quarta-feira, 2 de abril de 2008

Imaginario Popular (Quero-Quero)

Nos velhos tempos, passados, quando estas coxilhas, estes campos, estas várzeas, não eram de ninguém havia um índio dos Tapes, chefe de tribo, valente, que tinha um filho pequeno, guri assombro da idade.

Vai um dia, o indiozito se chega ao pai e lhe pede:

— Pai, eu quero lutá na primeira peleia que gente nossa peleá...

O índio velho mirou o filho de cima a baixo e lhe respondeu com ar carrancudo:

— Filho, muito pequeno! Guri não é pra peles!

— Pai, eu já sei montá cabaiú... eu quero peleá!

— Guri não é pra peleia!

E o piazito insistente, já com borbolhas nos olhos, quase explodindo num choro, tornava a implorar ao pai:

— Pai... eu já sei atirá incupuiá! Eu quero... eu quero peleá!

— Guri não pensa em peleia... Guri vai ajudá prantá abati!

E o velho chefe, erguendo o braço com firmeza, indicou o mandiocal, para onde o piazito se foi correndo, dizendo sempre a chorar...

— Eu quero... eu quero peleá!

Eu quero! Eu quero! E o indiozito, na sua obsessão guerreira, voltava por vezes a implorar, para que o pai lhe deixasse um dia tomar parte, num intreveiro sangrento. — Eu quero! Eu quero! E de tal forma repetia este pedido, que acabou grangeando o apelido de quero-quero, entre os índios irmãos da tribo, que achavam graça ao vê-lo tentando convencer o velho pai, a deixá-lo um dia pelear.

Mas, vejam só como são as coisas:

Um dia, gente estranha invadiu o pampa, e fio então, que a indiada revoltada, alçou a perna no pingo e se atirou na luta, em defesa de seus direitos, que só Deus lhe poderia quitar! E impeçou refregas... as refregas medonhas, seu! E foi numa dessas heróicas e fatais refregas, que o causo se deu.

Seguindo a pista do inimigo, a horda havia acampado numa várzea estreita, para um descanso ligeiro. Há muitas luas a guerrilha era constante. O inimigo já em fuga... alquebrado... quase derrotado... seria fácil alcançá-lo e liquidá-lo de vez. Toda a tribo então dormia, inclusive as sentinelas, que fatigadas e de certo confiantes na calma da noite e fiados na fraqueza do inimigo, se haviam entregado ao sono profundo. Foi quando a lua, destapando na coxilha, estendeu pela beira da encosta, a silhueta de um vulto. Era... era o gurizito... o indiozito... o mania de peleador... o Quero-Quero.

Sim, senhor. Pois não é que o teimoso, que havia ficado nas "casa", por ordem do pai que vinha em luta e lhe proibira de segui-lo, não pôde resistir às ganas e mal a oportunidade lhe sobrou, largou-se atrás da horda guerreira. Não lhe foi difícil alcançá-la, pois já montava muito bem o cavalo, como ele próprio dizia, assim foi que, gineteando um alazão fogoso, chegou a borda da colina, e, apeando, pra não alarmá ninguém, vinha se chegando a los passitos, rumo ao acampamento adormecido. Mas, veja só! Foi, parece, o destino, quem trouxe o diabinho ali. O inimigo astucioso e traiçoeiro, voltando cautelosamente, vinha surpreender os índios descuidados, numa emboscada fatal. E foi justamente quando o piazito chegava e ao olhar para trás, como a medir a distância, avistou de relancina, aquilo que lhe fez gelar o sangue nas veias: a força traiçoeira que já vinha em riba, na iminência do golpe.

O indiozito não vacilou. Pulando ao lado do pingo, abriu a boca e gritou... gritou com toda a força da goela:

- Pai! Irmãos! Alerta! O inimigo!... O inimigo!

Amigo, foi água na fervura! O inimigo cruel, impiedoso, atacou! A primeira vítima foi o guri.

Depois... bueno, depois quando as barras do dia impeçaram a surgir, aquela várzea tava que era uma sanga de sangue! O descuido da horda, proporcionou ao inimigo uma oportunidade tremenda. Só se via no campo da batalha, índios estendidos, mortos... outros agonizando. E, apontando aqueles corpos sangrentos, haviam pontas de lanças, coloriando de sangue indígena. E isso que os índios pelearam, seu! Mas, ali, bem na beira da coxilha, estirado na relva úmida, de braços abertos, cara virada pro céu, tava o gurizito valente... o Quero-Quero, dentro duma poça de sangue, morto... com a boca entreaberta, como se um grito de luta, lhe pairasse ainda nos lábios.
E é aí que conta que o mistério se deu. — Quando o sol apontou os primeiro raios dourados, o corpito que parecia sem vida, foi aos pouquitos se mexendo... se mexendo e, daí a alguns instantes, o gurizito valente, ia aos poucos se firmando de pé. Depois, passando a mão pelos olhos, como quem sente fumaça, olhou a coxilha, olhou a várzea e aí, com o olhar reascendido numa gana feroz, desceu, meio de arrasto, pra várzea e, chegando junto ao pai morto, agarrou duas pontas de lança coloradas de sangue, botou-as debaixo dos braços e, mirando a ponta da coxilha, com voz moribunda, mas firme, gritou com fero entusiasmo:

— Eu quero! Eu quero pelear! Eu quero!

E ao último grito de quero, tombou... tombou pra sempre. E de seu corpito inerte, elevou-se então uma sombra enfumaçada que aos poucos foi se tornando clara até tomar a forma perfeita de um pássaro que abrindo as asas elevou-se soltando gritos de Quero! Quero! — Vontade talvez que lhe ficou de lutar, aviso, quem sabe, pra que o gaúcho, sempre alerta, não fosse nunca mais atraiçoado.

Fonte:
Costa, Dimas. "Quero-quero". O Dia. Porto Alegre, 17 de fevereiro de 1957

Nenhum comentário: