedir que lhe quebrasse a pureza. Não pretendia ela ser indefinidamente folha sem vida e sem alma, como são as folhas virgens, mesmo se dispostas soltas em tampos de mesa sob o sol da manhã.

Firmei então o olhar para o conjunto do ambiente como se procurasse orientação: a sala que nos abrigava, o sol bisbilhoteiro que a janela invadia, os móveis lustrados que nos assistiam, os retratos que paralisados, nos espiavam a querer enxergar o hoje no tempo que já se foi, a lâmpada pendente em fio estático, os tapetes que riam com suas estampas floridas. O conjunto sensato de um ambiente de lar. 

Ninguém me olhava, conferi. Minhas mãos inertes aparentando incerteza, mendigavam comando de ação e então, levado por um desejo-sentimento, movi rapidamente um braço em direção à estante e peguei um lápis como se o surrupiasse e, instantaneamente, conferi sua ponta, agasalhei-o entre os dedos polegar e indicador. Baixei o punho à mesa e sobre a folha. 

Respirei quieto e compenetrado. Ergui a cabeça para bem enxergar o que iria fazer e, calmamente, risquei a meu modo o que meu veio à mente. 

Intimamente sorri, mas uma sensação de alívio me tomou por inteiro e um coração saído da minha mão para a ponta do lápis se perfez no traço, preenchendo a folha por inteiro.

Vi-o com olhos matreiros, de riso, de encanto, de missão completada. 

O desenho delicadamente traçado naquele corpo branco e desejoso da folha, deu-me a impressão – que loucura! – de vê-la feliz, tomada por igual encanto que coloriam meus olhos.

E aí, como não poderia deixar de ser, senti que meu íntimo estava tomado por aquela percepção estranha das coisas inesperadas, e me vi naquele contentamento, ter reprisado um ato delicioso e bem vivido: o descer de zíper seguido de um lento e sensual despir de vestido e, mais um pouco, um desmoçar desejado e bem realizado.    
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Adobe Firefly 

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