sábado, 9 de março de 2024

Maria Amália Vaz de Carvalho (O romance de Adelina)

(FRAGMENTOS DE CARTAS)

Meu pai, minha mãe, as pessoas que me cercam dizem-me continuamente que a vida é triste, que o dever tem sempre um aspecto difícil, que as quimeras da nossa imaginação nunca chegam a realizar-se...

Eu ouço-os, mas afirmo-te que não estou nada convencida.

Suponho às vezes que vejo a existência pelo avesso, que tenho um modo muito extravagante de compreender as coisas.

Ouço por exemplo chamar romanescas a todas as mulheres loucas ou desgraçadas.

Às que deixam seus maridos para seguir um sujeito de bigode e colete branco que lhes recitou versos ao piano entre dois candelabros; às que andam toda a vida à procura de um ideal que ora encontram, ora deixam, percebendo que se enganaram; às que usam olheiras e cabelos caídos, e falam do seu desespero inconsolado entre uma quadrilha e uma valsa.

Para mim essas mulheres são tudo menos romanescas.

Sabes ao que eu chamo romantismo?

A uma aspiração delicada, a tudo que é belo e bom. A um desejo ardente de perfeição que se não satisfaz facilmente. A uma tendência para idealizar os deveres e os sentimentos.

Crê, minha boa Thereza, que não há ninguém mais romântica do que eu!

Chego às vezes a ter medo de que isto seja um pendor funesto que me arraste a algum desvario.

No outro dia casou aqui uma prima minha.

É uma galante rapariga, bem educada e inteligente.

Encontrou o noivo uma dúzia de vezes, ele pediu-lhe licença para confessar aos pais que a amava muito.

Dali a dois meses, concluídos os preparativos, casaram-se.

Não se conhecem nada, mas como as fortunas, as idades, e as posições dos pais estavam em harmonia, concluíram que se haviam de dar otimamente.

Aquele casamento que agradou a toda a gente, consternou-me a mim.

O meu casamento há de ser o único romance da minha vida, mas afirmo-te que o quero bem longo, bem completo. Quero que as suas páginas luminosas lidas uma vez me dourem de misteriosa claridade todo o futuro. Quero amar o meu noivo para adorar eternamente o meu marido.

Dizem que o dever é sempre custoso de cumprir.

Conforme!

Eu tenho dezoito anos, e nunca até hoje liguei à ideia do dever uma ideia que não fosse de satisfação íntima.

Sou tão feliz em amar meus pais, em socorrer os desgraçados, em cultivar o meu espírito, em sacrificar os meus prazeres aos prazeres de alguém!

O sacrifício seja ele de que gênero for, parece-me uma dor suave, uma sensação de pungente delícia, que nos eleva e nos engrandece.

Só os que sabem sacrificar-se afirmam a sua superioridade.

Tenho medo de ser criminosamente aristocrata.

Parece-me que assim como as pessoas bem educadas nunca se deixam avassalar pela gula, pela violência dos apetites grosseiros, assim as almas finas não devem entregar-se a uma ambição desregrada de prazeres.

Sofrer é uma condição humana, mas há sofrimentos que são a mais requintada das doçuras.

Às vezes olho para minha mãe e lembro-me que se pudesse trocar a minha robustez pela sua débil saúde, a minha cabeleira densa e loura pelos seus lindos cabelos brancos, a minha alegria exuberante pelo seu sorriso meigo e sofredor, conheceria um grão de felicidade mais puro, mais alto do que todos os gozos que até agora experimentei.

E no entanto ao dar-lhe a minha mocidade, ao receber em troca a sua velhice, de certo que sentiria infinitas saudades!

Não se renuncia friamente a todas as esperanças do futuro!

Seria, porém, uma das tais dores que eu amo, uma daquelas tristezas divinas que fazem bem à alma e como que a depuram das imperfeições da terra.

Será isto romantismo, Thereza?
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Andam comigo agora de baile em baile, de soirée em jantar.

Imaginam que me enganam, os queridos velhinhos!

Eles que gostam tanto do cantinho do fogão, onde conversam, e se recordam de tudo que passou, fingem um súbito e inexplicável desejo de distrações mundanas.

Eu sigo-os com um sorriso malicioso que às vezes os assusta.

Sabes as minhas ideias, não é verdade?

Que garantias de futuro me daria a mim um marido apanhado a laço à luz dos lustres dourados, em uma sala de baile frívola e banal?

Não é aí que eu encontrarei decerto o noivo da minha alma!

Porque é que se não poderá aliar a poesia do coração com os deveres da realidade? Não entendo isto!

Pois só serão deliciosos os amores vedados?

A mim parece-me que a vida com o seu cortejo de dores, de deveres, de sacrifícios, de afetos, a vida com a sua manhã púrpura e gorjeada, com o seu meio dia luminoso em que rompe em ondas cristalinas a música triunfante dos vinte anos, com a sua tarde melancólica de uma doçura indefinida e dúbia, com a sua noite enfim, noite estrelada e calma, em que esmorecem e expiram todos os rumores da terra, é como que um poema completo, uma sinfonia em que há todas as notas, todos os tons, todas as expressões.

Os que amaldiçoam a vida, ou querem fugir das suas comoções naturais, procurando num meio artificial, numa atmosfera de estufa outros gozos, outros prazeres, outras angústias, são esses que não entendem a opulência harmoniosa da criação!

Ser filha, e noiva e esposa e mãe! Onde acharemos estados da alma mais completos que aqueles que resultam naturalmente destes modos de ser?

Aqui há tudo! Alegrias, dores, sobressaltos, esperanças, sonhos, arrebatamentos, êxtases inefáveis!

Não proscrevamos o romance da vida, pelo contrário identifiquemo-lo com a vida!

Ponhamos no nosso modo de sentir a maior porção de ideal, a que sejamos acessíveis.

Pensar que o dever só pode compreender-se terra a terra é amesquinhar e rebaixar o dever!

A paixão não precisa de ser criminosa para nos dar gozos supremos; creio mesmo que é o crime que a torna amarga aos lábios e dolorosa ao coração!
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Perguntavas-me no outro dia maliciosamente se eu faço a minha leitura predileta da Moral em ação.

Não faço.

Se há coisa que eu acho desmoralizador é um tratado de moral aquecido à frio.

Sabes quem são os meus mestres do bom e do belo? São Beethoven, Mozart, Haydn, os meus queridos e nobres artistas.

Cada dia me deixo levar mais apaixonadamente por este amor da música que me consola, e me levanta e por assim dizer me realiza todos os sonhos ambiciosos da minha alma.

Pressinto que se chegar na vida para mim uma hora sombria em que veja por terra os meus ídolos, a música há de me consolar de tudo!

Há pessoas que choram com a música. Foge sempre da música que faz chorar. É enervante, é perigosa e traiçoeira.

Mozart e Beethoven não enfraquecem, fortificam. Dão-nos à alma como um grande banho de ar puro.

Fazem-nos subir às alturas imaculadas e de lá ver tudo que é pequeno, efêmero, transitório aos nossos pés.

Ó Beethoven, se eu alguma vez for traída envolve-me nas tuas asas de luz!
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Eu não te disse que o meu romance existia algures, num misterioso recanto onde eu ainda não dera com ele?

Não me enganei.

Existe.

Tem vinte e cinco anos, há muita gente que diz que ele é feio. Eu acho-o simplesmente adorável.

Tem uns belos olhos escuros que a paixão ilumina, de que a ironia faz chispar faíscas sombrias, e que em horas de embevecimento e de ternura tem segredos doces de uma bondade inefável! Tem uma testa larga e pensativa, e uma boca desdenhosa como se o sarcasmo a houvesse afeiçoado.

Acham-lhe inúmeros defeitos, eu acho-lhe somente alguns.

Mas é para aqueles que a vida endureceu e azedou, que as almas moças devem abrir os mananciais da sua fé.

Ontem disse-me, depois de me ter ouvido tocar piano durante três horas, que eu lhe fizera tanto bem, que se esquecia por amor de mim, do mal que todos os outros lhe tinham feito.

Estas palavras que em outra boca seriam uma banalidade, na boca dele pareceram-me um juramento que vinculava para sempre as nossas duas vidas.
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Três anos de silêncio! Como é que tu hás de perdoar-me, Thereza?

Mas se eu te disser uma coisa, só uma coisa, perdoas-me decerto.

Sou muito infeliz.

Quis talvez realizar o impossível, quis achar no amor de meu marido o conjunto de todos os amores de que eu me sentia capaz.

Fiz tudo para conservar a felicidade, e a felicidade fugiu-me.

Ele vê em mim um peso, uma prisão, talvez que um grande desapontamento.

Nunca me queixo. Para que?

A gente não deve se queixar, porque é uma humilhação escusada e inútil.

Procuro convencer-me de que na vida de todas as mulheres há destes tormentos ocultos que elas suportam ajeitando nos lábios um sorriso heroico.

Não renego nenhuma das minhas ideias. O dever consola, o dever compensa.

Não compreendo que, porque um faltou ao contrato ideal que fez com a consciência, o outro deva faltar também.

Enquanto ele me quiser junto de si, hei de dar-lhe toda a minha vida, feliz deste sacrifício sem recompensa..

Iludi-me porque lhe quis muito, e perdoo-lhe por que me iludi.
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Ontem, minha mãe, a pobre velhinha que sucumbe às agonias da sua recente viuvez, dizia-me diante do berço de meu filho desamparado, do meu órfãozinho, cujo pai vive ainda: — Acabou-se tudo! Naufragamos todos três!

Pelo contrário! Agora é que tudo começa!

Não imaginas a coragem e a energia que eu sinto em mim!

Sou eu, minha mãe e meu filho.

Uma que quase perdeu a consciência, o outro não a tem ainda. Sou eu que preciso pensar e trabalhar por todos três.

Na grande desgraça que me feriu, a ideia de que sou necessária, de que me tornei indispensável aos entes a quem mais quero, inoculou-me no espírito dilacerado uma força superior.

Mas como foi que tudo isto sucedeu? – perguntas tu cheia de pasmo.

Não sei! Uma mulher que passou, uma artista que tinha em talento, o que lhe faltava em coração e que o levou atrás de si, satélite desprezível, de um astro caído.

Não tenho saudades dele, crê que não tenho.

O homem que eu amei era uma nobre e digna criatura, incapaz de transigir com a honra, e de submeter-se à tirania dos apetites brutais.

Tinha defeitos, era violento, apaixonado, irascível, mas era honesto.

Esse homem morreu, ou não existiu nunca.

O que fugiu não se parecia com ele.

Quando estou só, estremeço às vezes com um asco intraduzível de mim própria.

Quem é que se consola das máculas de um tal amor?

Eu não te disse, que se tudo me faltasse, os meus velhos mestres, os meus amigos, as almas sonoras e transparentes que sabem traduzir em sons tudo que há de belo na natureza, as cores, os perfumes, as linhas, o mundo da matéria e o mundo do espírito; eu não te disse que eles me consolariam e me haviam de amparar?!

Chegou o momento supremo.

Chamei-os e não faltaram ao meu apelo.

Mostrei-lhes o meu coração partido, o meu orgulho machucado, as minhas ilusões desfeitas e disse-lhes: – Consolai-me! – Mostrei-lhes o meu filho pequenino, e a minha mãe decrépita, e disse-lhes: dai-lhes pão!

E ouviram-me as almas adoráveis!

Sinto em mim a virilidade augusta dos fortes.
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O meu Arthur tem hoje quinze anos.

É um formoso adolescente, louro e tímido como uma virgem.

Vivemos eu e ele numa casinha de um bairro tranquilo e retirado.

De dia ele frequenta o liceu, e eu dou as minhas lições de música, à noite lemos, conversamos e tocamos juntos.

Todos os anos, num dia certo, fazemos uma romaria piedosa.

Vamos visitar ao cemitério o túmulo de pedra, pobre e modesto, onde dorme o seu tranquilo sono a minha querida mãe.

Foram serenos e doces os últimos dias que ela viveu na terra.

Ajudou a criar o meu Arthur, que era tão endiabrado e travesso como hoje é tranquilo e cismador!

Eu saía de casa muito cedo, e deixava-os juntos a papaguearem alegremente, porque não há nada que ilumine a tristeza dos velhos como a alegria dos netos.

A princípio era doloroso aquele trabalho monótono de ensinar os princípios da música, mas quando vi desenvolver-se em casa o conforto devido aos meus pertinazes esforços, cobrei nova coragem e alentos novos.

Saía com mais ânimo e voltava com mais alegria.

Em mim faziam-se dois trabalhos: Procurava habituar-me à minha nova existência e apagar da memória o meu passado enganoso.

Tivera o meu romance, e o romance deixara-me na boca o travor amargo das coisas insalubres!

Em todo o caso, nunca me arrependi de ter aspirado saciar a minha sede de ideal, nas fontes puras do coração.

Era mais feliz na minha infelicidade, que os outros nas suas alegrias!

A minha vida de professora, fazendo-me penetrar em muitas casas, deu-me ensejo para conhecer melhor o mundo.

Encontrei muita gente alegre e satisfeita que me causou profundo dó.

Marido e mulher separados pelas ideias morais, pelas crenças religiosas, pelas ocupações, pelas índoles diversas, pelo modo contrário de encarar as coisas; unidos somente por um laço, o hábito; por uma força, as conveniências sociais.

Oh! Antes o meu desamparo, antes o abandono em que eu fiquei na flor da vida!

Conheci muitas mulheres que procuravam no turbilhão mundano consolação para íntimas tristezas; outras, que me confessaram chorando, que a ingratidão e a inconstância do marido as arrastara à perdição, ao desprezo de si próprias.

Não as repeli, porque não tinha direito para ser implacável; lamentei-as, não porque as achasse dignas de lástima, mas porque me pareciam dignas de desdém!

Como se o crime posterior da mulher, não fosse a justificativa do crime anterior do marido!

Ser boa e digna e virtuosa, quando tudo nos ajuda a isso, grande milagre!

Na solidão, no abandono, na injustiça do mundo, é que a honestidade da mulher se purifica!

Se meu marido não houvesse fugido de mim, deixando-me nos braços uma criancinha de meses, como poderia eu conhecer as lutas da vida e ter saído triunfante das provações da desgraça?

Não imaginas, querida amiga, como hoje é doce e tranquilo o meu outono!

Em primeiro lugar, o querido anjo que eu eduquei sozinha, depois a música, as flores e os bons livros. Falta-me a minha mãe querida, mas essa morreu abençoando-me!

Ao domingo, quando eu e Arthur nos achamos bem sós, no nosso pequeno gabinete de trabalho, chego a conceber a beatitude do paraíso.

Sento-me ao piano e toco, toco até me sentir sem forças.

Converso longamente com os amigos da minha mocidade, com os que me vestiram a alma da cristalina armadura que resistiu a todos os atritos da miséria humana.

Conto-lhes as luminosas aspirações da minha adolescência, a ideia que eu fazia da abnegação, do amor, do sacrifício; e os esforços que empreguei para me cingir sempre a essa ideia levantada e superior.

Conto-lhes o belo instante radioso em que na minha vida desabrochou a flor misteriosa que eles me haviam ensinado a julgar o prêmio mais doce de um coração cheio de fé. E com que extremos eu cultivei essa flor que um dia se desfez em cinzas nas minhas trêmulas mãos! E como a doce ilusão de a possuir me fizera melhor!

Depois conto-lhes a tempestade que subitamente fez sobre mim a sua explosão sinistra, e o meu desamparo e a minha dor fulminante, e o vacilo tremendo em que eu vi tudo que julgara imutável prestes a desabar, deixando-me só ruinas!

Foi então que o amor deles me salvou, foi então que as suas vozes divinas me chamaram, e que, na esfera elevada em que eles moram, eu me senti penetrar da calmaria adormecedora de todas as paixões ruins!

No outro dia, depois de tocar duas horas, esquecida de tudo, procurei meu filho e achei-o de joelhos ao pé de mim.

Tinha a gentil cabeça loura mergulhada nos meus vestidos, e, quando levantou os olhos cheios de lágrimas, disse-me com uma voz em que se fundiam todas as músicas:

— Ó mãe, Deus te abençoe, porque foste ultrajada e traída, e eu posso amar-te e respeitar-te.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Décimo Aniversário da Sunshine


Hoje, 8 de março é o décimo aniversário de minha cadelinha que mora comigo, a Sunshine (Shine para os íntimos). Quando a recolhi da rua, ainda filhote junto com sua irmã de infortúnio, a Cléo (que morreu novinha de infarto fulminante), ela estava muito ruim, e por cerca de 1 semana eu estive cuidando dela, dia e noite. À noite eu dormia com as duas no meu colo. Hoje está uma moçona linda, cruzamento de Husky Siberiano com sei lá quem, ou como digo brincando, com Cruz Credo. 

Então excepcionalmente, a trova acima é para esta cadela maravilhosa, que hoje é ela quem cuida de mim 24hs por dia.







Newton Sampaio (Damião)

Naquele passo, a estrada se pôs mais estreita. Sinal de que a mata ia aparecer na primeira curva. Damião espiou pra cima. Era uma só faiscação, o sol. Chegava a doer, de tão claro, de tão quente. Pisou o chão, odiando quase. Mas o chão sabia se vingar. A vingança era a poeira. E era também aquele bafo que sufocava — o bafo da terra ressequida.

Deu mil graças a Deus quando alcançou a mata. Entrou nela, com vontade.

Reconheceu o guaretá (espécie de árvore) raquítico na exibição diuturna do tranco enfezado. E a canelinha, pletorada de folhas. A canelinha era bem um archote verde à beira da estrada. E aquela pindaíba, então? Parecia um urso. No entanto, os cipós se lhe espiralavam avidamente no tronco, como serpentes enfurecidas. A pindaíba, mais os cipós, tinham a expressão fugace de dois seres hostis em empenhado conflito.

Respirou profundamente. Sentiu-se dono de tudo aquilo. Dono dos caules que tomavam em cima aquela disposição confusa e resolviam-se abaixo da superfície naquele emaranhado de raízes possantes. Dono da folharia que silhuetava sobre o caminho, só pra formar abóbada rendada e não deixar o sol entrar do jeito que quisesse.

Dono do riacho humilde, esgueirando-se por aqui, por ali. Abaixou-se, a lavar o suor. E, com a mão em concha, bebeu até não poder mais.

Depois foi andando, com passo lerdo. De tão distraído, uma vareta de lambe-papo lhe queimou a epiderme. Reagiu incontinenti. E tomou tento de sua obrigação. 

Baitacas em bando traçavam um rastilho verde no céu do sertão. Teve, de supetão, uma bruta vontade ser baitaca...

Chegou no paiol do Malaquias. Foi só o tempo de entregar o bilhete, trepar na carroça, e fazer estalar o chicote. A arrancada dos animais aumentou o alarido dos guapecas. O cuidado na direção não lhe facultava espiar a simetria caprichosa do cafezal — o cafezal que se perdia de vista nas requebras do monte.

Nem ligou. Estava enjoado daquilo...

O menino o que queria era chegar em tempo na casa do coronel. Por isso nem percebeu que em pouco apareceu certo ventinho. O vento foi ficando mais forte, mais forte, movendo com energia as copas das árvores. E erguendo muito o pó da estrada. E revoluteando-o em espirais ralas. Já, em redemoinhos mais espessos.

Lá em cima, inumeráveis nuvenzinhas apareceram, avolumando-se logo. Deslocaram-se. Uniram-se. Compuseram outras maiores, que subiam no céu, escurecendo-o. Quando Damião deu em si, a tempestade estava desencadeada. 

Caiu um raio no lado sul. E o trovão, largo tempo, ficou reboando. Tinham dificuldade em vencer o caminho os animais, mas Damião não queria saber disso. Fustigava-os, sem piedade. Até com o cabo do chicote. Assim ele se vingava das chicotadas que lhe dava a chuva. A chuva batia no rosto, emplastrava os cabelos, atravessava a roupa. No Fundão do Santo, viu o negro Ezequiel, na porta da tapera, de mãos supinas, carapinha à mostra, orando, orando.

Passou de largo, afrouxando as rédeas. Ezequiel pisou o terreiro e abriu os braços, feito uma cruz. Damião sofreu um medo louco do feiticeiro.

Doíam perdidamente os braços. E a carroça pesava cada vez mais. Pensou em descansar no primeiro rancho. No primeiro? Virgem Maria! Era o rancho dos leprosos. Fez o sinal da cruz com a mão canhota.

Na volta do Faria a chuva se pôs mais branda. E como estava ansioso por demonstrar ao patrão a presteza com que agira, a intervenção heroica feita no negócio do doutor Henrique, dispensou qualquer descanso.

Atravessou o terreiro da casa grande com o coração batendo forte. Aquele baticum era mais de orgulho pela sua proeza. Desceu, lépido. E viu um cavalo arriado no toco. Entrou. Vinha encharcado, ofegante. Apenas o viu, gritou o coronel. 

— Nhengo do inferno! Só agora?

E meteu um tabefe medonho no menino.

Damião, sem compreender coisíssima, rolou no chão. Parecia um possesso o coronel. Sapecou-lhe um pontapé de classe.

— Toma, vagabundo. Toma, pra criar vergonha.

Ninguém tentou a defesa. Sabiam todos como era o coronel Florêncio.

O caboclinho fugiu pra cozinha, manquitolando, em soluços. Sentiu crescer, dentro do peito, um ódio de morte. Então ele fizera o impossível para salvar o negócio, e era assim que o recompensavam?

Chorou, baixinho. Nem as lágrimas se viam. Elas faziam corpo com a água escorrendo do cabelo, escorrendo...

Frederiquinho, vestido de marinheiro, muito janota, ficou na porta, espiando. Enquanto isso, o coronel Florêncio dizia impropérios.

A chuva o livrara do incêndio do paiol. Mas não o livrara de outro fogo — que tal era a má-fé do doutor Henrique.

Repetiu uma porção de vezes:

— Doze contos! Canalha... Doze contos! Vai me pagar. Ah, se vai.

Pra que serve a garrucha do Benedito? Pra quê?

Naquela noite, Damião jurou que havia de fugir da fazenda.

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 06/11/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 3


AMOR À TERRA

Amo-a (hoje) como só amanhã
a deveria amar. Amo-a, mas ainda
em viagem.
Por antecipação. Como a um sol,
entre ouro e obtuso.
Monstruosa estrela já em desuso.

Já relegada para um verso
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AMOR DE CABOCLO

O caboclo na sua choupana,
à hora em que a tarde desmaia vestida de chita
está pensando naquela estrangeira bonita
que viu apanhando café na fazenda.
(Os grãos de café debulhados
pareciam rubis e esmeraldas redondas
caindo em balaios dourados)

Um par de bois vagarosos rodeia rodeia
fazendo rodar os cilindros da moenda
uns agarrados aos outros
por dentes rombudos de pau.

Passa gritando no céu sertanejo
o último pica-pau.

“Ela não é brasileira...
Ela veio outro dia
trazendo goiabas maduras
na cesta dourada.

Ela parece de tão estrangeira
uma formiga ruiva.
Mas por ela (ele pensa)
eu era capaz de fazer uma casa
e de plantar uma goiabeira...”

E já sentia na boca
o caldo das melancias com cheiro de terra
e o gosto matutino das goiabas…
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A NOTÍCIA

Então o vento
lá dentro da serra,
onde apenas havia
o barulho insensato
das coisas sem nome
começou a bater
a bater rataplã
no tambor da manhã.

Então os ecos
saíram das grutas
levando a notícia
por todos os lados.

Então as palmeiras
ao fogo do dia,
em verde tumulto,
pareciam marchar
carregando bandeiras.

Depois veio a Noite
e os morros soturnos
levavam estrelas
por vales e rochas
como uma silente
corrida de tochas…
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AS 4 IRMÃS E O AMIGO

A uma ofereci um Cristo.
A outra dei um relógio
(um relógio de parede)
A terceira abre a janela.
A última recebe o amigo.
Meu amigo que não veio
e um dia virá da rua.

A primeira em cujo peito
o alvo Cristo chora sangue,
fica a minha cabeceira,
quando sofro, em duro leito.
A segunda conta as horas,
forçando-me a ser exato
entre as mais tristes demoras...

A terceira, pitoresca,
tem sobre o seio uma rosa
estampada em tinta fresca.
A última é a que recebe
o meu pão de cada dia,
o jornal, de manhã cedo;
é a que guarda o meu mistério,
e fica a porta da rua
que vai para o cemitério.

Com a primeira me confesso.
Com a segunda conto as horas.
Com a terceira olho a paisagem.
A última – é o que lhe peço –
será noiva do meu corpo
numa viagem sem regresso.

Ó Cristo de olhar antigo,
ó minhas horas de espera,
ó flor azul da janela!
Ó minha futura noiva
que estás a porta da rua,
onde estará meu amigo?
Meu amigo que não veio?
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BAIRRO POBRE

A italianinha que vende frutas
passou com a carrocinha pintada de novo
levando toda uma alvorada brasileira
feita de abacaxis, de melancias gordas,
e bolas roxas de maracujás.

(Não há nada mais interessante do que a gente
observar por um vão de janela a alma simples do povo)

Quando ela passa no anil redondo da manhã,
com o seu vestido verde e seu lenço amarelo
preso à cabeça, às vezes penso (não faz mal)
que ela fez seu vestido e seu lenço
de uma bandeira nacional.

No quadro vermelho da tarde
O Brás lembra um grande cartaz de letreiro vivaz.

Depois vem a noite e vem com ela
um varredor de cascas de laranja.
Um lampião cor de gás numa esquina da rua
passa a maior parte da noite a piscar o olho verde
arremedando a lua como um bobo.

O último poeta passadista
sob o noivado da garoa
quando abre a boca e canta
parece que está segurando e espremendo o silêncio
pela garganta.
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BALADA PARA MINHA MÃE

À hora difusa, decomposta,
em que as perguntas terrenas
ficam no ar, sem resposta;
em que as coisas maiores do mundo
nos parecem pequenas;
em que se arrancam as palavras
ao nosso corpo moribundo
como se arrancam pobres penas
à asa de um pássaro ferido;
à hora crucial dos vãos confrontos
e das inúteis cantilenas,
não se dirá de mim, ao certo,
que houve a mais triste das cenas;
nem se dirá que minhas mãos
semeando o mal, como semearam,
terão a cor das açucenas
se para o bem foram pequenas. . .
À hora sem brilho, sem resposta,
minhas mágoas serão serenas;
pois há um nome que foi feito
pra ser pronunciado por último
por ser uma sílaba apenas. . .

Beatrix Potter (O Conto de Tom Gatinho)


Era uma vez três gatinhos, e seus nomes eram Mittens, Tom Gatinho e Moppet.

Eles tinham seus próprios casacos de pele; e eles tropeçavam na soleira da porta e brincavam na poeira.

Mas um dia a mãe deles – a Sra. Tabitha Twitchit – tinha amigos esperados para o chá; então ela trouxe os gatinhos para dentro de casa, para lavá-los e vesti-los, antes que as visitas chegassem.

Então ela escovou o pelo deles (esta é a Mittens).

Então ela penteou suas caudas e bigodes (este é Tom Gatinho).

Tom era muito travesso e arranhava.

A Sra. Tabitha vestiu Moppet e Mittens com aventais e calças limpas; e então ela tirou todos os tipos de roupas elegantes e desconfortáveis de uma cômoda, a fim de vestir seu filho Thomas.

Tom Gatinho era muito gordo e tinha crescido; vários botões estouraram. Sua mãe os costurou novamente.

Quando os três gatinhos estavam prontos, a Sra. Tabitha imprudentemente os levou para o jardim, para ficarem fora do caminho enquanto ela fazia torradas quentes com manteiga.

“Agora mantenham suas roupinhas limpas, crianças! Vocês devem andar sobre as patas traseiras. Fiquem longe do poço de cinza, e de Sally Henny Penny, e do chiqueiro e dos patos.”

Moppet e Mittens caminhavam cambaleantes pelo caminho do jardim. Logo elas pisaram em seus aventais e caíram de nariz.

Quando elas se levantaram, havia várias manchas verdes!

“Vamos escalar o rochedo e sentar no muro do jardim”, disse Moppet.

Elas viraram seus aventais de trás para frente e subiram com um um salto; a manta branca de Moppet caiu na estrada.

Tom Gatinho era incapaz de pular quando andava sobre as patas traseiras em calças. Ele subiu o rochedo gradualmente, quebrando as samambaias e derrubando botões à direita e à esquerda.

Ele estava todo em pedaços quando alcançou o topo da parede.

Moppet e Mittens tentaram puxá-lo juntas; seu chapéu caiu e o resto de seus botões estourou.

Enquanto eles estavam com dificuldades, ouvem um pit pat pit pat! e os três patos vieram pela dura estrada, marchando um atrás do outro e fazendo o passo de ganso – pit pat pit pat! pit pat pit pat!

Eles pararam e ficaram em fila, olhando para os gatinhos. Eles tinham olhos muito pequenos e pareciam surpresos.

Então as duas patas, Rebeccah e Jemima, pegaram o chapéu com abas grandes e os colocaram.

Mittens riu tanto que ela caiu da parede. Moppet e Tom desceram atrás dela; os aventais e todo o resto das roupas de Tom saíram na descida.

“Venha! Sr. Drake Pato”, disse Moppet – “Venha e nos ajude a vesti-lo! Venha e abotoe Tom!”

O Sr. Drake Pato avançou lentamente de lado e pegou as peças de roupas.

Mas ele as colocou em si mesmo! Elas se encaixavam nele ainda pior do que Tom Gatinho.

“É uma manhã muito bonita!” disse o Sr. Drake Pato.

E ele, Jemima e Rebeccah Pato começaram a subir a estrada, mantendo o passo – pit pat, pit pat! pit pat, pit pat!

Então Tabitha Twitchit desceu o jardim e encontrou seus gatinhos na parede sem roupas.

Ela os arrancou da parede, bateu neles e os levou de volta para casa.

“Meus amigos chegarão em um minuto e vocês estão terríveis; estou muito brava”, disse a Sra. Tabitha Twitchit.

Ela os mandou para cima; e lamento dizer que ela disse a seus amigos que eles estavam de cama com sarampo; o que não era verdade.

Pelo contrário; eles não estavam na cama: nem um pouco.

De alguma forma, houve ruídos muito extraordinários acima dos convidados, que perturbaram a dignidade e o repouso da festa do chá.

E acho que um dia terei que fazer outro livro, maior, para contar mais sobre Tom Gatinho!

Quanto aos Patos, eles foram para um lago.

A roupa saia toda na hora, porque não tinha botões.

E o Sr. Drake Pato, e Jemima e Rebeccah, estão procurando por elas desde então.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Tom Gatinho. Publicado originalmente em 1907 como The Tale of Tom Kitten. Disponível em Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Vitória da Conquista/BA)


Conquista, joia do sertão baiano;
Esperança ridente do brasil
A ti, meu orgulho soberano.
O afeto do meu peito juvenil
A ti minha esperança no futuro
Os sonhos do meu casto coração,
És e sempre serás meu palinuro*
Ó pérola fulgente do sertão

Refrão:
Conquista tesouro imenso...
O mais belo da Bahia,
Que primor, que louçania
Tem mais brilho aqui o sol;
Conquista terra das rosas,
De florestas seculares,
Tem mais amor em seus lares,
Que luzes no arrebol.

(refrão)

Deixar o doce encanto destas ruas,
Deixar teu céu que tanto bem almeja,
Eu morreria de saudades tuas
Minha querida terra sertaneja,
Entretanto, se a pátria me exigir,
Deixar-te para a pátria defender
Este afeto bairrista é vã mentira,
Pelo brasil inteiro irei morrer!

(refrão)

Surge o sol, fogem pássaros dos ninhos!
Todos vão venturosos trabalhar;
Eu também imitando os passarinhos
Deixo o morno regaço do meu lar,
Para a escola caminho satisfeito,
Da pátria vou saber as glórias mil
Conquista, que emoção vibra em meu peito...
Ao fitar-te no mapa do brasil.

(refrão)
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*Palinuro = piloto, guia.

Estante de Livros (“Angústia”, de Graciliano Ramos)

Apesar de Vidas Secas (1938) ser considerada a obra emblemática do escritor alagoano Graciliano Ramos, o romance Angústia é uma de suas obras-primas, mesmo que ignorado pela crítica na época de sua publicação, em 1936. Segundo o professor Fabio Cesar Alves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, da USP, Angústia é o terceiro romance do autor – os dois anteriores são Caetés (1933) e São Bernardo (1934) – e foi lançado quando Graciliano Ramos ainda se encontrava preso, sem processo nem acusação formal, pela polícia política de Getúlio Vargas.

“A contragosto do próprio Graciliano, o romance sai com ele ainda na prisão. Inclusive os companheiros de cela fazem uma festa para comemorar dentro do presídio a publicação de Angústia e ele autografa vários exemplares para seus companheiros, que eram pessoas como Eneida de Moraes, Olga Benário e Aparício Torelly”, conta o professor. “De certo modo é um livro que vem à tona num momento muito crítico da vida brasileira”, acrescenta.

Segundo Alves, “a questão fundamental é que nesse romance, em particular, Graciliano Ramos, que já é autor de uma obra bastante introspectiva, consegue unir essa introspecção à crítica social, que é própria da geração de 30”. Para o professor, Angústia é um romance que promove uma espécie de amálgama entre a tomada de consciência do País nos anos 30 e a introspecção e o subjetivismo próprios dos romances anteriores.

Penso que esse livro dá conta dessas contradições que estavam em jogo nos anos 30 e, ao mesmo tempo, mostra uma espécie de falta de horizonte do Brasil e desse personagem-narrador, que é o Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida, num momento de modernização acelerada do País. ” E nesse sentido, segundo o professor, é bastante atual, porque procura mostrar também o que permanece de patriarcal, de escravista e de atrasado na nossa estrutura e na nossa vida social. “O saldo é extremamente amargo. É uma denúncia daquilo que permanece insuperável.

O professor explica que Luís traz lembranças de uma abolição recém-proclamada, do patriarcado – representado pelo seu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva – e do velho mundo da fazenda, que, de certo modo, esse narrador procura recuperar no seu presente, o Brasil moderno dos anos 30.

“Para Luís, Julião Tavares, com quem disputa o amor de Marina, representa a burguesia arrivista que ele tanto odeia. É o poder do dinheiro e não mais da posição social herdada. Portanto, há um confronto entre o velho País colonial e o novo País que começava a ser construído a partir da era Vargas”, relata. “O Luís é uma espécie de desambientado em Maceió, porque ele vem dessa oligarquia rural e decadente, que faz ressoar a biografia do próprio Graciliano, que também é um ramo empobrecido da oligarquia nordestina”, comenta o professor.

Além disso, o tom da narrativa é totalmente delirante. “É um livro contado em estado de delírio. O Luís da Silva abre delirando e fecha sua confissão delirando, porque a não separação entre o real e o irreal é uma das tônicas dessa personalidade do protagonista, a tal ponto que de fato não há consequências para a ação que ele comete no final do romance, que é o assassinato de Julião Tavares”, analisa Alves, lançando a hipótese de que talvez esse crime nem tenha acontecido de fato.

Para falar da exuberância da narrativa, o professor cita o crítico literário Antonio Cândido (1918-2017), que disse ser bastante incomum essa característica nas obras de Graciliano Ramos, autor conhecido por seu estilo seco, conciso e direto. “ Angústia é o contrário disso. É um livro bastante derramado, bastante gorduroso, mas tudo isso está a serviço dessa lógica delirante do Luís, dessa mentalidade perturbada de um sujeito que se vê acuado na Maceió moderna dos anos 30”, informa.

Segundo o professor, a perspectiva pela qual ele lê a realidade – as associações entre passado e presente – está colocada toda sob essa chave da deformação expressionista. “É curioso, porque Graciliano, um realista no sentido forte da palavra, se vale das técnicas de vanguarda para dar conta dessa situação delirante do Luís.

Outra curiosidade, diz o professor, são os dois títulos propostos para o livro que não foram adiante. O primeiro, Um Colchão de Paina se refere ao colchão da prisão em que Luís se imagina depois de cometer o crime contra Julião Tavares, e 16384 ao número do bilhete de loteria com o qual Luís sonhava para ganhar dinheiro e conquistar, efetivamente, o amor de Marina.

Como as outras narrativas de Graciliano, o que está em jogo, em Angústia, é o ataque à sociedade burguesa. 

Angústia lançado no período em que Graciliano Ramos estava preso – de março de 1936 a janeiro de 1937 –, é uma narrativa escrita em um momento de Estado de exceção no Brasil, diz Alves. “O Estado Novo começa em 1937, mas a perseguição à esquerda e a qualquer pessoa considerada subversiva começa em abril de 1935, com a Lei de Segurança Nacional”, lembra o professor. “Portanto, é uma narrativa que vem no fluxo dessa perseguição. Há nesse romance um mundo concentracionário muito marcado, com uma atmosfera densa e opaca da história brasileira naqueles anos, que aparece como atmosfera da narrativa. ”

O professor ainda comenta que, assim como as outras narrativas de Graciliano Ramos –  Caetés São Bernardo e, depois, Vidas Secas -, o que está em jogo em Angústia também é o ataque à sociedade burguesa e ao conservadorismo. “Enfim, a todas essas manchas que parecem superadas e que nos dizem respeito nos dias de hoje.

É por isso que a literatura e as humanidades incomodam tanto. Porque elas mostram um aspecto do País que não é o desejado”, acredita Alves, ressaltando que há uma dimensão de enfrentamento do real que aparece não só em Graciliano Ramos, mas em Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, entre outros grandes autores. “A literatura brasileira é uma forma de pensar o País.
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ENREDO
O narrador-personagem e protagonista Luís da Silva, acaba de se recuperar de uma grande crise que o acometeu há 30 dias e o derrubou na cama, delirante e com febre. É a história desta crise que ele conta nas páginas seguintes.

A virada na vida de Luís, homem sem posses mas de algumas economias, acontece quando ele começa a se envolver com a vizinha, Marina. Ela é descrita como uma mulher forte e de personalidade, e mais tarde Luís começa a pintá-la no livro também com jeito de interesseira. A relação entre os dois começa a se desenrolar com alguns encontros no quintal, mas logo assumem um compromisso.

Quanto mais se envolvem, no entanto, mais Marina passa a exigir: para se casar, precisa de enxovais, roupas de cama, móveis, tecidos. Luís acaba com todas as economias na esperança de mantê-la por perto, e chega a se endividar para seguir presenteando a noiva. Até que o terceiro elemento do triângulo amoroso de “Angústia” aparece na história.

Julião Tavares é um homem, na visão do protagonista, degenerado. Descrito como inconveniente e repulsivo, ele conquista a atenção de Marina. Afinal, apesar de não vir de uma família tradicional, é herdeiro de uma loja de tecidos e rico. Para a vizinha de Luís isso bastava. Aos poucos, o protagonista e sua noiva vão se distanciando, até que ela começa a se encontrar com Julião. O novo pretendente a corteja com jantares, a leva no teatro e a presenteia com roupas.

Com o desenrolar do romance, a raiva de Luís só cresce. Além de endividado comprando tudo o que poderia oferecer à vizinha, acabou abandonado. Ele passa a perseguir Marina, vigiando seus passos, em uma obsessão. E nota quando ela é abandonada por Julião – que logo começa a namorar outra moça.

O narrador também relata ter escutado uma conversa de Marina com sua mãe em que ela confessa ter engravidado de Julião, e dias depois a segue quando ela vai ao encontro de uma parteira conhecida por fazer abortos. Luís confronta Marina e ela pede que a deixe em paz.

Tomado pela raiva, Luís decide seguir um ímpeto que já tinha em sonhos: matar Julião. Com uma corda que ganhou de um andarilho, ele espera o rival sair da casa da nova namorada e o ataca pelas costas, sufocando com a corda. Depois, pendura o corpo em uma árvore para simular um suicídio.

Esse final, foi o grande acontecimento que perturbou o protagonista e o deixou em estado de delírio.

Fonte: por Cláudia Costa, artigo “Angústia”, de Graciliano Ramos, une introspecção e crítica social, para o Jornal da USP em 14 nov 2023.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 24

 

A. A. de Assis (A moça do jipe)

Seu Nando vivia ali pacato e bom, baixinho, redondo, discreta calva, solteirão, atendendo a cidadezinha na venda de secos e molhados. Se deu que porém a moça passante brecou o jipe lhe passando um susto, não muito pelo de repente do impacto, mas pela explosão da imagem. Aquela coisa louca, aquele jeitão de rir. Seu Nando tremeu total. 

Queria a moça informação sobre a estrada que levava a uma praia próxima. 

– Se quiser vou junto. Posso mostrar o caminho. Preciso mesmo ir lá, volto de ônibus. 

– Sobe aí, tiozão! 

Zuuuuuuuuuuuuummmmmmmm... Tremeu de novo Seu Nando. Agora sim de medo. Moça maluca, 140 por hora naquele jipe trotão. De agradecimento, deu-lhe ela na chegada um beijo. Na boca. Seu Nando ensandeceu de vez. Retribuiu grudando a moça, que todavia gostou. Rolaram na areia, rolaram no mar, a noite chegou. Na aldeia, no dia seguinte, o bochicho. Sumiu Seu Nando. Uns, que o viram entrar no jipe, se espantaram mais ainda. 

Comunicaram às autoridades, botaram notícia na rádio, espalharam de boca em boca o misterioso evento. Ele tão bom homem, nunca perturbara ninguém, vendeiro prestativo. Chegaram a supor que a moça do jipe fosse extraterrestre. 

Quase um mês mais tarde, já davam Seu Nando por inencontrável: afogado, engolido por tubarão, levado pra outro planeta... Até que noutro de repente reapareceu ele, a barba crescida, a roupa em trapos, a cara de quem andara metido em muito complicada encrenca. 

– Depois eu conto o que aconteceu. Agora quero é tomar um banho, comer um bife enorme, dormir umas 24 horas. Avisem por aí que estou vivo. 

Geral curiosidade, só satisfeita no outro dia, com a presença de repórteres, fotógrafos, e os ouvidos atentos do lugarzinho inteiro. Seu Nando tinha ido com a tal garota litoral acima, até a Bahia. Contudo, acabado o dinheiro dele, ela evaporou-se. Nem chegara a saber o nome dela. 

– Voltei de carona num caminhão. Desci no trevo e de lá vim caminhando. 

Sorte dele que o gerente do banco entendeu a história, refez-lhe o crédito. E o bom homem se reinstalou atrás do balcão, de onde oito meses após ouviu outra freada. 

– Olhe aqui, tiozão! Trouxe pra você a sua obra. 

Ela desceu do jipe mostrando a enorme barriga. Voltara para ter o bebê onde ele começara a ser feito. Seu Nando acolheu-a, pouco se importava se o filho era seu ou não. Pagou as despesas do parto, do berço, das roupinhas. Ofereceu casamento. 

Porém cadê a moça?... Do jeito que rechegou, de novo magicamente sumiu. 

Criou-se a criança engatinhando ali na venda, assistida pela bondade de umas senhoras vizinhas. Ele um homem de tão generoso coração, baixinho, redondo, discreta calva, pela segunda vez abandonado no pique dos seus melhores sonhos. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07.3.2024)

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