quarta-feira, 2 de abril de 2008

Fernando Gabeira (O Que é Isso, Companheiro? = o livro e o filme, discrepâncias)

No livro “O que é isso, Companheiro?” Fernando Gabeira, narra sua história, e de outras pessoas, que durante o Regime Militar no Brasil estiveram envolvidas em movimentos contra a ditadura.

Por se tratar de um livro de memória, “O que é isso, Companheiro?”, pode apresentar falhas, ocultando e exaltando fatos ocorridos. O texto é escrito em primeira pessoa, e é uma fala solitária, mas ao mesmo tempo, é para o leitor coletiva, pois ele relata fatos ocorridos na sociedade brasileira na década de 60.

No livro, Fernando Gabeira, está sempre questionando sua ação dentro do movimento, ele faz críticas e mostra uma clareza ao questionar o que estava errado no movimento de esquerda brasileira. Isso não ocorre porque ele apresenta superioridade em relação aos outros e sim porque o livro foi escrito dez anos depois dos acontecimentos narrados. Nos anos de chumbo, Gabeira pensava igual aos outros companheiros, que desejavam fazer a sonhada “Revolução”.

Com base neste livro Bruno Barreto dirige o filme “O que é isso, Companheiro?” que apresenta contradições com relação ao livro, é portanto, falsa a idéia de um filme verídico, mas apresenta acontecimentos, datas e nomes reais.

Não é a primeira vez , que a realidade se transforma em ficção, na minissérie da TV Globo “Anos Rebeldes”, exibida em 1992, também apresentou fatos reais, com o extremo ar de romance. Mas existem outras produções sobre o período que não são obras de ficção é o caso do filme “Lamarca”, de 1994, que conta a história de um capital do exército que deixou a farda pela Revolução.

O contexto histórico dos fatos discutidos nesse trabalho, é o ano de 1969, que inicia-se em 13.12.68 com o AI-5, que foi o “golpe dentro do golpe”. O Brasil que já estava vivendo num período autoritário, e agora passa para um sistema rígido, violento e opressor. O seqüestro do embaixador é realizado neste contexto, de prisões, torturas e exílios. A esquerda, em sua maioria, havia entrado na luta armada, e estavam fazendo treinamento em Cuba. E foram realizadas ações contra a ditadura.

O momento era propício para a realização do seqüestro. O país estava sendo governado por uma Junta Militar, pois Costa e Silva afastou-se da presidência por motivos de saúde. “...Divididos sobre a aceitação das exigências do grupo, os militares tinham agora a possibilidade de um ataque direto. A Junta que ocupava a presidência a acompanhava as operações em tempo real, passo a passo: recém-empossada sob contestação de todos os lados, sabia não ter controle total sobre a tropa.” O seqüestro do embaixador foi planejado para a Semana da Pátria, para desmoralizar o e prejudicar a ação do exército.

Seqüestro que foi realizado pelo MR8, nome adotada para confrontar com a repressão que havia divulgado uma nota que o grupo terrorista MR8 estava eliminado, mas Movimento Revolucionário 8 de Outubro era apenas o nome do jornal. Então a Dissidência da Ganabara, resolveu adotar o nome, e por ser um grupo com pouca experiência na luta armada, pede ajuda a ALN de Carlos Marighella para realizar o seqüestro.

O filme O que é isso, Companheiro?, é uma ficção a partir de fatos reais do seqüestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. “ Como disse a atriz Fernanda Torres ao jornal O Estado de S. Paulo (01/05/97,p.D-7): ‘Precisamos atingir os jovens, eu não aprendi nada disso na escola, o cinema tem que ajudar o brasileiro a descobrir a complexidade da história recente do país.”

Em duas entrevistas Bruno Barreto se contradiz, pois em uma ele fala que fez um filme para os jovens que não viveram a época e necessitam conhecer uma história recente do país, e em outra entrevista fala que fez o filme pensando em mostrar aos norte-americanos o seqüestro do embaixador deles no Brasil na década de 60. Na realidade ele estava interessado em ganhar um Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não poderia utilizar cenas reconstituídas no mesmo padrão de imagem da época, ou seja, ele inicia o filme em preto e branco, e ainda coloca uma legenda falando que se trata de uma história verídica, produzido como se fosse um filme norte-americano.

O filme é destinado ao entretenimento da massa e esquece o seu objetivo de relatar a verdade dos acontecimentos, o cinema apresenta aos seus espectadores uma história e uma cultura, fictícia ou real, tendo coerência em separar um do outro, no caso do O que é isso, Companheiro? A ficção se mistura com a realidade, contrariando a história de vida de pessoas que se vêem retratadas no filme. É um filme de alta produção, como esse, deixou muito a desejar, ele se preocupou com a forma e esqueceu o conteúdo. Bruno Barreto tem liberdade de criação em seus filmes, mas não se utilizar de fatos e imagens de pessoas, para ter bilheteria, pois é um filme produzido nos moldes da indústria cultural.

No filme “O que é isso, Companheiro”, Fernando Gabeira se destaca em relação aos outros personagens , ele é o mais sensato e inteligente dos militantes que participavam do seqüestro do embaixador. Tanto no livro como no filme a idéia do seqüestro é Fernando Gabeira, mas na realidade foi de um outro companheiro, Franklin Martins. E eu pergunto a Gabeira: “O que é isso, Companheiro?” O plágio não era crime em 69? Mas não ficou por aí, ele também assumiu a autoria do manifesto divulgado nos meios de comunicação, que o Franklin escreveu.

Em uma entrevista dada a Folha de S. Paulo, Bruno Barreto justifica-se dizendo “...Eu tomei certas liberdades com o personagem do Gabeira só para ele ter alguma qualidade. Ele não sabia dirigir, não sabia atirar, se não soubesse escrever, o que estaria fazendo ali ...”, fico abismada que nem escrever ele não sabia! Fernando Gabeira só ficou sabendo da ação no dia do seqüestro, pois o embaixador ficaria na casa que ele alugou para sede do jornal do grupo. Então por que assumir uma coisa que nem ia participar? Um outro ponto, que não mencionei, é que no filme começa com uma passeata, onde Fernando Gabeira estava participando, mas no livro ele conta que estava observando da janela do Jornal do Brasil, onde trabalhava.

Existem outros detalhes no filme, o assalto a banco é mostrado somente com o objetivo de juntar dinheiro para a realização do seqüestro, mas na realidade os assaltos eram feitos para garantir sobrevivência da clandestinidade e também como uma forma de protesto contra o sistema autoritário e o imperialismo. No livro Gabeira conta que ele seguiu os militares que estavam vigiando a casa em Santa Tereza, mas no filme fica ridículo esta encenação. Um outro ponto que chama a atenção foi a compra dos frangos, numa época de recessão e também repressão, que boa parte da população estava auxiliando os militares em perseguir os “subversivos”, como uma pessoa compraria doze frangos e mostrando muito dinheiro no bolso não levantaria suspeita? No Brasil atualmente nem todas as casas tem telefone, e na época só os mais privilegiados possuíam, então porque colocar telefones em todas as casas como nos Estados Unidos?

O plágio não é o único problema, a própria personalidade dos personagens está distorcida, Bruno Barreto utiliza nomes, codinomes e descrições dos verdadeiros participantes do seqüestro, só que de forma diferente, o mais prejudicado é o personagem Jonas, (Vírgilio Gomes da Silva), um operário, militante da ALN, que trouxe sua experiência na luta armada para a realização dessa ação em conjunto. O filme mostra um homem violento, calculista que mataria um companheiro caso esse enfraquecesse, e deu ordem ao Paulo personagem de Fernando Gabeira, de matar o embaixador caso as exigências não fossem aceitas. Jonas não tem nada a ver com o personagem primitivo do filme, segundo seus parentes Jonas era um homem calmo.

Bruno Barreto é extremamente preconceituoso, pois coloca a imagem distorcida de um pessoa devido sua classe social, um operário e coloca um intelectual no alto.

Bruno Barreto faz isso também com o personagem feminino da história, Vera Sílvia Magalhães, "... Foi ela que, então com 21 anos, fez o levantamento da ação, tendo também participado diretamente do seqüestro, na cobertura logística. Vera, porém, não permaneceu dentro da casa em Santa Tereza - nenhuma mulher ficou -, mas acompanhou os acontecimentos passo a passo, por intermédio de alguns companheiros que entravam e saíam. No filme, ela seria a fonte de inspiração das personagens de Cláudia Abreu(que faz o levantamento da ação) e de Fernanda Torres, que, como Vera, deixa o país com as pernas paralisadas - quando de sua libertação em troca de embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (seqüestrado em 1970), junto com mais 39 prisioneiros políticos -, em conseqüência das violentas torturas que sofreu na cadeia."

A relação de preconceito neste fato, reduz a utilização do corpo feminino para obtenção de favores, Vera utilizou de encantos femininos para obter as informações sobre a rotina do embaixador, mas nunca teve nenhuma relação com o segurança, como mostra no filme.

Um outro ponto importante, é que Bruno Barreto mostra no filme um conflito entre um torturador e sua esposa, este militar fala a um outro amigo militar se ele consegue dormir depois do trabalho, e ele fala que sim. Ele tenta demonstrar que o torturador também tinha uma história, uma família, e ficava com a crise de consciência, e por sinal o torturador que se sentia bem no trabalho que fazia, que era torturar os “subversivos”, era negro, outro fato de preconceito.

Com relação a tortura em si, o filme ficou devendo, pois, no livro Gabeira conta alguns detalhes sobre os porões do Dops, fala do tiro que levou quando foi preso, como ele fazia para enganar os torturadores para não contar detalhes do seqüestro, fala das suas transferências, conta a história de um militante que resistiu até a morte e antes de morrer conseguiu atingir um torturador, ferindo-o muito, todos dentro da cadeia ficou sabendo desse fato, e esse preso era justamente Vírgilio Gomes da Silva, o companheiro Jonas, e no filme Bruno Barreto mostra um lado tão simplório da tortura, ele faz questão de mostrar que os torturadores eram bonzinhos, que a tortura não eram tão violenta como na realidade foi. Em comparação com o filme Lamarca, que mostra bem como era feita a tortura, quando ele coloca um pau-de-arara um homem nú o expondo a humilhação, ele sofre violentos choques elétricos no seu órgão genital, e quando este vem a falecer depois de tanto sofrimento, o comandante da ação fala que a causa da morte, “atropelado quando resistia a prisão”.

A frieza dos militares é bem retratada nesse filme, o esquema do exército, suas influências e sua violência. E Bruno Barreto deixa de lado essa questão, com relação ao exército ele só mostra dois comandantes, que fazem tudo desde as ordens, a prisões e a tortura. Segundo Renato Tapajós, “ A tortura pode ser uma decisão racional para os altos escalões de comando, que decidem permiti-la ou aceitá-la como método e são capazes, inclusive, de mandar trazer assessores internacionais para divulgar técnicas ‘modernas de tortura entre seus comandados. No entanto, no escalão do torturador, daquele sujeito que põe a mão na massa, a tortura significa infligir for, humilhação e talvez a morte a outro ser humano. Ela acontece em meio a gritos, sangue, cheiro de sangue e de suor, o fedor insuportável do medo, freqüentemente urina e fezes - porque o medo e a dor soltam bexiga e intestinos...a tortura é a negação do humano - e essa é a chave da sua eficácia...”

Bruno Barreto compreende as razões do torturador, de um certo modo defendendo-o, quando na realidade eles não passem de criminosos, no Brasil e não existe punição para esses crimes, todos sem exceção deveria ir para a justiça, tanto os torturadores, o alto escalão do exército e os políticos que apoiavam a ditadura.


“ Frente a todos os perigos, frente a todas as ameaças, as agressões, aos bloqueios, às sabotagens; frente a todas os divisionistas, frente a todos os poderes que tratam de nos enfrenta, temos que demonstrar, uma vez mais, a capacidade do povo para construir a sua história.”
Ernesto Che Guevara


A capacidade da classe dominante apagar a memória e a esperança do povo pela luta de seus direitos, é incrível. Com uma simples distorção da história, ela pode mudar a capacidade de raciocínio da maior parte das pessoas.

Fonte:
Adriana De Oliveira Costa. Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”
Faculdade De Ciências E Letras. Departamento De Sociologia. Araraquara, 1997.

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