quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Carlos Leite Ribeiro (Este Nosso Bairro)


Minha boa amiga, como hoje está a chover e não podemos sair, podíamos coscuvilhar aqui mesmo à nossa porta...

Olhe que este nosso bairro precisa de dar uma grande volta! Olha que precisa, precisa, pois antigamente, não se viam coisas como estas que hoje se veem. 

Sabe que no outro dia, a Isaltina (que é uma verdadeira fera para a filha), implicou com ela por causa de um refrigerante que tinha guardado num dos armários da cozinha? 

- Micas, aonde está o refrigerante que estava aqui, ainda ontem?

A moça corou muito, pensou, e como pode respondeu-lhe: 

- Minha mãe, despejei-o hoje... 

Logo a mãe quis saber "aonde". A Micas já mais confiante, replicou com ela: 

- Tu também queres saber tudo. Olha, despejei-o na sanita.

Coisas chocantes, chocantes, como vês minha boa amiga!
*****

Também a Francelina perguntou à filha: 

- O que aconteceria se tu estivesses grávida?

O que a filha logo lhe respondeu: - 

- Era um grande problema, minha mãe, pois, não sabia quem era o pai.
Isto sem comentários!
*****

Olha, a Emengárdia comentava no outro dia, em altos gritos: 

- O raio do gato comeu o bife que era para o meu marido. O que é que o pobrezinho agora vai comer?

Logo o inocente do seu filho, o Ernestinho, a aconselhou: 

- Agora, o papá terá de comer o gato…

Como vês, minha boa amiga, cá no bairro é tudo tão inocente.
*****

A calhandreira da Rita, comentou com uma vizinha: 

- O meu canário farta-se de cantar quando eu estou calada. Não sei o que lhe hei-de fazer? A vizinha ouviu, ouviu, pensou e depois aconselhou-a: 

- Olhe vizinha, fale você para ver se o canário se cala.

O certo é que o canário nunca mais cantou.
*****

Ai, antes que me esqueça: O Bertolino, aquele que anda sempre "vinicamente bêbado no outro dia entrou em casa em altos berros: - Sou um puro sangue - sou um cavalo de corrida!. 

A Venância, a companheira que está com ele, logo lhe perguntou: 

- Para tu seres um cavalo, o que serei eu? 

O descarado olhou para ela com desdém e, entre os dentes, sarcasticamente, respondeu-lhe: 

-Tu é que sabes, mas é conveniente que sejas uma égua…

Como vês, minha querida amiga, é preciso ter um grande descaramento. Isto só no nosso bairro!
*****

E a Leonilde, que no outro dia entrou no café vestida não sei de quê, e o Roberto, que tem a mania de ser esperto, perguntou-lhe: 

- Olha lá, tu estás mascarada de quê? 

A Leonilde olhou para ele com desprezo e logo lhe respondeu: 

- Estou mascarada de Lady Godiva!

Como o Roberto que não é estúpido de todo, voltou à carga: 

- Para isso tens o cabelo muito curto! 

Ela sorriu e retorquiu-lhe: - 

- É por isso que estou toda vestida.

Enfim, minha querida amiga!
*****

E a Micaela, que começou a andar em volta de um canteiro, em volta de um canteiro, e quando lhe perguntaram o que andava a fazer, respondeu: 

- Ando a ver se encontro o centro da gravidade…

Vê lá tu, minha boa amiga, como ela ainda tivesse o “centro da gravidade"!

Neste mundo ainda existem pessoas muito desavergonhadas, como por exemplo, a Felismina, que na semana passada perguntou à Márcia como estava o marido. Ela, naturalmente, respondeu-lhe que estava bem. Foi então que a desavergonhada lhe atirou com esta: 

- Minha querida amiga, o que é que acontecia, se eu aparecesse toda nua ao pé do teu marido?!

A Márcia, não ficou nada contente com a pergunta. Pensou um pouco e em tom de gozo, retorquiu-lhe:

- Com certeza que o meu marido morreria de susto ao ver uma mulher tão malfeita

A Felismina sorriu desavergonhadamente e, secamente, respondeu-lhe: 

- Mas tu ainda agora mesmo disseste que ele estava vivo…

Ho minha querida e boa amiga, isto só à bofetada, só à pancada!

*****
Mas a melhor é a daquela Isabel, que tem a mania de ser púdica. Comentava noutro dia com a mãe: 

- Não sei aonde ontem meti os collants?

A mãe, tentou lembrar a filha: 

- Olha, minha filha, talvez as tivesses perdido…Como ontem o teu patrão te deu boleia, não te lembras? 

A filha logo concordou: 

- Tens razão mãe - e logo acrescentou: 

- Mas olha que não é o que tu pensas. Eu só tirei os collants... Porque, porque a correia da ventoinha se estragou e eu enrolei-as na poli, compreendes, na poli. - A mãe encolheu o nariz, e continuou: "

- E o que é que aconteceu às calcinhas? 

A filha ficou muito atrapalhada e, como pode, respondeu-lhe: 

- Agora me recordo, tirei-as para limpar o para-brisas, pois estava a chover…

Ai... Isto de mulheres... Os homens que as aturem! 

Nota: com tudo os gostos que as aturamos (pelo menos é a minha opinião.)

Fonte:
O Autor

Lêdo Ivo (Poesia Breve)


Ilustração: Robson Vilalba

A SÍLABA

O mundo inteiro cabe numa sílaba
e nela me refugio
para esperar a aurora.

Aprendi que Isto é Aquilo.
Não preciso aprender mais nada.
Já sei o essencial.

A noite guardou as chuvas de verão
e agora amanhece.
O dia é um voo de pássaro.

O DIA DOS HOMENS

Viver é preciso.
Não existe Inferno
nem Paraíso.

Apenas o chão.
E uma persistente
chuva de verão.

PRESSA JUSTIFICADA

Os mortos vão depressa
e a explicação é simples:
todos os cemitérios
devem fechar às cinco.

A MORTE DE UM ESTILISTA

Sua prosa era lapidar
e a morte o surpreendeu quando
estava castigando o estilo.
Na missa de corpo presente,
no recinto acadêmico
foi comparado a Camilo.
E seus pares derramaram
lágrimas de crocodilo.

OS DOIS TEOLÓGOS

“Se tudo é permitido,
não há liberdade”,
ponderava o poeta
na mesa do abade.

O ALCOÓLATRA

“Bebo porque Deus não existe”,
dizia o alcoólatra, mirando
o mundo com seus olhos tristes.

PARADA DE ÔNIBUS

Nas filas dos ônibus, quando anoitece, e o nada
[recolhe ao seu arquivo mais um dia jogado fora,
um cigarro entre os dedos é tudo o que resta
da iracunda piedade que o homem tem por si
[mesmo.

LAMENTAÇÕES DE CAMÕES

Fui amor, fui paixão e celebrei
o mundo, o vento e as ilhas infinitas.
Mas hoje, neste quarto centenário,
me assombra o meu destino.
Linguistas e filósofos fizeram
de mim uma apostila.

QUEIXA DO EDITOR DE POESIA

“Poesia não se vende,
ninguém a entende!”
− suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.

A TRAVESSIA

Quem ia na balsa
que, naquela noite,
atravessou o rio?
Vestida de preto,
era a própria Morte
morta de frio.

TEMPORAL NOTURNO

A chuva desta noite
pousa no meu sonho.
Pássaro molhado.

OHIO

O céu de Ohio é azul e branco.
A neve de Ohio é azul e branca.

O sol apaga as estrelas caídas sobre
[ os dormentes da ferrovia
por onde passam trens cheios de leite e milho.

Pousado no castanheiro, um pássaro azul
não segrega o seu canto.

ESTAÇÃO DE TRATAMENTO

A gaivota
sobrevoa
o semáforo.

Nenhum rumor da água.
Nenhum frêmito de alga.

Apenas os esgotos
lançam no leve oceano
o sigilo da vida.

O LAGO HABITADO

Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

NOITE DE DOMINGO

Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.

A INSPIRAÇÃO

Não creio na inspiração,
essa bruxa radiosa
que sopra a canção
e te faz alegre ou triste.
Mas que ela existe, existe!

Fonte:
Lêdo Ivo. Poesia Breve. Brasília/DF: Poexílio, 2012.

Tatiana Belinky (Crônica para Dona Nicota)


Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê-lo aceitar tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e — ora vejam! — ele respondeu com um sorriso ao sorriso da dona Nicota!

— Vem ficar aqui comigo — ela disse. 

— Você vai gostar. — E acrescentou, para minha surpresa, — Eu mesma vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.

Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma "aula particular", em casa – para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo...

O Ricardinho adorava a dona Nicota — e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda encarnação da "professora primária" ideal — a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real — com competência, dedicação, compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para o futuro cidadão.

Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los nesta "crônica-tributo" a dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora "montessoriana" e um grande ser humano.

Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.

Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Celso Sisto (“Obax”, de André Neves)


Do artigo de Celso Sisto, “Imaginação de elefante”, do site www.artistasgauchos.com.br

 NEVES, André. Obax. Ilustrações do autor. São Paulo, Brinque-Book, 2010. 36p.

 Inventar histórias preenche o tempo e a vida. Traz brilho para os olhos, aumenta a nossa experiência com aventuras! Faz a gente treinar brincadeiras e conquistar amigos! E pronto, estamos prontos para sermos felizes!

 A pequena Obax, que vive nas savanas, é solitária e destemida: corre pela planície, vive aventuras e depois conta para todo mundo. Mas, ninguém lhe dá muito ouvidos! Suas histórias são mágicas e os outros às vezes caçoam dela. Um dia, ela tropeça numa pedra em forma de elefante e decide sair pelo mundo em busca de provar a verdade das histórias. Nas costas do elefante Nafisa, Obax dá a volta ao mundo e retorna ao ponto de partida. Cheia de novas histórias, que ninguém acredita. No dia seguinte, ali perto, nasce um baobá, para confirmar que as histórias são sempre possíveis de acontecer. E servem para, no mínimo, fazer sonhar, fazer crescer!

 O livro é lindo! Enxuto, ágil, sem, contudo, deixar escapar nada de essencial. O encantamento começa com a sonoridade do nome da personagem Obax e se derrama pelas paisagens, pelos elementos da savana, pela rica imaginação da menina, pelas pinturas das casas, pelas costas do elefante Nafisa, pelo forte baobá, pela chuva de flores, pelo poder que tudo tem de se transformar.

 Obax significa flor e Nafisa, pedra preciosa! O livro tem essa aura perfumada e preciosa, do início ao fim, e o leitor pode acompanhar o exercício imaginativo da menina, enquanto vai percebendo que nas entrelinhas, outras coisas se avolumam: a necessidade que todo mundo tem de ser aceito pelo seu grupo; a poesia singela que a natureza oferece, mesmo nos lugares mais áridos; o silêncio revelador; o convívio intenso com uma fauna que não é a mesma do lugar em que vivemos; até mesmo a ironia daqueles que não estão acostumados a imaginar.

 Os elementos das culturas africanas também vão se revelando em tudo isso, principalmente nas cores e grafismos que predominam nas ilustrações, na vegetação do lugar, e também nos birotes da menina. Os penteados africanos são verdadeiras obras de arte, e esse que reúne os cabelos no cocuruto da cabeça, leva o nome de birote ou pitote. Mas o autor avisa: esta não é uma história recontada da tradição oral, é uma história totalmente inventada, com liberdade e conhecimento!

 E então, o tempo dá um salto no final da história e remete o leitor para um futuro indefinido, no qual o sonho é o grande Senhor das histórias, oferecidas mesmo por um majestoso baobá.
 As ilustrações deste livro brincam como se fossem lentes, que aumentam ou focalizam detalhes, recortando partes e pedaços que são importantes de perceber. Os vermelhos e amarelos predominam nas páginas, e em contraste com o branco, produzem um impacto ainda maior. E as figuras de André Neves tão fiéis a seu estilo (afiladas, esculturadas, de olhos puxados) se fundem com perfeição às texturas e às aplicações de colagens.

 O livro acaba de ganhar o prêmio Jabuti, nesta 53ª edição, na categoria Infantil.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=615

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 767)



Uma Trova de Ademar  

Quando a inspiração me envia 
a um cenário de beleza, 
eu dou beijos de poesia 
na face da natureza! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Quando pela vida passas,
displicente e linda assim,
o mundo, sem tuas graças,
perde a graça para mim.
–Gabriel Bicalho/MG– 

Uma Trova Potiguar  

Quando eu morrer, vou assim: 
sustendo meu coração... 
Saudade da Terra? Sim! 
Saudade da vida? Não! 
–Auta de Souza/RN– 

Uma Trova Premiada  

2008   -   Caicó/RN 
Tema   -   ESTRADA   -   10º Lugar. 

Caminho, mantendo acesa
a chama da sensatez,
na estrada em que, com certeza,
não passarei outra vez!
–Therezinha Brisolla/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Bebo na fonte sagrada, 
de onde vêm os versos meus. 
Sem ela, eu não faço nada... 
-Esta fonte, amigo, é Deus! 
–Francisco Macedo/RN– 

U m a P o e s i a  

Nossas conquistas são feitas, 
o mundo é nosso cartório, 
a vida é um laboratório 
de diferentes receitas, 
as lágrimas não são aceitas 
como nossos risos são, 
serenidade é canção 
na voz que Deus abençoa; 
passa a vida o tempo voa 
nas asas da ilusão. 
–Geraldo Amâncio/CE– 

Soneto do Dia  

SER TÃO SERTÃO. 
–Rachel Rabelo/PE– 

No trajeto vislumbro tais belezas 
das paisagens de luz deste sertão, 
que são típicas desta região 
completando meu ser de sutilezas. 

O teu povo traduz as realezas 
conquistadas nas artes da paixão, 
na poesia que vem do coração 
retratando histórias e certezas. 

Lá teu sol nasce já metrificado 
vem na chuva um canto ritmado 
entoando os ensaios da natura; 

tua noite tem brilho diferente 
que envolve num manto transparente 
as sementes da arte e da cultura!

Isabel Fontoura (Penhascos)


 Sou um ancião e sempre vivi na Chapada Diamantina, alojado entre grutas milenares que tremeram com a passagem da Coluna Prestes e com os tiros de Lampião. Sei das riquezas que estas cavernas escondem e das lendas que criam vida no ouvido das crianças.

 Garimpeiro de muitas lavras, sonhava encontrar diamantes e uma gema tão sólida que eternizasse a minha história. Lendas de um homem que encontrou a prisão e a alforria junto às pedras preciosas.

 Trabalhava dia após dia no garimpo para um coronel da região. Era parte do ofício envenenar os rios e matar os peixes em uma guerra de peneiras e dragas no ventre da terra, contudo, entre mercúrio, marte e a morte encontrava apenas cascalhos. O patrão ficava furioso e me castigava por achar que estava sendo roubado, não queria acreditar que naquela fazenda nada havia de valioso.

 Uma noite, enquanto dormia, a Santa veio me visitar, desde que me tornei órfão, ainda pequeno, escolhi Nossa Senhora como minha madrinha, e ela me mostrava uma gruta iluminada à beira de um precipício, uma trajetória para os diamantes.

 Lavrei com vigor, o sonho não me deixava, larguei minha peneira e subi córrego acima, andei umas duas léguas beirando o rio, nenhum capataz reparou e deparei-me com um penhasco, desci escorregando entre pedras e lamas até chegar ao começo da lapa. A entrada era sombria, o cheiro entorpecia-me, um bando de aves das cavernas esvoaçou sem me tocar, o medo assolou-me, nunca ouvira falar naquela gruta, todavia eu precisava desvendar aquele recanto de sombra e rochedo.

 Um veio de água corria pelo lajedo; e, em meio à frieza do córrego, insetos cegos, embranquecidos pela noite incessante da caverna, fugiam dos meus passos. Nas paredes, desenhos de homens que viveram sob o manto de pedra e deixaram o registro no seio da gruta. A passagem era muito estreita, o ar parecia escapulir do meu corpo, apertava as mãos, os dentes travavam de frio, enquanto minhas pernas cambaleantes alcançaram uma senda que cintilava no subsolo, e; em meio à escuridão, uma claridade nunca vista ardeu-me os olhos.

 O sonho materializou-se, havia opalas, águas-marinhas, ametistas. Muitas pepitas de ouro. Apanhei o máximo que pude e, ao sair, ouvi tiros: Cães, cavalos e capangas do coronel estavam a minha caça. Voltei à gruta e permaneci lá por muitas luas, alimentando-me de traíra crua e preás, devorei uma serpente que guizou em meus pés. Bebi água do rio que envenenara e sonhei com muitas lapas iguais a esta. Não queria mais sair: recluso no meu castelo de pedras, marajá com temor dos homens e das suas armas, cercado dos tesouros da mina de Nossa Senhora. Só e sozinho no calabouço, estava feliz.

 A lapa, no entanto, enojou-se de mim, e a terra tremeu, fugi tropeçando nas estalagmites milenares construídas no gota a gota do suor do tempo. A gruta ficava cada vez mais escura e as pedras desabavam nas minhas costas, devo ter corrido muito, era zanga de Nossa Senhora, decepcionada com seu afilhado, e receio muito a fúria das mulheres. Na fuga, perdi as pedras que abraçava ao peito e, por mais medo da pobreza que da morte, engoli os diamantes que tinha no bolso. Avistei uma luz intensa ao final de um túnel comprido. Era a luminosidade do dia, o sol, a saída da cratera.

 Embrutecido pelas pedras, desvalido pelo homem. Despertei no corredor de um hospital: tísico, demitido, homem sem saúde não serve para lida. Disseram que eu estava ali há alguns dias, falando frases soltas delirando de febre e clamando por Maria.

 Convalescente, lavrei entre meus dejetos pedras brilhosas: eram diamantes, que se dissiparam aos ventos de aguardentes e bordéis, consegui apenas após duas décadas arrematar a fazenda do coronel, terras estas onde conheci a escassez e a fartura, o retiro e o encantamento. Subterrâneos. Alqueires onde selei minha sina de garimpeiro de lavras do desconhecido.

 Hoje solto ecos nos penhascos, procuro a gruta de tesouro e de água envenenada que entre a rocha, a escuridão e a vida conduzirá meu caminho por trilhas sinuosas para escavar, naquela mina, um diamante de muitos quilates, lapidado pela engenhosidade do tempo. Pedra cintilante que contará a história de um velho garimpeiro, cego e sedento pelo brilho dos minerais, então descansarei naquele jazigo de jazidas, refúgio final de um peregrino.
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Sobre a autora
Isabel Fontoura tem 37 anos, é médica e escritora, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, regional Bahia. Participou de antologia com outros médicos baianos e publicou sozinha um livro de contos, "Penhascos", que foi premiado no VII Concurso Literário do Banco Capital e do qual extraímos o texto ao lado, que foi publicado pela EPP Publicidade em 2008.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_ifontoura_penhascos.asp

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Manuel Bandeira (O Último Poema)

Fonte:
Imagem com poema obtida no blog de Sylvia Moreti http://sylviamoreti.blogspot.com

Manoel Fernandes Menendes (Sete Notas Tem a Trova)


Ouço, freqüentemente, as pessoas que assistem aos nossos Jogos Florais, e que gostariam de participar, uma pergunta: 

– Como se aprende a fazer trova? 

Queixam-se, essas pessoas, de que os manuais de versificação ou, mesmo, os decálogos divulgados pela UBT, apesar de considerados excelentes, não lhes fornecem uma informação clara e precisa sobre o tema, isto é, não indicam, desde logo, um meio prático e rápido de compor, com segurança e acerto, a quadra setessilábica consagrada entre nós com o nome de “trova”, objeto de nossos concursos. 

Procurarei, neste breve espaço, resumir, a pedido do Presidente Milton Nunes Loureiro, a palestra que, sobre essa questão e com o título “A Música e a Poesia”, tenho feito, em diversas oportunidades e lugares, para facilitar a tarefa dos trovadores aprendizes. 

Dizem alguns antropólogos que o ser humano, antes de falar, cantou. Que a palavra primitiva – imitação das vozes e dos sons da natureza – era cantada. Verdade ou não, certo é que, desde remotas eras, em cerimônias religiosas ou manifestações políticas ou festas propiciatórias, a música andou de mãos dadas com a poesia, não raro também acompanhada da dança. Recordem-se, aqui, as odes líricas gregas, os salmos de Davi, os cantos heróicos de Homero, para citar apenas esses. Com o tempo, a poesia passou a ser simplesmente recitada – lida ou falada. Mas guardou indeléveis sinais de sua origem, sendo exato que a medida do verso ritmado nasceu do compasso melódico (música e dança.). Por isso, para atender ao meu propósito, sugiro um reencontro da poesia com sua velha companheira das épocas primordiais. 

Recorro, para ensejar essa reaproximação, à música popular, dela retirando exemplos que tornam acessíveis aos leigos as normas próprias do gênero literário. 

Os tratados de versificação ensinam que o verso tradicional é composto de pés ou sílabas, e que a métrica portuguesa admite os versos de uma (1) até doze (12) sílabas, alguns deles (os de 8, 9, 10, 11 e 12) com pausas obrigatórias peculiares, remanescência das velhas pausas musicais, base do ritmo. A contagem dessas sílabas é algo complicado e obedece a regras específicas. Mas, se utilizarmos o processo (que adotei) de acomodar a letra (as palavras do verso) a um molde musical preestabelecido, escolhendo uma forma para enchê-la com palavras, todas as dificuldades ficam superadas. 

Vamos à prova. 

Para modelo do verso de 12 sílabas, (o alexandrino), escolhi uma belíssima valsa de Paulo Medeyros, cantada por Sílvio Caldas: 

“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda, 
sentindo-me feliz, sonhando-te mais linda...” 

Com essa melodia, pode-se cantar o célebre soneto de Alceu Wamosy, “Duas almas”, escrito em versos alexandrinos: 

“Ó tu, que vens de longe! ó tu, que vens cansada...” 

Ou o famoso soneto de Bilac, “Virgens Mortas”: 
“Quando uma virgem morre, uma estrela aparece...” 

Para os versos de 10 sílabas, encontramos vários moldes, que podem ser aproveitados de diversas maneiras. 

Temos o Hino Nacional Brasileiro (“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”), “A voz do violão” de Francisco Alves (“Não queiras, meu amor, saber da mágoa...”), “Chão de estrelas” de Orestes Barbosa (“Minha vida era um palco iluminado...”), o bolero “La barca” (“Dicen que la distancia es el olvido...”), por exemplo. Com qualquer desses conhecidos moldes, poderemos cantar estes conhecidos decassílabos: 

1 – “As armas e os barões assinalados...” 
(Camões) 

2 – “Sete anos de pastor, Jacó servia...” 
(Camões) 

3 – “Só a leve esperança, em toda a vida, 
disfarça a pena de viver, mais nada...” 
(Vicente de Carvalho) 

4 – “Vai-se a primeira pomba despertada...” 
(Raimundo Corrêa) 

5 – “Se a cólera que espuma, a dor que mora...” 
(Raimundo Corrêa) 

No caso do verso de sete (7) sílabas, metro obrigatório da trova, a coisa ainda fica mais simples, porque esse é o verso mais comum da Música Popular Brasileira. Os cantores de seresta sabem-no por experiência própria. Se não, vejamos: 

1 – “Fugindo da nostalgia, 
fui procurar alegria 
na ilusão de um cabaré...” 
(A mulher que ficou na taça) 

2 – “Olho a rosa na janela, 
sonho um sonho pequenino...” 
(Modinha) 

3 – “Vestida de azul e branco, 
trazendo um sorriso franco...” 
(Normalista) 

4 – “Nosso amor que eu não esqueço, 
e que teve o seu começo 
numa festa de São João...” 
(Último desejo) 

5 – “Estava à toa na vida, 
o meu amor me chamou 
pra ver a banda passar 
cantando coisas de amor...” 
(A banda) 

Para aplicar essas noções ao exercício da trova, costumo indicar três moldes, tomados à MPB, ao folclore e, até, à música popular italiana: “Peguei um Ita no Norte”, de Dorival Caymmi; “Meu limão, meu limoeiro”, canto folclórico; e “Torna a Surriento”, do cancioneiro napolitano. Uma trova corretamente feita, sem a necessidade de contarmos as sílabas pelos dedos, mas apenas com apoio num bom ouvido, ligando-se as palavras naturalmente, como na linguagem falada, encaixa-se, como numa luva, em qualquer desses moldes musicais. Querem experimentar? Comecemos pela toada de Caymmi: 

“Peguei um Ita no Norte, 
pra vir no Rio morá, 
adeus, meu pai, minha mãe, 
adeus, Belém do Pará...” 

Com a melodia dessa toada, é possível cantar estas trovas: 

1 – “Eu quis, na cara ou coroa 
saber se és minha ou do Zé 
fiquei na mesma. Esta é boa! 
O níquel caiu de pé!” 
Colbert Rangel Coelho 

2 – “Maria da Graça é uma 
cachopa de olhos em brasa 
vive sozinha, não fuma, 
e tem cinzeiros em casa!” 
Augusto Gil 

Com a melodia de “Meu limão, meu limoeiro” e de “Torna a Surriento” obtém-se o mesmo efeito: 

1 – “Meu limão, meu limoeiro, 
meu pé de jacarandá: 
Uma vez, tindô-lelê, 
outra vez, tindô-lalá...” 

2 – “Vide ‘o mare quant’è bello, 
spira tantu sentimento, 
comme tu a chi tiene mente, 
ca scetato ‘o faie sunná...” 

Penso que bastam essas explicações para demonstrar que o processo é prático e rápido. 

No início, o aprendiz pode exercitar-se com frases e palavras sem sentido, ligadas arbitrariamente, desconexas, procurando adaptá-las ao molde musical. Depois, adquirindo o hábito, os versos irão formar-se naturalmente, até pelo cotejo com as trovas de autores mais experimentados. E no meio, como diria o poeta espanhol, no meio “hay que poner talento”. Quanto a isto, não tenho dúvida: existe, por aí, de sobra.

Fonte:
Seleções em Folha. Ano 4. N.1 – janeiro 2000. São Paulo/SP

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão I)


Na semana em que se celebraram os 393 anos de fundação da  cidade, o Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante iniciou esta série especial sobre o trabalho de grandes autores que, no mundo das letras e da canção popular, homenageiam São Luís, sobretudo retratando seus espaços urbanos, que hoje tanto encantam aos turistas e visitantes. São ruas, praças, becos, escadarias, largos e ladeiras que – pelo seu caráter singular e expressivamente poético – têm sido fonte de inspiração para inúmeras obras literárias. Uma das fontes fundamentais desta pesquisa foi o livro Breve História das Ruas de São Luís, publicado em 1962 pelo escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981), por ocasião das comemorações dos 350 anos de fundação da cidade. 

O autor reconhece, nesta obra, que não é tarefa fácil recompor a fisionomia e a história das ruas de São Luís no passado. “Outrora nossas ruas tiveram nomes tão pitorescos quanto líricos, mudados depois à força para o de ilustres desconhecidos que, em sua maioria, não se sabe o que fizeram para merecer a honra de batizar um logradouro público”, afirma Domingos Vieira Filho. Como ele, a professora Magnólia Sousa Bandeira de Melo teve igual propósito e publicou, em 1990, o Índice Toponímico do Centro Histórico de São Luís, enfocando as ladeiras, os becos, as ruas estreitas e as escadarias de pedras da cidade. 

O escritor Pedro Braga, no livro A ilha afortunada, analisa a arquitetura de São Luís, com a imponência dos sobrados de pedra e cal, com sacadas de ferro batido, com portada em pedras de Lioz e com fachadas revestidas de azulejos. 

Outro estudioso importante nessa matéria é o professor Clóvis Ramos, autor de São Luís do Maranhão é Poesia, publicado pelo Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado (Sioge), em 1992, para marcar a passagem dos 380 anos de fundação da capital maranhense. Ele publicou antes Minha terra tem palmeiras – trovadores maranhenses; Onde canta o sabiá – com os 101 mais belos sonetos de poetas do Estado; Nosso céu tem mais estrelas – 140 anos de literatura maranhense; Nossas várzeas têm mais flores – poetas modernos do Maranhão; e As aves que aqui gorjeiam – dedicado às poetisas maranhenses. Aliás, são muitas e, por isso, nem todas puderam figurar no estudo e antologia organizados pelo autor. 

Como tantos outros compatriotas históricos – Gonçalves Dias (1823-1864), Humberto de Campos (1886-1934), Bandeira Tribuzi (1927-1977), Odylo Costa, filho (1914-1979), Lago Burnett (1929-1995), Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) e Lopes Bogéa (1926-2004) –, autores contemporâneos como José Chagas, Josué Montello, Ferreira Gullar, Nauro Machado, Jomar Moraes, Ubiratan Teixeira, Chagas Val, João Alexandre Júnior, Paulo Oliveira, Eloy Coelho Neto, Luís Augusto Cassas, Luís Alfredo Neto Guterres, Cunha Santos, José Maria Nascimento, Manoel Lopes, Herbert de Jesus Santos e outros também se aventuraram a explorar, poeticamente, a geografia sentimental de São Luís. Não é à toa que a cidade é louvada na melodia dos versos de vários de seus poetas e compositores. 

Além destes, cronistas e cantadores, com suas crônicas e seus cantos, louvam e engrandecem São Luís. Tanto na prosa quanto no poema e na música popular – incluindo-se aí toadas de grupos de bumba-meu-boi – a cidade é tema recorrente. Não é por outro motivo que, com freqüência, São Luís é enaltecida na veia inventiva de artistas de alma e cores maranhenses, como o lendário João do Vale, Antônio Vieira, Lopes Bogéa, César Nascimento, Beto Pereira, Alcione, Rosa Reis, Cláudio Fontana, Josias Sobrinho, Roberto Ricci, César Teixeira, Joãozinho Ribeiro, Escrete e de “amos” como Coxinho, João Chiador, Mané Onça, Mestre Leonardo Martins Santos, Apolônio Melônio, Francisco Naiva e Ivaldo, do Bumba-boi de Axixá; Chagas, da Maioba e Humberto, de Maracanã.

Insuperável no retrato da vida, tanto nos seus aspectos domésticos (como no enredo de Um beiral para os bentevis) quanto nos heróicos (no painel histórico de Os tambores de São Luís), Josué Montello teve o cuidado de construir a maioria de seus romances, com as pedras da cidade, com o azulejo dos casarões, com os mirantes dos sobrados e com o nome das ruas, praças e igrejas. Contido na prosa, no verso e na vida, ele eventualmente se derrama se o assunto é São Luís, tema obsessivo de uma boa parte de seus livros. Paixão comparável, talvez, só a que revela também por Alcântara. Num de seus volumosos Diários, Montello confirma que, no conjunto de sua obra romanesca, preocupou-se em reunir quase todos os espaços urbanos da cidade, resgatados da mesma forma em livros de diversos pesquisadores, entre os quais o escritor Jomar Moraes, autor do Guia de São Luís do Maranhão, publicado em 1989. 

Nesta obra, o presidente da Academia Maranhense de Letras mostra a cidade sob dois planos: o que ela foi e o que ela é, da poesia aos movimentos religiosos, passando pelas questões políticas, comércio e indústria, ruas, becos e sobrados, além das lendas, festas e culinária, em um passeio que se eterniza a cada página. O próprio Jomar revela que a idéia de escrever um guia de São Luís surgiu em 1980, quando ele passou um ano no Rio de Janeiro. A saudade da cidade que adotou como sua (o escritor nasceu em Guimarães) deu forma a este passeio. Ainda no Rio, montou o esquema de todos os capítulos. O projeto ficou pronto quase 10 anos depois, graças ao grande amor pela cidade e à cobrança e incentivo dos amigos. 

Viés telúrico - Uma das frases mais conhecidas do escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910) sugere, a quem quiser falar ao mundo, que fale da própria aldeia. E, justamente por falar de sua aldeia, Josué Montello imortaliza-se em sua obra romanesca. Ele se diz um homem de província, que soube se conservar fiel a essa condição, não obstante a universalidade de 

sua cultura e de sua curiosidade. Em diversos capítulos de Os Tambores de São Luís, Montello revela o viés telúrico de seu trabalho, como na passagem em que assinala que “umas cidades têm as suas andorinhas; outras, os seus pardais; São Luís tem os seus bem-te-vis, que nascem com a luz do sol e parecem cantar com ela pelo resto do dia. De relance, dir-se-ia que voam em bando. Na verdade, ao contrário das andorinhas, voam solitários, sem prejuízo das reuniões eventuais no mesmo fio telegráfico, no beiral do mesmo telhado, nos ramos da mesma árvore”.

Como Montello, José Chagas tem verdadeira adoração pela Cidade dos Azulejos, tema constante de inúmeros de seus poemas. Aliás, o grande lance da obra de Chagas é o primoroso retrato que, ao longo de sua carreira literária, ele construiu de São Luís. O fascínio que a cidade passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um sem-número de crônicas e poemas, celebrando as ruas, os telhados, as pontes, moças, ondas, marés, silêncios, sobradões e bem-te-vis da velha capital maranhense. Radicado no Maranhão desde janeiro de 1948, ele lembra numa de suas obras, saudosista e com um carinho incomum, da noite em que chegou a São Luís a bordo de uma barulhenta “Maria Fumaça”, que soltava brasa contra o vento, enchendo os vagões de fuligem e sujando a roupa dos passageiros. Essa viagem de trem foi iniciada em Teresina, no Piauí, até a velha estação central da antiga Rede Ferroviária (Rffsa) no Maranhão. Ao desembarcar na Avenida Beira-Mar (onde hoje funciona o Plantão Central da Polícia Civil), o recém-chegado pediu a um chofer que o deixasse numa pensão, no centro da cidade. 

Impressionado com os mistérios do casario do Centro Histórico, José Chagas escolheu os telhados de São Luís como temática de um de seus livros. “Sempre fiquei a me perguntar sobre quantas coisas aqueles telhados acobertaram, quantas gerações passaram por baixo deles, quantas chuvas suportaram ...”. Na maior parte da sua obra, destacando-se os livros Azulejos do tempo e Apanhados do chão, Chagas faz uma homenagem a São Luís, a cidade bem-afortunada que nele encontrou um de seus mais devotados cantores. O tradicional bairro do Desterro chamou-lhe a atenção por se tratar de uma área da parte velha da cidade que mistura o sagrado e o profano: o Convento das Mercês, a Igreja do Desterro e a antiga zona do baixo meretrício. “A vida noturna de São Luís e toda a zona do meretrício eram concentradas lá. E lá era um mundo bonito, grão-fino, tanto que havia pensão lá que para entrar era preciso paletó e gravata. A zona era chique, mas acabou tudo, porque agora o meretrício é em toda parte”.

O autor de Os Canhões do Silêncio observa ainda que em São Luís há a cidade-palácio e a cidade-palafita. “As palafitas me impressionaram muito. Tanto que para escrever Maré Memória andei dias e dias conversando com aqueles palafitados, passando sobre aquelas pontes de madeira, batendo papo com aquele pessoal”. Em geral, as construções se iniciam pelos alicerces. Chagas, ao contrário, começou a construir São Luís, na sua obra literária, a partir dos telhados. Depois, descreveu o Desterro, retratou as palafitas e partiu para um de seus maiores desafios: escrever a história que caiu no lixo, baseado no fato de que cada chão de São Luís tem uma característica própria. São Luís, com sua paisagem e sua história, entra em cena, panoramicamente, no livro Os Azulejos do Tempo. Este livro não conta a história, mas se baseia em fatos históricos. 

Com seu excepcional talento literário, Bandeira Tribuzi é outro autor que enfoca em sua poesia as ruas, as praças e demais logradouros desta cidade, de tantas vias estreitas e artérias sinuosas. Sinuosas como o antigo Beco do Monteiro, que conduzia à quinta do mesmo nome, na Rua do Passeio, e o Beco da Prensa, aberto por João Gualberto da Costa para serventia da primeira prensa de algodão que se instalou no Maranhão. Compositor, jornalista, crítico literário, Tribuzi era também economista, sendo responsável, em grande parte, pelos planos econômicos que foram postos em execução por vários governos maranhenses. Hoje, muitos estudiosos reconhecem, Bandeira Tribuzi foi o líder de sua geração. Estudou em Coimbra, de onde trouxe algumas das grandes lições da moderna poesia portuguesa, notadamente a de Fernando Pessoa (1888-1935), e permanece como uma influência viva para a literatura atual. Entre outras obras, é autor do poema-símbolo de São Luís.

LOUVAÇÃO A SÃO LUÍS

Autor: Bandeira Tribuzi

Ó minha cidade,
deixa-me viver
que eu quero aprender
tua poesia
sol e maresia
lendas e mistérios
luar das serestas
e o azul de teus dias

Quero ouvir à noite
tambores do Congo
gemendo e cantando
dores e saudades
a evocar martírios,
lágrimas, açoites
que floriram claros
sóis da liberdade

Quero ler nas ruas,
fontes, cantarias,
torres e mirantes,
igrejas, sobrados
nas lentas ladeiras
que sobem angústias
sonhos do futuro
glórias do passado

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Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
http://www.guesaerrante.com.br/2006/1/20/Pagina650.htm. Edição 114. 20 de janeiro de 2006