quarta-feira, 2 de abril de 2008

Imaginário Popular (Estórias de João Alfaia)

Com a finalidade de registrar algum material sobre estórias, causos ou contos folclóricos, gravamos em diferentes coletividades da região investigada, para a Campanha de Defesa ao Folclore, exemplares desses relatos orais narrados por contadores conhecidos como tais nas mencionadas coletividades. Dessas gravações releva notar, pelo caráter dramático que assumiu a narrativa, a que teve lugar em Cabelo Gordo, um bairro de São Sebastião (SP).

Lá havíamos ido de barco pensando em pesquisar um fandango, que tínhamos programado de acordo com João Ramos de Morais, mas que por razões ignoradas ou pelo menos não explicadas suficientemente deixou de se realizar. Passamos então, a tarde a andar de lá para cá, tratando de ver se ainda conseguiríamos algo, para aproveitarmos a viagem. E ao cair da noite, enquanto esperávamos o caminhão que nos levaria de volta a São Francisco, onde estávamos hospedados, ficamos conversando com João Ramos de Morais, apelidado de João Alfaia, que se revelou para nós um extraordinário contador de estórias.

João Alfaia, como é mais conhecido, é um homem de perto de 70 anos, de cor branca, crestada de sol, que trabalha como pescador e também exerce as funções de zelador de um laboratório de pesquisas montado em Cabelo Gordo pela faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo. Forte, enxuto, muito vivo e inteligente, é capaz de ficar horas a contar estórias, dramatizando-as na voz, nos gestos e na máscara facial e assumindo, por isso, importante função social no meio em que vive pela força aglutinadora da sua narrativa.

Conhecidíssimo na região e participando inclusive com o próprio nome de pasquins, João Alfaia nos ofereceu a primeira oportunidade de gravar importante documentário, pelos espécimes de literatura folclórica em prosa da região, pelo caráter da narrativa e também como exemplos da linguagem de um autêntico caiçara que ele é, com antiga ascendência portuguesa.

O breve do lenho de Cristo

Um homem caiu doente, né? com reumatismo. Entrevou na cama. Não podia trabalhar. Então, foi indo, foi indo, mais ele com muita amizade com o compadre. O compadre podia, era rico, e a mulher, num sei lá, um sofrimento que teve que foi preciso fazer uma promessa à Itália, a romaria né. E ela ficou boa. Então foi a rimaria.

Então, daí, o compadre veio na casa dele:

— Compadre, olhe aí, eu vou pra Itália. Vou fazê uma romaria.

Então ele disse assim:

— Compadre, eu vou lhe pedi um favor, me traga um pedacinho da cruz de Cristo, do lenho de Cristo, num é, pra eu fazer um breve pra vê se eu fico bem.

Chegou lá, fez a romaria dela, cumpriu a promessa dele, quando ele veio imbora, esqueceu-se do pedacinho, de pedir lá o pedacinho do pau, do lenho de Cristo. Quando ele viu, disse à mulher:

— Mais que esquecimento.

A mulher:

— Do que você se esqueceu?

— Me isquici.

— Se esqueceu de arguma coisa que num pôs na mala?

— Não é, me isquici da encomenda de meu compadre. Um pedacinho do lenho de Cristo. Eu num truxe. Mais num tem nada, ele fica servido da mesma forma. Eu vou cortá um pedacinho do barco.

Tava cum canivete, cortou.

E havia fantasma nesse lugar que eles morava, né? Aí, ele chegou, descansou, esse dia foi lá.

— Compadre, bom dia.

— Bom dia, compadre, como vai o sinhô?

— Ah, compadre, eu aqui todo encorcolado. Todo danado, mesmo, num posso me levantar. Trouxe minha encomenda?

— Ah, tá aqui, compadre, ah tá aqui, olha aí, um pedacinho da cruz de Cristo. Eu pedi ao padre e o padre me mandou cortar. Está aqui.

— Oi mulher, venha cá. Oi mulher, me faz um breve.

Então, ela fez um breve, cortou um pedacinho de pau, fez o breve, costurou no pescoço. Logo noutro dia foi sintino a melhorar, e sintino, e sintino, e sintino, que era de hora em hora, de passo em passo aqui antes de dois meses ele apruma-se. Aprumou-se.

Ele morava num lugar, num subúrbio, mas pra ele ir lá na freguesia passava na serra, né? E ele tudos os sábados ia fazer o negócio dele. Carregava o burrinho de mercadoria e ia fazer a compra dele lá. E assim foi indo, quando foi um dia ele foi, de tarde. Chegou lá e fez a compra dele. Anoiteceu, pegou os amigo dele:

— Pois é, mas você vai agora?

— Vou, vou porque tenho medo de ficar aqui, porque minha mulher tem cuidado. Sou obrigado a ir. E foi. Chegou no meio da serra, olha a bicha pra frente: a fantasma. Apareceu, foi crescendo e ele:

— Olha lá, tô perdido. E foi indo, foi enfrentando, enfrentando. Quando chegou foi quase, chegou pertinho, ela foi dobrando, e veio vindo, veio vindo, quando estava meia braça pra chegar em cima dele, pra esbagaçar com ele, ele tirou o breve e afirmou-se contra a visão, a visão chegou e respondeu pra ele:

— É, tás salvo, mais vale a tua fé, porque o pau é do barco.

Pedra de cevar

Tem samambaia também. Conhece a pedra de cevar, que faz casar velho com moça, moça com velho, eles casam que a pedra de cevar obriga.

É arte do diabo em diabólica. Ele quer ser vintorioso, faz casamento, né? E faz um preto casar com branca, uma branca casar com preto, a pedra de cevar é do diabo. Porque Sexta-feira da Paixão tem a samambaia. A samambaia é um arvoredo que dá no mato. Ela então faz assim. Sexta-feira da Paixão de manhã, ela dá o botão, às 10 horas do dia ela vinga a flor, num é? às 4 horas, ela tá ali, ela tá verdulenga, querendo amadurecer, num é? Quando chega às 10 hora pra meia-noite, meia-noite ela amadurece, tá podre. Agora, o sinhor quer ter a pedra de cevar: é aquela fruta. É o diabo, né? Agora, abre em baixo do pé da samambaia, abre uma toalha e acende quatro vela. Está ali quando chegar meia noite, antes da frô cair, a fruta cai, tem uma voz que responde. Quando a fruta cai que chega na toalha, ele pergunta: — Quem pega!

O senhor tem coragem: — Pego eu.

Segura. Aí, ele vem brigar. Uma briga pá danado, né? É rastera, é cabeçada até outro dia. E vá se desviando dele, né? Vá se desviando, porque quando o galo canta ele desaparece. Aí está a pedra de cevar. Aí dá sorte. Ele come uma agulha por dia, uma agulha de aço. Porque é diabólica. Faz um breve, bota ela e pega aquela agulha põe dentro do breve ela chupa. Outra de vinte em vinte e quatro hora. Assim conserva que ela fica vinturosa. A samambaia a que ele se refere é um pé de jiçara, como um palmito, é samambaia da jiçara. A jiçara o senhor nunca vê com fruta. A fruta da jiçara só dá na sexta-feira da Paixão, a jiçara floresce e aí é a pedra de cevar.

O diabo ensina a tocar viola

Os tocadores que não sabem tocar, então eles espera pela Sexta-feira da Paixão. Sexta-feira da Paixão, ele vai na venda, de manhã, compra uma viola, que nunca ninguém pegasse. Compra na venda um encordoamento, encordoa aquelas dozes cordas, deixa direitinho e quando chega essas horas, assim, põe numa encruzilhada. Quando chega lá pela meia-noite, afina aquela viola que deixa que nem um sino, deixa direitinha, começa a tocar e cantar todas as espécie de música e o sujeito tá ali, espiando, né? Agora, quando antes do galo cantar, que vê que ele num pode, num pode está ali, ele pega na viola e vem brigar co home, né? Briga, luta daqui, luta dali, quando o galo canta a primeira vez ele larga e vai embora. Quando é outro dia tá o tocador. O moço vai tocar, tá tocando que nem o diabo.

Fonte:
Estória de João Alfaias. In LIMA, Rossini Tavares de (e outros). O folclore do litoral norte de São Paulo; Disponível em http://www.jangadabrasil.com.br/

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