sábado, 19 de janeiro de 2019

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O Décimo Terceiro Filho do Rei da Irlanda)


Há muito tempo, existiu um rei na Irlanda que teve treze filhos, aos quais, à medida que iam crescendo, ensinou os conhecimentos próprios da sua hierarquia e os exercícios e artes que lhe correspondiam.

Um dia, foi à caça e avistou um cisne com treze crias, que afugentava a décima terceira, para que não se aproximasse das outras.

A atitude despertou particularmente a atenção do monarca, que, quando regressou ao palácio, mandou chamar o Sean dall Glic (velho sábio cego) e disse-lhe:

— Hoje, quando caçava, presenciei uma coisa verdadeiramente assombrosa: um cisne com treze crias enxotava com insistência a décima terceira e conservava as outras doze junto de si. Explica-me a causa e o motivo de semelhante comportamento. Que pode levar uma mãe a odiar um dos seus pequenos e proteger os restantes?

— Vou elucidar-te — respondeu Sean dall Glic. — Todas as criaturas da terra, sejam homens ou animais, que têm treze descendentes, devem pôr de parte o décimo terceiro, para que vagueie só pelo mundo e encontre o seu próprio destino, de modo que a vontade do céu recaia nele e não afete os outros. Ora, tu, que tens treze filhos, deves entregar o décimo terceiro ao Diachbha (divindade, destino).

— É, pois, esse o significado do que aconteceu com o cisne do lago? Devo abandonar o meu décimo terceiro filho ao Diachbha?

— Exatamente. Tens de abandonar um dos treze.

— Mas como, se estimo todos igualmente?

— Deves fazer o seguinte: quando regressarem a casa, esta noite, fecha a porta ao que chegar em último lugar.

Embora nenhum deles fosse menos inteligente ou desembaraçado que os outros, o mais velho, Sean Ruadh, era o melhor, o herói. E aconteceu que, naquela noite, foi o último a chegar a casa, pelo que o pai lhe fechou a porta na cara. O rapaz ergueu os braços e perguntou:

— Que tencionas fazer comigo, pai? Que pretendes?

— É meu dever entregar um dos filhos ao Diachbha e, como foste o décimo terceiro a chegar, tens de ir-te.

— Muito bem. Deem-me roupa para o caminho.

Deram-lha, e depois o pai entregou-lhe o corcel negro, capaz de atingir a velocidade do vento e ultrapassá-la.

Sean Ruadh subiu para a sela e afastou-se rapidamente, seguindo dia após dia sem descanso e dormindo nos bosques, à noite.

Uma manhã, vestiu roupa velha que levava na alfange da sela e, após deixar o corcel no bosque, encaminhou-se para uma clareira. Não havia muito tempo que se encontrava ali, quando se aproximou um rei, o qual se deteve na sua frente.

— Quem és e que fazes aqui? — perguntou o monarca.

— Estou perdido — respondeu Sean Ruadh. — Não sei para onde ir nem o que vou fazer.

— Se é esse o caso, digo-te o que farás: virás comigo.

— Porquê?

— Bem, possuo muitas vacas e não tenho ninguém que se encarregue delas. Também estou a contas com um problema grave: a minha filha sucumbirá a uma morte horrível, muito em breve.

— Como morrerá?

— Há uma urfeist (serpente gigante), um monstro que tem de devorar a filha de um rei de sete em sete anos. No final de cada um desses períodos, surge do mar à procura do seu alimento. Agora, compete à minha, e não sabemos quando a urfeist aparecerá. Todo o castelo e eu próprio já trajamos de luto pela minha infortunada filha.

— Talvez haja alguém que a salve — aventurou o jovem.

— Veio um exército completo de filhos de cavaleiros, que prometeram livrá-la de tão triste fim, mas receio que nenhum se atreva a enfrentar a urfeist.

Sean Ruadh acedeu em servir o rei durante sete anos e acompanhou-o ao castelo.

Na manhã seguinte, conduziu as vacas ao pasto.

Mas, não longe das terras do rei, havia três gigantes que viviam noutros tantos castelos, à vista uns dos outros, e gritavam todas as noites antes de se deitar. O uivo que cada um proferia era tão intenso, que se ouvia à distância.

O jovem levou o gado às terras de um gigante, derrubou o muro e impeliu os animais para dentro. A erva era muito alta, o triplo da de qualquer pastagem do rei.

Enquanto Sean Ruadh estava sentado a vigiar o gado, um gigante aproximou-se a correr e bradou:

— Não sei se te arranque um pedaço de carne e o meta no nariz ou se te aplique uma sova!

— Mal de mim se tivesse vindo para outra coisa que não fosse privar-te da vida.

— Como preferes lutar, nas rochas cinzentas ou com espadas bem aguçadas?

— Lutarei contigo nas rochas cinzentas, onde as tuas longas pernas terão de se dobrar e as minhas permanecerão eretas.

Colocaram-se frente a frente e começaram a pelejar. Na primeira arremetida, Sean Ruadh afundou o adversário até aos joelhos entre as duras rochas cinzentas, na segunda mergulhou-o até à cintura e na terceira até aos ombros.

— Tira-me daqui! — gritou o gigante. — Em troca, dou-te o meu castelo e tudo o que possuo: a minha espada de luz, que nunca falha o primeiro golpe mortal, e o cavalo negro, que atinge a velocidade do vento e até a ultrapassa. Encontra-se tudo aqui, no meu castelo.

Sean Ruadh matou-o e dirigiu-se ao castelo, onde a governanta proferiu:

— Sê bem-vindo! Mataste o sujo gigante que vivia aqui. Acompanha-me, para que te mostre todas as riquezas e tesouros. — Ela abriu a porta da arrecadação e acrescentou: — Tudo o que está aqui é teu. Aceita as chaves do castelo.

— Fica com elas, até que eu volte, outro dia. Acorda-me ao anoitecer. — E Sean Ruadh deitou-se na cama do gigante.

Dormiu até ao pôr do Sol e conduziu o gado do rei de regresso a casa. As vacas nunca haviam dado tanto leite como nessa noite. Tanto como o que produziam anteriormente durante uma semana.

Depois, procurou o rei e perguntou-lhe:

— Que novidades há sobre a tua filha?

— A serpente gigante ainda não apareceu, mas pode chegar amanhã.

— Bem, é possível que amanhã adie a vinda para outro dia.

O monarca ignorava totalmente a força do jovem, pois estava descalço, andrajoso e modestamente ataviado.

Na segunda manhã, Sean Ruadh levou as vacas do rei para as terras do segundo gigante. Este surgiu com as mesmas perguntas e ameaças do primeiro, e o pastor reagiu como na véspera.

Embrenharam-se na luta e quando o gigante estava afundado até aos ombros nas duras rochas cinzentas, disse:

— Dou-te a minha espada de luz e o cavalo negro, se me concederes a vida.

— Onde está a espada?

— Pendurada na parede, por cima da minha cama.

Sean Ruadh correu para o castelo, pegou na espada, que gritou quando a brandiu, mas ele segurou-a com firmeza, regressou ao local onde o gigante se encontrava e perguntou-lhe:

— Onde posso experimentar o fio desta espada?

— Contra um pau.

— Não vejo aqui nenhum pau melhor que a tua cabeça.

Com estas palavras, o jovem cortou-lha. Em seguida, dirigiu-se de novo ao castelo e pendurou a espada no seu lugar.

— Bendito sejas! — exclamou a governanta. — Mataste o gigante. Acompanha-me, para que te mostre todas as suas riquezas e tesouros, agora teus para sempre.

Sean Ruadh encontrou no segundo castelo tesouros ainda mais valiosos que no anterior. Depois de ter visto tudo, devolveu as chaves à governanta, para que as guardasse até ele precisar delas. A seguir, dormiu como na véspera e regressou a casa com as vacas, ao anoitecer.

— A sorte acompanha-me, desde que estás comigo — declarou o rei. — As minhas vacas produzem o triplo do leite.

— Soube-se alguma coisa da urfeist? — perguntou o jovem.

— Hoje também não apareceu — informou o monarca. — Mas pode vir amanhã.

— No terceiro dia, Sean Ruadh saiu com as vacas do rei e conduziu-as às terras do terceiro gigante, o qual irrompeu do castelo e ofereceu luta mais feroz que os seus antecessores, mas o pastor afundou-o entre as rochas cinzentas até que estas lhe chegaram à altura dos ombros e matou-o.

Foi recebido com alegria pela governanta do castelo deste último, que lhe mostrou as riquezas e lhe entregou as chaves, mas ele devolveu-lhas até que as pedisse de novo. Naquela noite as vacas do rei deram mais leite que nunca.

No quarto dia, Sean Ruadh saiu com o gado, mas deteve-se no castelo do primeiro gigante. Em obediência ao seu pedido, a governanta foi buscar a indumentária do antigo amo, que era totalmente preta. Ele vestiu-a e colocou a espada de luz à cintura. Montou então no corcel negro, que atingiu a velocidade do vento e a ultrapassou, seguindo entre o céu e a terra, sem se deter até chegar à praia, onde viu muitas centenas de filhos de cavaleiros e paladinos, ansiosos por salvar a filha do rei, mas que tinham tanto medo da terrível urfeist que não se atreviam a aproximar-se da jovem.

Quando viu esta última e os trêmulos paladinos, Sean Ruadh regressou ao castelo. Pouco depois, o rei avistou, a cavalgar entre o céu e a terra, um desconhecido de aspecto magnífico, que se deteve na sua frente.

— Que é aquilo que vi à beira-mar? — perguntou o desconhecido. — Trata-se de alguma feira ou reunião importante?

— Não sabes que chegou o monstro para destruir a minha filha?

— Essa é nova para mim — declarou, e afastou-se velozmente na sua montada.

O ginete negro não tardou a encontrar-se perante a princesa, sentada, só, numa rocha junto ao mar. Quando olhou o desconhecido, pensou que era o homem mais atraente que já vira, e o seu coração alegrou-se.

— Não tens ninguém que te proteja?

— Ninguém.

— Permites que repouse a cabeça no teu regaço, até que a urfeist apareça? Nessa altura, despertarei.

Pousou a cabeça no regaço da princesa e adormeceu. Entretanto, ela arrancou-lhe três cabelos da cabeça e guardou-os no peito. Acabava de o fazer, quando a urfeist surgiu do mar, imensa como uma ilha e a cuspir água para o ar enquanto se movia. O desconhecido acordou e levantou-se de um salto, disposto a defender a princesa.

A horrível serpente avançou ao longo da beira-mar, em direção à princesa, de boca aberta, tão larga como uma ponte, até que o desconhecido se lhe colocou na frente e bradou:

— Esta mulher é minha, não tua!

Brandiu a espada de luz e cortou a cabeça ao monstro com um único golpe, porém a cabeça regressou prontamente ao seu lugar e cresceu de novo.

Num abrir e fechar de olhos, a urfeist deu meia volta e regressou ao mar, mas, enquanto submergia, ameaçou:

— Voltarei amanhã e tragarei tudo o que se me opuser.

Sean Ruadh montou no corcel negro e afastou-se antes que a princesa o pudesse deter. O coração dela amargurou-se quando o viu cavalgar a toda a velocidade entre o céu e a terra, mais rápido que o vento.

O jovem foi ao castelo do primeiro gigante e deixou lá o cavalo, as roupas e a espada. Depois, dormiu na cama do gigante até anoitecer, quando a governanta o acordou. Em seguida, conduziu as vacas a casa, procurou o rei e perguntou-lhe:

— Como correram hoje as coisas para a tua filha?

— A urfeist surgiu do mar para a levar, mas apareceu um paladino extraordinário, que cavalgava entre o céu e a terra.

— Quem era?

— Bem, agora há muitos homens que dizem ser ele. Mas a minha filha ainda não está totalmente a salvo, pois a urfeist jurou voltar amanhã.

— Não te preocupes. Talvez apareça outro paladino.

Na manhã seguinte, Sean Ruadh levou as vacas do rei às terras do segundo gigante, deixou-as a pastar, e visitou o castelo, onde foi recebido cordialmente pela governanta, que lhe disse:

— Sê bem-vindo. Aqui me tens ao teu dispor, e encontra-se tudo em ordem.

— Traz-me o cavalo castanho e prepara-me o vestuário e a espada do gigante.

Ela levou-lhe as roupas, o esplêndido traje azul do segundo gigante e a espada de luz. Sean Ruadh envergou a nova indumentária, pegou na espada, subiu para a sela do cavalo castanho e cavalgou velozmente entre o céu e a terra com o triplo da rapidez do dia anterior.

Primeiro, foi até à beira-mar e viu a filha do rei sentada, só, na rocha, e os príncipes e os paladinos afastados dela, a tremer de medo. Depois, cavalgou até onde estava o monarca, perguntou o motivo da multidão que enchia a praia e recebeu a mesma resposta da véspera.

— Não haverá homem algum que a proteja? — perguntou o jovem.

— Bem, há muitos que prometeram salvá-la e afirmam que são valentes, mas nenhum desembainhará a espada para enfrentar a urfeist, quando surgir do mar.

Sean Ruadh afastou-se antes que o rei se desse conta e encaminhou-se para onde a princesa se encontrava, vestindo o traje azul e com a espada de luz à cintura.

— Não há ninguém que te proteja?

— Ninguém.

— Permite-me repousar a cabeça no teu regaço, e acorda-me quando a urfeist aparecer.

Pousou a cabeça no regaço da princesa e, enquanto dormia, ela retirou os três cabelos do peito arrancados na véspera, comparou-os com os dele e murmurou:

— És o homem que esteve aqui ontem.

Quando a urfeist surgiu, vinda do mar, ela acordou o desconhecido, que se levantou de um salto e correu para a praia.

Movendo-se com maior rapidez e levantando mais água que no dia anterior, o monstro chegou à praia com a boca aberta. Sean Ruadh tornou a interpor-se no seu caminho e, com uma única arremetida da espada, cortou a urfeist ao meio. No entanto, as duas partes voltaram a unir-se rapidamente, formando um único corpo como dantes.

Em seguida, a serpente regressou ao mar, enquanto ameaçava:

— Nem todos os paladinos do mundo a salvarão, amanhã!

O jovem montou imediatamente no seu corcel e regressou ao castelo, deixando a princesa desesperada com o afastamento do único homem que se atrevera a protegê-la.

Sean Ruadh vestiu a roupa habitual e conduziu as vacas ao estábulo, como sempre.

— Um paladino desconhecido, todo trajado de azul, salvou a minha filha, hoje — comunicou-lhe o monarca. — Mas está muito pesarosa, porque ele desapareceu.

— Bem, isso é uma ninharia, pois a sua vida está a salvo.

Naquela noite, houve uma festa no castelo do rei, para a qual todos foram convidados, e a alegria iluminava os rostos porque a princesa se encontrava de novo sã e salva.

No dia seguinte, Sean Ruadh conduziu as vacas ao pasto do terceiro gigante, dirigiu-se ao castelo e pediu à governanta que lhe trouxesse a espada do gigante e o vestuário e levasse o corcel vermelho para a entrada. A indumentária do terceiro gigante tinha antas cores como as que existem no firmamento, enquanto as botas eram de cristal azul.

Assim trajado e montado no cavalo vermelho, o jovem era o homem mais atraente do mundo. Quando se preparava para partir, a governanta disse-lhe:

— Desta vez, a serpente estará tão enfurecida que nenhuma arma a poderá deter. Surgirá do mar com três enormes espadas a irromperem-lhe da boca, e poderia reduzir o mundo inteiro a picado e tragá-lo, se se lhe opusesse. Só há uma maneira de a vencer, e vou ensinar-ta. Leva esta maçã castanha e, quando a urfeist surgir impetuosamente do mar, atira-lha à garganta. Verás então que se afundará e dará à costa, morta.

Sean Ruadh cavalgou no corcel vermelho entre o céu e a terra, ao triplo da velocidade do dia anterior. Avistou a donzela sentada, só, na rocha e os trêmulos cavaleiros à distância, a aguardar os acontecimentos, assim como o rei a ansiar por que aparecesse alguém que lhe salvasse a filha. Em seguida, o jovem aproximou-se dela e pousou a cabeça no seu regaço. Quando viu que adormecera, ela retirou do peito os três cabelos que arrancara da primeira vez, comparou-os com os da cabeça de Sean Ruadh e disse:

— És o homem que me salvou ontem.

A urfeist não se fez esperar. A princesa acordou o jovem, que se ergueu de um salto e se encaminhou para o mar. A serpente era enorme — metia medo só de a olhar -, com uma boca tão grande que podia tragar o mundo e da qual emergiam três aguçadas espadas. Quando o viu, avançou demolidoramente com um rugido terrível, porém ele atirou-lhe a maçã à garganta, e o monstro caiu indefeso na praia, para se desfazer numa gelatina espessa e hedionda, à beira-mar.

Em seguida, Sean Ruadh voltou-se para a princesa e anunciou:

— A urfeist não voltará a molestar ninguém.

Ela correu e tentou detê-lo, mas já estava montado no corcel vermelho, a cavalgar entre o céu e a terra, antes de poder impedi-lo. No entanto, segurou-se com tanta força a uma das botas de cristal azul, que Sean Ruadh teve de lha abandonar nas mãos.

Quando, naquela noite, ele levou as vacas para o estábulo, perguntou ao rei:

— Que sabes da urfeist?

— A sorte não me desampara, desde que estás comigo — respondeu o monarca. — Um paladino que trajava com todas as cores do firmamento e cavalgava um corcel vermelho entre o céu e a terra, destruiu hoje a serpente. A minha filha está a salvo para sempre, mas ameaça suicidar-se porque não tem a seu lado o homem que a libertou do terrível destino.

Naquela noite, realizou-se uma festa no castelo do rei, com uma pompa jamais vista. Os salões estavam a abarrotar de príncipes e paladinos, que proclamavam:

— Fui eu que salvei a princesa!

O monarca mandou chamar o Sean dali Glic e perguntou o que devia fazer para encontrar o homem que salvara realmente a filha. A resposta foi a seguinte:

— Manda divulgar por todo o mundo que o homem cujo pé se adapte à bota de cristal azul é o paladino que matou a urfeist e a quem concederás a princesa em casamento.

E o rei fez circular por todo o mundo a informação de que os candidatos deviam vir experimentar a bota. Todavia, a uns ficava demasiado grande e a outros demasiado pequena. No final de todas as experiências infrutíferas, Sean dall Glic lembrou:

— Todos se sujeitaram à experiência, exceto o pastor.

— Ora, esse anda sempre nos pastos, com as vacas! Para quê perder tempo com ele?

— Isso não interessa. Encarrega vinte homens de o ir buscar.

O rei assim fez, e os vinte homens foram encontrar o pastor a dormir à sombra de um muro de pedra. Quando começavam a fazer uma corda de feno para o atar, acordou e preparou vinte cordas antes que eles terminassem a primeira. Em seguida, lançou-se-lhes em cima, atou-os num fardo e pendurou-o no muro.

Entretanto, no castelo, fartaram-se de esperar pelos vinte homens que regressariam com o pastor, até que o rei enviou mais vinte, munidos de espadas, para averiguarem o motivo da demora.

Quando se encontraram perante Sean Ruadh, eles principiaram a fazer uma corda para o atar, mas o pastor preparou vinte antes que concluíssem a primeira e, por muito que se debatessem, atou-os num fardo, que pendurou no muro ao lado do outro. Como nenhum dos dois grupos reaparecia, Sean dall Glic indicou ao rei:

— Vai prostrar-te diante do pastor, porque atou quarenta homens em dois fardos e os fardos entre si.

O monarca foi na verdade prostrar-se perante o pastor, que o mandou levantar e perguntou:

— A que propósito vem isto?

— Tens de experimentar a bota de cristal.

— Não posso, pois tenho o meu trabalho aqui.

— Não te preocupes. Regressarás a tempo de o completar.

O pastor libertou os quarenta homens e acompanhou o rei. Quando chegaram ao castelo, viu a princesa, nos seus aposentos, dois pisos acima da entrada, e a bota de cristal no peitoril da janela.

Naquele momento, a bota saltou de lá, cruzou o espaço na direção dele e ajustou-se-lhe ao pé. A princesa desceu  num abrir e fechar de olhos e aninhou-se nos braços do jovem.

O castelo estava cheio de cavaleiros e paladinos, que proclamavam que tinham sido eles a salvar a princesa.

— Que fazem aqui todos estes homens? — perguntou Sean Ruadh, surpreendido.

— Ora! — replicou o rei. — Tentavam calçar a bota. Ato contínuo, o jovem desembainhou a espada, decapitou todos e lançou as cabeças e os corpos à montureira nas traseiras do castelo.

O rei enviou navios com mensageiros a todos os monarcas e rainhas do mundo — de Espanha, França, Grécia e Dinamarca, e a Diarmuid, filho do rei da luz -, para que assistissem ao enlace de sua filha com Sean Ruadh.

Depois da boda, este último foi viver com a esposa para o reino dos gigantes e deixou o sogro nas suas próprias terras.

Fonte

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Décio Romano (Poemas Avulsos)



A LAGARTIXA

Linda lagartixa 
Que se espicha na laje 
No muro desliza 
E vai pra garagem. 

Nunca suja, nunca picha 
Limpa com coragem 
Come todos os bichos 
E perigos do pedaço. 

Nos diz a mensagem 
da lagartixa 
limpar o espaço 
de aranhas, mosquitos..

BAIRRO ALTO DA GLÓRIA
  
Todas as travessas
Levam para lá.

Meu canto encanto
Meu reencontro.

Nem tudo entanto
Que o arvoredo
Me faz suspirar.

Meu tempo é outro
Mas estou presente.

Sinto que o tempo
Traz coisas boas
Num breve lembrar.

JOTABÉM

Quando quero lhe encontrar
Subo ao céu e desço ao mar.

Sempre me atiro na estrada
Sempre à procura da amada
Por bom motivo deixada
Para depois ser buscada.

Sempre a encontro sorrindo
Sempre a encontro me ouvindo.

Quando quero lhe beijar
Encontro os véus na chegada
Um a um me seduzindo.

NATAL

Acenderam-se as luzes
Para festejar Jesus
O bom velhinho veio
Também festejar
O nascimento do Menino
Tudo era festa
Mas as luzes se apagaram
O que houve?
Papai Noel caiu de cima do armário
Enquanto espiava
O que acontecia
E na correria tropeçou
E toda a árvore apagou
Mas a festa continuou.

POEMA DE NATAL

Tem árvore de Natal
Tem lâmpadas no quintal
Tem presépio no jardim

No céu a estrela cadente
Na rua trafega gente
No shopping a passarela

É Natal no coração
E aquela velha canção
É igual amor sem fim

Que faz lembrar da virtude
Que faz que esta vida mude
Que traz Deus naquela estrela.

POEMA INFANTIL

Quando a onça apareceu
A mata ficou parada
Nem o galho se mexeu.

A coruja arregalou-se
O macaco deu um grito
E a passarada voou.

O jacaré quando viu
Pulou na água parada
Sujou a água do rio.

Dona onça ficou braba
Deu a volta e foi embora
Assim a história acaba.

TRAGÉDIA DE MARIANA

Quanto abismo cai
E soterra os ais
E as vozes mais
Que diriam adeus.

Rolam com a terra
E sufoca o berro
Do próprio enterro
Sem dizer adeus.

E não volta mais
Não há tempo atrás
Nem haverá jamais
O derradeiro adeus.

POEMAS MINIMALISTAS

1
O tempo anda a cavalo.
Versos tropeços diversos
Fui me cercando de livros.

2
A verdade única
Se desdobra em controvérsias.
A verdade reproduz-se
E assim conduz as conversas.

3
Garimpar respostas.
E na busca pelas riquezas
Peneirar a luz.

VAN GOGH

Um pé no céu
Um pé no chão.
Na mão direita um pincel
Na mão esquerda emoção.

Na gaveta da memória
Os momentos de fracasso
Os momentos de vitória.

Na sala do coração
Um momento de relaxo
Um momento de tensão.

No escritório da vida
Onde o passado traço
E o que vem em seguida

O que tenho é o que me resta
Ganhando aquilo que acho
E perdendo o que não presta.

Fontes:

Décio Romano


Decio Romano é jornalista, pesquisador da poesia que ocorre em Curitiba, e há mais de quatro anos vem fotografando eventos e poetas. Prefere as luzes da noite que as luz do dia, mas defende uma vida natural e desapegada. 

Decio começou a escrever nos anos 80, e na sua trajetória literária já conta com exposições de Poesia no Brasil, Argentina e Portugal, além de um poema premiado na Espanha.

Livros do autor: 
Os Bosques Encantados de Vrindávana, 2002; 
A Lenda de Bédalo, 2009; 
Rua das Flores, 2010; 
Sayonara, contos, 2013; 
Poema Voluntário, 2014; 
Respostas dos Arcanos do Tarô, poemas, 2017.

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) III



MINHA ALEGRIA

Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.

Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão,
Meu cântico esculpido em noite escura!

Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.

Foste tu que m'a deste, meu amor;
Agora, dou-t'a eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.

TRISTEZA

O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma... E fico a ouvir
Silêncios da minh'alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando...

E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longínqua estrela em mim atua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade...

A MINHA DOR

Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh'alma que eu julgava
Já fora desta vida e deste mundo!

E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fosse livre e não escrava!

Meu espirito é treva e dor sem fim.
Todo eu sou dor e morte. Sou franqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim

Pregar a noite, a lagrima, a incerteza,
A luz que, para sempre, anoiteceu...
Esta envolvente, essencial tristeza,

Tristeza original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Choro de ouro inundando terra e céu!

Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusório ser crucificado
Lembra um morto fantasma de Jesus...

E aos pés da minha cruz, no chão magoado,
A tua Ausência é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.

Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-posto,
Se fez incerta, frágil e enganosa!

Em meu ser desenhou-se um novo rosto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgosto.

Vejo sombras á luz da minha dor...
Sombras talvez de eternas Criaturas
Que vivem na alegria do Senhor...

E quem sabe se os Mortos, nas Alturas,
Vivem na paz de Deus, em sítios ermos,
Entre flores, sorrisos e venturas?...

E quem sabe se as dores que sofremos
E nosso corpo e alma, não são mais
Que as suas vagas sombras irreais?...

Ah, nós somos ainda o que perdemos...

A MÃE E O FILHO

Teu ser tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vai através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.

E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao ver teu espirito adorado,
Assim tão só na noite e arrefecido
E todo de ermas lágrimas molhado!

E eis que ele diz: "Ó Mãe, não chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!"

E só nas horas em que a Mãe descansa,
É que ele inclina a fronte de criança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!

AUSÊNCIA

Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!

Tua bendita e efêmera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa boa e maternal Paisagem,

Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Cor
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!

E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.

E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se ocultou.

Quando chego à janela, vejo o inverno;
E, à luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.

Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluídos
Traços da tua Imagem, arremedo

Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...

Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não ver...

A voz da minha dor, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha

Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silêncio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!

E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausência trágica! E no fundo

De mim próprio que vejo? Acaso alguém?
Só vejo a tua Ausência, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!

A tua Ausência é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...

Quem traz o outono ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?

É a tua Ausência, Amor, que vem turvar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!

O Sol é a tua Ausência que se abrasa,
A Lua é tua Ausência enfraquecida...
Da tua Ausência é feita a minha vida
E os meus versos também e a minha casa.

TRÁGICA RECORDAÇÃO

Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!

Julgo que ele ainda vive; e que, lá fora,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!

Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abismo aberto...
Pesadelo de treva e nevoeiro!

Ó visão da Criança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Vinicius de Moraes (Brotinho indócil)



A insistência daqueles chamados já estava me enchendo a paciência (isto foi há alguns anos). Toda a vez era a mesma voz infantil e a mesma teimosia: 

- Mas eu nunca vou à cidade, minha filha. Por que é que você não toma juízo e não esquece essa bobagem... 

A resposta vinha clara, prática, persuasiva: 

- Olha que eu sou um broto muito bonitinho... E depois, não é nada do que você pensa não, seu bobo. Eu quero só que você autografe para mim a sua Antologia poética, morou? 

Morar eu morava. É danadamente difícil ser indelicado com uma mulher, sobretudo quando já se facilitou um bocadinho. Aventei a hipótese: 

- Mas... e se você for um bagulho horrível? Não é chato para nós ambos? 

A risada veio límpida como a própria verdade enunciada: 

- Sou uma gracinha. 

Mnhum - mnhum. Comecei a sentir-me nojento, uma espécie de Nabokov avant la lettre, com aquela Lolita de araque a querer arrastar-me para o seu mundo de ninfeta. Não resistiria. 

- Adeus. Vê se não telefona mais, por favor... 

- Adeus. Espero você às quatro, diante da ABL. Quando você vir um brotinho lindo você sabe que sou eu. Você, eu conheço. Tenho até retratos seus... 

Não fui, é claro. Mas o telefone no dia seguinte tocou. 

- Ingrato... 

- Onde é que você mora, hein? 

- Na Tijuca. Por quê? 

- Por nada. Você não desiste, não é? 

- Nem morta. 

- Está bem. São três da tarde; às quatro estarei na porta da ABI. Se quiser dar o bolo, pode dar. Tenho de toda maneira que ir à cidade. 

- Malcriado... Você vai cair duro quando me vir. 

Desta vez fui. E qual não é minha surpresa quando, às quatro e ponto, vejo aproximar-se de mim a coisinha mais linda do mundo: um pouco mais de um metro e meio de mulherzinha em uniforme colegial, saltos baixos e rabinho de cavalo, rosto lavado, olhos enormes: uma graça completa. Teria, no máximo, treze anos. Apresentou-me sorridente o livro: 

- Põe uma coisa bem bonitinha para mim, por favor? 

E como eu lhe respondesse ao sorriso: 

- Então, está desapontado? 

Escrevi a dedicatória sem dar-lhe trela. Ela leu atentamente, teve-um muxoxo: 

- Ih, que sério... 

Embora morto de vontade de rir, contive-me para retorquir-lhe: 

- É, sou um homem sério. E daí? 

O "e daí" é que foi a minha perdição. Seus olhos brilharam e ela disse rápido: 

- Daí que os homens sérios podem muito bem levar brotinhos ao cinema... 

Olhei-a com um falso ar severo: 

- Você está vendo aquele Café ali? Se você não desaparecer daqui imediatamente eu vou àquele Café, ligo para sua mãe ou seu pai e digo para virem buscar você aqui de chinelo, você está ouvindo? De chinelo! 

Ela me ouviu, parada, um arzinho meio triste como o de uma menina a quem não se fez a vontade. Depois disse, devagar, olhando-me bem nos olhos: 

- Você não sabe o que está perdendo... 

E saiu em frente, desenvolvendo, para o lado da avenida.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Ruth Farah (1932 - 2017)


Ruth Farah Nacif Lutterback nasceu em Cantagalo/RJ, em 11 de abril de 1932 e faleceu em Nova Friburgo/RJ, a 21 de fevereiro de 2017. Filha dos libaneses Assad Miguel Nacif e Anna Farah Nacif.

Foi Rainha dos Estudantes e Rainha da Primavera de Cantagalo. Estudou em Cantagalo e fez vários Cursos de Especialização para o Magistério Primário em Niterói e Rio de Janeiro. Lecionou e dirigiu várias Escolas do Município,vindo se aposentar com 39 anos de efetivo exercício. 

Participou do Colóquio Internacional “Caminhos da Memória” a convite da UNESCO. 

Fez parte da Coletânea “DEVEMOS VER COM OS OLHOS LIVRES” da ABL e FD (75º lugar dos 6000 professores concorrentes) e de várias Antologias Literárias, entre as quais,“BRAZILA ESPERANTO PARNASO”, de Syla Chaves
e Neide Barros Rego. 

Obteve aproximadamente duzentas premiações em prosa e verso.

Delegada da UBT (União Brasileira de Trovadores), realizava anualmente os Jogos Florais de Cantagalo.

Responsável pelo Departamento Cultural da ASSEXCA (Associação dos Experientes de Cantagalo) em parceria com a JUVENTROVA, promovia concurso para estudantes a fim de despertar novos talentos trovadorescos.

Escreveu “Um pingo de OS SERTÕES” a fim de facilitar o entendimento do fato que deu origem à grande obra de Euclides da Cunha.

Em sua homenagem, a biblioteca da escola municipal Ewandro do Valle Moreira foi batizada com o nome "Sala de Sonhos Ruth Farah Nacif Lutterback".

Fontes:
União Brasileira de Trovadores - Seção Porto Alegre/RS. Trovas de Ruth Farah e Milton Nunes Loureiro. 
Coleção Terra e Céu LIV. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.


Mario Quintana em Prosa e Verso 7



A BELA E O DRAGÃO

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos... Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLÍ, o dragão te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

APARIÇÃO

Tão de súbito, por sobre o perfil noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: a lua! - a lua ensanguentada e irreconhecível de Babilônia e Cartago, dos campos malditos de após-batalha, a lua dos parricídios, das populações em retirada, dos estupros, a lua dos primeiros e dos últimos tempos.

EPÍLOGO

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.

ESTUFA

Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo...

INFERNO

Em suave andadura de sonho, sob uma infinita série de arco-íris celestiais, anjos me conduziam num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens, que formavam alas para me ver passar. Mas eu me debruçava inquieto a uma e outra janela: faltava-lhe alguma coisa. Faltava... Faltavam os meus desafetos. Eu só queria era ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos num palanquim de ouro!

O ESPIÃO

Bem o conheço. Num espelho de bar, numa vitrina ao acaso do footing, em qualquer vidraça por aí, trocamos às vezes um súbito e inquietante olhar. Não, isto não pode continuar assim. Que tens tu de espionar-me? Que me censuras, fantasma? Que tens a ver com os meus bares, com os meus cigarros, com os meus delírios ambulatórios, com tudo o que não faço na vida!?

TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA

Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!... O momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da máquina, envolvidos os dois no mesmo pano preto, como um duplo monstro misterioso e corcunda... O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar: Fogo!

Fonte:
Mario Quintana. Sapato florido. São Paulo: Globo, 2005.

Vinicius de Moraes (Batizado na Penha)



Eu sou um sujeito que, modéstia à parte, sempre deu sorte aos outros (viva, minha avozinha diria: "Meu filho, enquanto você viver não faltará quem o elogie..."). Menina que me namorava casava logo. Amigo que estudava comigo, acabava primeiro da turma. Sem embargo, há duas coisas com relação às quais sinto que exerço um certo pé-frio: viagem de avião e esse negócio de ser padrinho. No primeiro caso o assunto pode ser considerado controverso, de vez que, num terrível desastre de avião que tive, saí perfeitamente ileso, e numa pane subsequente, em companhia de Alex Viany, Luís Alípio de Barros e Alberto Cavalcanti, nosso Beechcraft, enguiçado em seus dois únicos motores, conseguiu no entanto pegar um campinho interditado em Canavieiras, na Bahia, onde pousou galhardamente, para gáudio de todos, exceto Cavalcanti, que dormia como um justo. 

Mas no segundo caso é batata. Afilhado meu morre em boas condições, em período que varia de um mês a dois anos. Embora não seja supersticioso, o meu coeficiente de afilhados mortos é meio velhaco, o que me faz hoje em dia declinar delicadamente da honra, quando se apresenta o caso. O que me faz pensar naquela vez em que fui batizar meu último afilhado na Igreja da Penha, há coisa de uns vinte anos. 

Éramos umas cinco ou seis pessoas, todos parentes, e subimos em boa forma os trezentos e não sei mais quantos degraus da igrejinha, eu meio céptico com relação à minha nova investidura, mas no fundo tentando me convencer de que a morte de meus dois afilhados anteriores fora mera obra do acaso. Conosco ia Leonor, uma pretinha de uns cinco anos, cria da casa de meus avós paternos. 

Leonor era como um brinquedo para nós da família. Pintávamos com ela e a adorávamos, pois era danada de bonitinha, com as trancinhas espetadas e os dentinhos muito brancos no rosto feliz. Para mim Leonor exercia uma função que considero básica e pela qual lhe pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as costas e os pés. Sim, para mim cosquinha nas costas e nos pés vem praticamente em terceiro lugar, logo depois dos prazeres da boa mesa; e se algum dia me virem atropelado na rua, sofrendo dores, que haja uma alma caridosa para me coçar os pés e eu morrerei contente. 

Mas voltando à Penha: uma vez findo o batizado, saímos para o sol claro e nos dispusemos a efetuar a longa descida de volta. A Penha, como é sabido, tem uma extensa e suave rampa de degraus curtos que cobrem a maior parte do trajeto, ao fim da qual segue-se um lance abrupto. Vínhamos com cuidado ao lado do pai com a criança ao colo, o olho baixo para evitar alguma queda. Mas não Leonor! Leonor vinha brincando como um diabrete que era, pulando os degraus de dois em dois, a fazer travessuras contra as quais nós inutilmente a advertimos. 

Foi dito e feito. Com a brincadeira de pular os degraus de dois em dois, Leonor ganhou momentum e quando se viu ela os estava pulando de três em três, de quatro em quatro e de cinco em cinco. E lá se foi a pretinha Penha abaixo, os braços em pânico, lutando para manter o equilíbrio e a gritar como uma possessa. 

Nós nos deixamos estar, brancos. Ela ia morrer, não tinha dúvida. Se rolasse, ia ser um trambolhão só por ali abaixo até o lance abrupto, e pronto. Se conseguisse se manter, o mínimo que lhe poderia acontecer seria levantar voo quando chegasse ao tal lance, considerada a velocidade em que descia. E lá ia ela, seus gritos se distanciando mais e mais, os bracinhos se agitando no ar, em sua incontrolável carreira pela longa rampa luminosa. 

Salvou-a um herói que quase no fim do primeiro lance pôs-se em sua frente, rolando um para cada lado. Não houve senão pequenas escoriações. Nós a sacudíamos muito, para tirá-la do trauma nervoso em que a deixara o tremendo susto passado. De pretinha, Leonor ficara cinzenta. Seus dentinhos batiam incrivelmente e seus olhos pareciam duas bolas brancas no negro do rosto. Quando conseguiu falar, a única coisa que sabia repetir era: "Virge Nossa Senhora! Virge Nossa Senhora!" 

Foi o último milagre da Penha de que tive notícia.

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Nilto Maciel (O Fim do Mundo de Sinhá)


A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não haverá de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.

Passo manso e torto, olhos nas pontas dos pés, amaldiçoava os bichos que a perseguiam, encostada na bengala lisa e ensebada. Pela primeira vez, depois de tanta solidão, pisava novos rastros. Vontade doida de dar um passeio, conversar de frente, recordar o antigamente, até aquela peste danada e tão passada, falar da chuva que sempre vinha e sempre ia. Buscou as veredas cobertas de mato, para cá e para lá, avistou a cabana de Meranda. Por que aquela criatura nunca mais havia aparecido? Oi de casa. Nem um só pio. Apurou os ouvidos. Pio, pio, pio. Escancarou a porta, passou, passou, trambecou, perguntou pelo café, nada de fogo nem de lenha. Decerto o povo andava na roça ou na cidade a comprar fazenda por mor de fazer roupa para os meninos. O mofo no canto da cozinha cobria o pote. Fogão apagado, panela nenhuma. De tamborete só a sombra. Esburacadas as paredes, furado o céu no telhado.

Sem jeito, saiu pela porta dos fundos, a tropeçar no passado. Essa Meranda! Cansada de carregar o tino, grudou-se à bengala lisa e vergou o corpo, murcho e leve, e só não conseguia voar, feito os passarinhos que beliscavam a mata branca de sua cabeça, porque nada a despegava da terra. Nem mesmo o abandono de parentes e aderentes. Fugir também? Não, não sentia medo de nada. Ora, se já ninguém existia no mundo, nada de fazer medo havia. Tudo morto, até o tempo. Fim de mundo, sim senhor. Pois donde nascer curumim, se não se via mais homem nem mulher? Ela? Não, nada daquilo era, nem mulher nem homem. Nem nunca tinha sido. Então só queria a fianga para se estender, descansar e dormir. Bem muito.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.