sábado, 13 de abril de 2024

Mia Couto (A Gota)

Após os bombardeios, a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão, é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs, dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente, e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.

Ao final da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo, Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha senhora vai empertigada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira fosse o seu trono e Diamantino fosse o seu povo.

— Devagar, Diamantino! — comanda dona Teófila. E acrescenta: — Estás farto de saber que esta poeira é um veneno.

O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.

Desde os bombardeamentos que não chove nem sopra a mais tênue brisa.

Foi como se as bombas tivessem rasgado e vazado as nuvens. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a poeira perpétua dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.

O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta dona Teófila, numa mutilada sombra, enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido.

Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.

— Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto — vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama: — Por que tanto insistes em falar de mim, mulher?

— Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes. — responde dona Teófila.

Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma.

Apesar desse céu fechado — de onde para sempre se ausentou o sol e a lua — dona Teófila não abdica do seu guarda-sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.

— Os pássaros já começaram a voltar — afirma dona Teófila. — Gostava que os pudesses ver, Diamantino.

— A verdade é que não os escuto — avisa o marido.

— Mas já andam por aí — insiste dona Teófila. — Não tarda que comecem a cantar.

— Onde pousam esses pássaros, se as árvores morreram?

— Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes. Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.

Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara caída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte: — Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos à casa, vais lavar esse trapo.

— Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.

— Olha, está a passar agora uma garça! — proclama dona Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido. — É pena não veres, é tão branca, parece um anjo...

— Por que é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça. Tudo mentira, tudo pura mentira.

— Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.

O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Dona Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes perambulam como sombras por detrás dos escombros.

Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. “Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos”. É o que diz dona Teófila.

— Quando falas, mulher — reclama o homem —, espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são venenos mortais.

— Tem que haver pessoas, Diamantino — insiste a esposa. — Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente — prossegue dona Teófila. — Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigênio.

Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.

— Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara — acusa dona Teófila. — Continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.

— Não entendo nada do que dizes, mulher — comenta Diamantino.

— Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? — interroga-se dona Teófila. — Desconfio que à noite deixas de ser cego.

Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido percebe de que Teófila se levanta e caminha por si mesma.

O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.

Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe de que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.

— Veio ao funeral, Diamantino?

— Funeral? Funeral de quem?

— Da Marlu. Morreu esta noite.

Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva a mão ao rosto para se certificar de que ainda existe.

— Não sei o que dizer — murmura ele. — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.

— O que se passa, Diamantino? — espanta-se um dos vizinhos. — Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.

— Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? — pergunta um outro vizinho.

Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa à casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.

Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, disso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta: — Já germinou?

— Já despontam duas pequenas folhinhas — responde uma voz toldada pela comoção.

Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.

Fonte> Mia Couto. O Caçador de Elefantes Invisíveis. Editorial Caminho, 2021.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

José Feldman (Versejando) 135

 

Contos das Mil e Uma Noites (Um Cádi astuto)

Não esqueçamos que Deus colocou os juízes no mundo para julgar as aparências. É somente Ele que julgará as intenções e os pensamentos escondidos.

Conta-se que havia certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.

Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe: 

– “Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.” 

O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso. 

– “Todos me conhecem como conhecem meu amo,” resmungou o escravo desanimado. “Devo achar outros meios.” 

Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e alcachofras. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde. 

– “Esta é a minha oportunidade,” decidiu o escravo. 

Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo: – “Salve Mustafa!” 

O mestre do forno reconheceu-o e respondeu: ”Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?”

- Nada, exceto o peru.

- Mas este não te pertence, meu irmão.

- Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.

- Se for assim, estou pronto a te entregar - disse o cozinheiro – Mas que direi ao homem que o trouxe?

- Acho que ele não voltará. – replicou Mobarak num tom evasivo. – Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada. 

O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a limpar o prato. Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para levá-lo, o cozinheiro disse-lhe: “Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.” 

O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva: “Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?” 

Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles. “Estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,” disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiavam o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida. 

Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando: “Vou sodomizar este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da terra!” 

O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles. Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou: “Que tens a dizer a respeito do peru?” 

Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu: “Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou voo, foi-se e não mais voltou.”

Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou: “Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo, o cádi?” 

Mas o cádi repreendeu-o com indignação: “E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que Aquele que ressuscitará todas as criaturas no Dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?”

Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou: “Glória a Alá que ressuscita os mortos!” e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.

Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe: “E tu, que tens contra este homem?” O marido expôs sua queixa.

E o juiz pronunciou a seguinte sentença: “O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez. 

Ouvindo essa sentença, o marido declarou: “Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.

Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue.

Sentenciou então o juiz: “A evidência é decisiva. A indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?”

- Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.

– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o por baixo do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto? 

Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou: “Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!”

E saiu, seguido por todos os membros de sua tribo. A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi. 

Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 5


CÉU E MAR

O dia marinheiro
todo vestido de sol branco
andava navegando com os marujos
de solavanco em solavanco
a prometer-lhes mundos nunca vistos nem sonhados

em mares nunca antes navegados
tudo por conta de outro dia
que mais adiante aparecia
e a mesma coisa prometia.

Luas marítimas, logo após,
nadavam no silêncio da amplidão
por onde a noite, caravela de carvão
levava a bordo uma porção de estrelas nuas.

Como era doída no outro dia
a dor da repetição!
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CIDADEZINHA DO INTERIOR

Uma ermida e um curral
como que para dizer, por inocência,
que o Menino Jesus não nasceu entre rosas,
mas entre bois.

Logo depois brota a cidadezinha branca.
É uma menina, ainda descalça.

As casas tortas de janela azul
dançam de roda, da mãos dadas.

Há duas bandas de música, logo de começo,
uma da oposição e outra dos canários.
Todos os dias da semana são domingos de ramos.

Dentro da ermida
nossa Senhora brinca de pular corda num arco-íris.

Cada enterro parece uma festa
e cada procissão lembra um rio de gente. . .
Não há iluminação, há muitas luas.
E os bois passeiam pelas ruas, fundadores.
Até que um dia o legislador das posturas municipais se impacienta
e manda proibir os bois de passearem nas ruas.
Como se a origem da cidadezinha branca não fosse um curral
e como se o Menino Jesus não houvesse nascido entre bois
quem sabe se o legislador das posturas municipais
pensa que o Menino Jesus nasceu entre rosas?

Se pensa, é por inocência.
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COMPETIÇÃO

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.

O pássaro é belo.
Muito mais belo é hoje o homem
voar.

A lua é bela.
Muito mais bela é uma viagem
lunar.

Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.

A onda é bela.
Muito mais belo é uma mulher
nadar.

Bela é a montanha.
Mais belo é o túnel para alguém
passar.

Bela é a nuvem.
Mais belo é vê-la de um último
andar.

Belo é o azul.
Mais belo o que Cézanne soube
pintar.

Porém mais belo
que o de Cézanne, o azul do teu
olhar.

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.
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CONSCRITO

Sofro, não só por mim mas pelos outros,
dentro da ordem que me foi imposta.
Não flores levo, mas um ramo, apenas,
de perguntas – são flores sem resposta.

Erros que recebi, toda uma herança
da vida que foi sempre a face oposta
ao que eu quisera ser, eis minha luta,
de sol a sol, em pedregosa encosta.

Somos irmãos, mas eu sei que o não somos,
e em o provar – é uma secreta aposta –
sofro mais que sofrer por uma imagem.

Sofro e, por força de uma lei suposta,
pego em armas e vou, herói cruento,
(e absurdo) defender meu sofrimento.
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DEIXA ESTAR, JACARÉ

Jacaré da lagoa
você nunca esteve triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
quando a lua parece, de tão nua,
um corpo branco de mulher.

Você cresceu e as lagartixas e os lagartos tão
bonitos verdolengos não cresceram. . .
viraram bichos de jardim.

Só você, jacaré,
foi que cresceu assim!

Mas olhe, escute uma coisa:
quando a felicidade é tão grande
que chega a passar da conta,
a gente deve desconfiar
porque, como diz o povo:
deixa estar, jacaré. . .
a lagoa há de secar.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Recordando Velhas Canções (Brigas, nunca mais)


Tom Jobim/ Vinicius de Moraes

Chegou, sorriu, venceu, depois chorou
Então fui eu quem consolou sua tristeza
Na certeza de que o amor tem dessas fases más
E é bom para fazer as pazes, mas

Depois fui eu quem dela precisou
E ela então me socorreu
E o nosso amor mostrou que veio pra ficar
Mais uma vez por toda a vida
Bom é mesmo amar em paz
Brigas, nunca mais
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A Harmonia do Amor em 'Brigas Nunca Mais’

A música 'Brigas Nunca Mais', composta por Tom Jobim, um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores da Bossa Nova, aborda a dinâmica de um relacionamento amoroso com suas idas e vindas emocionais. A letra inicia descrevendo a chegada de alguém que, após um momento de vitória, enfrenta a tristeza, e o eu lírico se apresenta como o consolador. Essa troca de papéis é comum em relacionamentos onde o apoio mútuo é essencial.

A música segue com a inversão da situação, onde o eu lírico agora é quem necessita de consolo e recebe o apoio da parceira. Essa reciprocidade demonstra a força do amor que, apesar das 'fases más', tem a capacidade de se renovar e fortalecer. A expressão 'é bom para fazer as pazes' sugere que os desentendimentos são oportunidades para fortalecer os laços afetivos.

O refrão 'Bom é mesmo amar em paz / Brigas, nunca mais' reforça a ideia de que a harmonia é o estado mais desejável para o amor. A repetição da frase 'nunca mais' enfatiza a decisão dos envolvidos em evitar conflitos futuros, priorizando um relacionamento pacífico e duradouro. A música, portanto, celebra o amor maduro que supera as adversidades e se consolida na paz e no entendimento mútuo.

Panorama da literatura indígena brasileira (entrevista com Julie Dorrico)

Entrevista realizada em 1 de julho de 2019, por Literatura RS
Texto e edição: Vitor Diel

Literatura indígena brasileira contemporânea, literatura de autoria indígena ou literatura nativa. As distintas designações referendam o mesmo tema: a produção escrita de autores representantes dos povos originários do Brasil. 

Este é o recorte ao qual a doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, Julie Dorrico, se dedica. Descendente do povo Macuxi, de Roraima, a pesquisadora fala com exclusividade ao Literatura RS sobre a rica história da produção literária de autoria indígena, seu (ainda tímido, conforme a entrevistada) reconhecimento pela Academia Brasileira e a situação da produção literária indígena em 2019 — declarado pela UNICEF como o ano internacional das línguas dos povos indígenas.

Fale-nos sobre o panorama atual da literatura de autoria indígena brasileira.

A literatura indígena brasileira contemporânea é um movimento literário que nasce para a sociedade envolvente na década de 1990. Esse movimento caracteriza-se no cenário nacional por sua autoria: a autoria coletiva e a autoria individual. Antes de tudo, convém enfatizar que até a década de 1990, era raríssimo encontrar obras publicadas que carregassem na capa ou na ficha catalográfica o nome de um indivíduo indígena. E mais raro ainda ele ser conhecido no país como autor ou mesmo escritor. Em 1980, já existia esse desejo de autoria pelos indivíduos indígenas; com isso, vemos algumas obras serem publicadas, como “Antes o mundo não existia”, de Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, do povo Desana. Ainda em 1975, Eliane Potiguara escrevia o poema “Identidade Indígena”.

Todavia, só na década de 1990 que a produção indígena torna-se mais pungente, caracterizando um movimento literário desde os indígenas: primeiro nas aldeias, com a autoria coletiva, a partir da educação escolar indígena, direito assegurado na Constituição Federal, de 1988, no artigo 210, graças à luta e organização de lideranças indígenas brasileiras. A autoria coletiva é uma produção realizada pelos alunos e professores indígenas que produzem materiais didático-pedagógicos que destinam-se ao ensino da sua comunidade, o ensino da sua língua materna em escrita alfabética e o ensino da língua portuguesa, bem como narrativas e outros saberes.

Segundo, com a autoria individual, com a publicação da obra “Todas as vezes que dissemos adeus”, de Kaká Werá, em 1994, e “Histórias de índio”, de Daniel Munduruku, em 1996, que demarcava o território simbólico das artes no Brasil. Kaká Werá e Daniel Munduruku são os pioneiros e, ouso dizer, idealizadores desse projeto literário que busca diminuir a distância e o desconhecimento da sociedade envolvente para com os povos originários. Hoje, a partir de um levantamento bibliográfico realizado por Daniel Munduruku, Aline Franca e Thúlio Dias Gomes, intitulado Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, é possível conhecer autores indígenas de diferentes etnias e suas publicações. Nesse trabalho, que está disponível online, é possível encontrar, na categoria da autoria individual, 44 escritores no total, sendo desse total, 11 mulheres. Sabemos que um autor, o René Khitãulu, da etnia Nambikwara, já é falecido, então seriam 43 vivos. Nesse levantamento, podemos conhecer ainda a lista de antologias, teses e dissertações, todas de autores indígenas.

Quantos povos indígenas nós temos no Brasil e quantos idiomas são conhecidos?

Segundo o Instituto Socioambiental, há no país 255 povos indígenas e 150 línguas diferentes. Mas é difícil precisar, em termos quantitativos, porque há grupos que atualmente estão em processo de retomada, isto é, passando a se autodeclarar indígenas, uma vez que tiveram suas identidade negadas e assassinadas, como os grupos existentes no Nordeste. Mais difícil ainda saber quais idiomas são mais conhecidos, porque em cada região há números diversos de povos com suas línguas maternas que na maioria das vezes ficam restritas aos próprios falantes daquela etnia.

Como você avalia a receptividade da Academia Brasileira à literatura indígena?

Considerando sua emergência na década de 1990, a procura maior das editoras na década de 2000, depois da publicação da Lei 11.645 de 2008 que torna obrigatório o ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras em todo o currículo escolar, ainda acho tímida a recepção desse segmento. O contraponto está na atuação dos próprios escritores que promovem concursos literários, como o Curumim, que premia professores da educação básica que trabalha com literatura indígena na sala de aula, e o Tamoio, que busca novos escritores indígenas para somar ao movimento. Ambos, Curumim e Tamoio, são realizados desde o ano de 2004 sob direção de Daniel Munduruku, com apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Você defende que para compreendermos a literatura indígena é fundamental partirmos de uma perspectiva correlacionada com expressões estéticas de natureza oral ou visual. Por quê?

Eu defendo que para compreendermos a literatura indígena temos de reconhecer que a estrutura do pensamento ameríndio é diferente do ocidental. Ou seja, é preciso reconhecer que os povos indígenas se orientam a partir do princípio de homem integrado à natureza, e o sujeito do ocidente segue a lógica binária e dual de homem versus a natureza. O primeiro caso ajuda-nos a perceber por que na expressão literária o sujeito tem uma relação sagrada com a natureza. É nesse espaço da floresta que os seres humanos e não-humanos habitam e conduzem os modos de vida tradicionais desses povos. Assim, obras como “Coisas de índio”, de 1996, de Daniel Munduruku, vai nos mostrar de modo didático como são as vidas nas comunidades; “Nós somos só filhos”, de 2011, de Sulamy Katy, como o próprio título sugere, nos leva a assumir que não somos donos da natureza, mas que somos seus filhos, só filhos. A própria noção de que os povos indígenas são os “verdadeiros donos da floresta” é totalmente equivocada justamente porque eles não têm essa relação de posse com a natureza, mas de filhos dela, portanto, seria mais correto dizer que eles são os “guardiões da floresta”, e isso eles são.

A natureza oral das comunidades tradicionais traduz-se em suas literaturas. Se a literatura brasileira tem por tradição um cânone que inaugura-se nas Cartas do período colonial, passando pelo Barroco, Romantismo, Realismo, Modernismo, Concretismo até as expressões mais contemporâneas, deve-se levar em conta que a tradição da literatura indígena reside na ancestralidade que vive na oralidade. Então, a literatura indígena nasce para a sociedade nacional quando os sujeitos indígenas adquirem a escrita alfabética e a publicação e passam a contar as suas histórias, mas para as sociedades tradicionais, como diz Kaká, a literatura sempre existiu, sendo anterior à escrita e ao impresso. A edição e a publicação significa, dessa forma, uma ferramenta para expressar-se, dialogar sobre pertencimento étnico e sobrevivência.

A Constituição de 1988 assegura a construção de uma política educacional para os povos indígenas com método específico. Como estão essas garantias em 2019?

A educação escolar indígena está presente em muitas aldeias do país. Todas elas funcionando com projetos específicos e diferenciados assegurados na Constituição Federal, de 1988, no artigo 210. Esse direito assegurado é resultado de lutas de lideranças indígenas, que também receberam o apoio da sociedade envolvente.

Em 2019, vemos um endurecimento do discurso nacional em relação aos povos indígenas. É natural estarmos todos apreensivos, por isso mesmo (é importante) o trabalho de artistas indígenas e intelectuais que trabalham para fortalecer a consciência dos povos indígenas e da sociedade nacional sobre a importância da terra, do direito à vida e às artes em geral, que foram tirados historicamente dos povos originários. Essa luta simbólica passa pela luta política, uma vez que a pauta central das causas indígenas situa-se no direito ao território. Sabemos que todas as políticas só podem ser efetivadas a partir do estabelecimento de um território — quero dizer que educação e saúde só serão possíveis para os povos originários se seus territórios forem respeitados e possibilitados.

Quais obras você recomendaria para apresentar essa literatura para quem ainda a desconhece?

Começo por recomendar alguns autores, como Daniel Munduruku, que possui uma variada produção, desde ensaio, memória, à literatura infanto-juvenil. Muitos autores indígenas escrevem para o público infantil e juvenil, e por isso mesmo às vezes são confundidos e de modo bastante equivocado tratados como quem produz uma literatura inferior. Kaká Werá diz que a estratégia de destinar o livro indígena a esse público está em reconhecer que ele é mais livre de preconceitos que os mais velhos. E eu ainda arrisco dizer que a sociedade brasileira ainda é criança quando se trata de cultura indígena. Não conhece seus povos dentro de seus estados, não sabe falar uma língua indígena, ao passo que o inglês é quase regra. Também indicaria mulheres indígenas: Márcia Kambeba, Auritha Tabajara, Sulamy Katy, de quem falei brevemente, Lia Minapoty e Maria Kerexu, que escreve com Olívio Jekupe. O próprio Olívio Jekupe, Yaguarê Yamã, Cristino Wapichana, que, como Daniel Munduruku, é vencedor do prêmio Jabuti, Ely Macuxi, Tiago Hakiy e muitos outros mais.

Livros recomendados por Julie Dorrico:
– “A mulher que virou Urutau”, de Olívio Jukupe e Maria Derexu.
– “Coisas de índio”, de Daniel Munduruku.
– “Coração na aldeia, pés no mundo”, de Auritha Tabajara.
– “Ipaty, o Curumin da selva”, de Ely Macuxi.
– “Nós somos só filhos”, de Sulamy Haty.
– “O lugar do saber”, de Márcia Wayna Kambeba.
– “O sonho de Borum”, de Edson Krenak. 
– “Puratig, o remo sagrado”, de Yaguaré Yamã.
– “Tardes de Agosto Manhãs de Setembro Noites de Outubro”, de Jaider Esbell.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Adega de Versos 122: Janske Niemann Schlenker

 

Eduardo Affonso (A invenção da linguagem)

Quando o primeiro ser humano descobriu que podia falar, antes de sair contando a novidade para todo mundo deve ter se dado conta da necessidade de dar nome às coisas – ou não teria nem como dizer que tinha adquirido o dom da fala.

Depois de milênios brincando de “imagem e ação” diante de qualquer evento – seja para dizer “eu te amo” ou “tem uma baratossaura pousada no seu ombro” – era um alívio poder simplesmente chegar e dizer “tem uma baratossaura pousada no seu ombro”, sem precisar levar os indicadores à testa imitando antenas, sacudir os cotovelos como se fosse levantar voo, e fazer cara de nojo.

Mas como dizer “tem uma baratossaura pousada no seu ombro” se nem o “ombro” nem a “baratossaura” tinham nomes, muito menos os verbos “pousar” ou “ter” (ainda mais no sentido de existir)?

O primeiro ser humano que descobriu que podia falar sentiu um peso maior sobre seus ombros ainda sem nome: nomear não só as coisas, mas também as ações, porque sem os verbos as palavras soltas não fariam muito sentido.

Vencida a etapa dos verbos e substantivos, o pobre ser humano deve ter entendido que havia a necessidade também dos adjetivos (era uma baratossaura pequenininha, de apenas dois palmos, ou uma daquelas que voam, e contra a qual não há tacape nem testosterona que deem jeito? Era um amor eterno e avassalador ou só um amorzinho legal agora à tarde enquanto os mamutes pastavam e os tigres dente de sabre faziam a sesta?). Vieram então os advérbios, as conjunções, os artigos definidos e indefinidos, o “que” relativo e todas aquelas malvadezas com as quais os professores de português nos torturaram.

Há de ter sido um desafio e tanto a nomeação do mundo. Olhar a baratossaura e pensar que nome sem muito valor para dar àquele bicho asqueroso. Olhar o ombro e imaginar um som que se ombreasse à beleza daquele patamar nascido da curva no final do pescoço e que iria morrer dali a pouco, em curva ainda mais bela, antes de virar braço. E criar palavras que se harmonizassem nessa sequência, fluindo sinuosamente – pescoço ombro braço.

Esse primeiro falante deve ter percebido que havia coisas demais no mundo, e que não daria conta sozinho. Aí chamou a família para ajudar (nascia a palavra “nepotismo”), e isso explica porque haja nomes tão esquisitos (dados pelo cunhado, talvez) e nomes esculpidos a cinzel (obra da cunhada); nomes tão límpidos (atribuídos pelo filho caçula), e outros tão obviamente equivocados (quem mandou chamar a sogra?).

Quem batizou a arara de “arara” deve ter sido uma criança. A mesma que nomeou o tatu, a cacatua, o jacaré, o pica-pau, o tico-tico e todos os bichos de nomes oxítonos ou onomatopaicos.

À filha teen coube dar nome ao beija-flor, ao bem-te-vi, à borboleta, ao arco-íris, à rosa dos ventos, ao bicho da seda, e às cores fúcsia, rosa-chá e off-white.

O cunhado denominou a fronha, o ornitorrinco, o fluxo piroclástico e as placas tectônicas (placas tectônicas e fluxos piroclásticos eram bastante populares naquela época).

Ele mesmo, o hipotético homem das cavernas, nomeou as coisas práticas (dia, noite, vida, morte, sexo, cerveja, chave de fenda, moto de quinhentas cilindradas, pênalti, impedimento, juiz ladrão).

A mulher criou palavras como ciclo, lua, cólica, leite, castigo, chantagem emocional, refogado, dor de cabeça, tédio, evasê, dupla jornada, empoderamento.

São indubitavelmente obra da sogra os nomes dados à bertalha, à seriguela, à alcachofra, à rebimboca e a todas as geringonças (sendo sua, inclusive, a invenção da palavra “geringonça”).

Por não terem inventado uma palavra que sintetize essa ideia, “eu te amo” continua, até hoje, difícil de dizer.

Fonte> Blog do Eduardo Affonso. 17 set 2019

Professor Garcia (Trovas do meu cantar) 1


A cama, em nossa morada,
entre os trapos do meu teto!...
E uma esteira remendada,
com mil fiapos de afeto!
- - - - - –

A cigarra destemida,
o seu disfarce me encanta,
por não ter nada na vida
e ser feliz quando canta!
- - - - - –

A dor que se intensifica
e amedronta os dias meus,
é pensar na dor que fica
depois da palavra adeus!
- - - - - –

À espreita de um novo encanto,
o orvalho que a noite chora...
E lágrima de acalanto,
que beija a face da aurora!
- - - - - –

Amai-vos!... Disse o Senhor,
Deus, no amor, tudo permite.,.
Por que limitar o amor,
se a regra não tem limite?
- - - - - –

A natureza resiste,
mas a tristeza do monte,
é enxugar o pranto triste
dos olhos tristes da fonte!
- - - - - –

Antes que a vida se acabe,
viva! Da vida eu sou fã.
Nem eu sei, nem você sabe,
se haverá outro amanhã!
- - - - - –

As cordas desafinadas
e esta voz chegando ao fim!...
São mimos das madrugadas,
guardados dentro de mim!
- - - - - –

A virtude que mais rego,
vive em mim, nunca passou;
E a fé que sempre carrego
de ser feliz como sou!
- - - - - –

Cadeira velha!... Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
- - - - - –

Cantar em noites de lua,
vagando pelas calçadas,
é o que faço pela rua,
na insônia das madrugadas!
- - - - - –

Cascata, teu pranto triste,
parece que não tem fim!...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
- - - - - –

Eu me curvo ante os conselhos
que recebo todo dia,
quando dobro os meus joelhos,
aos pés da Virgem Maria!
- - - - - –

Há, na visão de uma flor,
e no olhar de uma criança,
mil semelhanças de amor,
de inocência e de esperança!
- - - - - –

Mãe preta! Teu negro seio
deu-me o mais puro sabor;
nele eu bebi, sem receio,
a eternidade do amor!
- - - - - –

Mar aberto!... O sol se esquiva,
e a jangadinha, a vagar,
lembra uma lágrima viva
nos olhos verdes do mar!
- - - - - –

Não me esqueço!... E ao descrevê-la,
praça de minha ilusão!
Seu chão forrado de estrela
era a esteira do meu chão!
- - - - - –

Não se fere uma criança
nem se machuca uma flor!
Se uma é fonte de esperança,
outra é esperança de amor!
- - - - - –

Na primavera partiste,
e o monstro do tempo, ingrato,
deixou teu rosto mais triste
no velho porta-retrato!
- - - - - –

Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
- - - - - –

Pelas manhãs, vou buscando,
minha esperança perdida...
Há sempre um sonho vagando,
nas alvoradas da vida!
- - - - - –

Prazer é sentir os dedos
de nossas mãos artesãs,
pintando os lindos segredos
das auroras das manhãs!
- - - - - –

Primavera é foto linda,
de uma infância toda em flor!…
Parece que nunca finda
a primavera do amor!
- - - - - -

Quando a minha fé se esmera,
penso que tudo se alcança.
Por longa que seja a espera,
não perco nunca a esperança!
- - - - - –

Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia...
Saudade dói outro tanto
do tanto que já doía!
- - - - - –
Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Você abusou)


Composição: Tom Jobim

Você abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!

Mas não faz mal
É tão normal ter desamor
É tão cafona sofrer dor
Que eu já nem sei
Se é meninice
Ou cafonice o meu amor

Se o quadradismo
Dos meus versos
Vai de encontro
Aos intelectos
Que não usam o coração
Como expressão

Você abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!

Que me perdoe
Se eu insisto nesse tema
Mas não sei fazer
Poema ou canção
Que fale de outra coisa
Que não seja o amor

Se o quadradismo
Dos meus versos
Vai de encontro
Aos intelectos
Que não usam o coração
Como expressão

Você abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
Tirou partido de mim
Abusou!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Desamor e Poesia: A Essência de 'Você Abusou'

A música 'Você Abusou', interpretada por Maria Creuza, é uma expressão lírica que aborda a temática do desamor e da decepção afetiva. A repetição enfática do verso 'Você abusou! Tirou partido de mim' sugere uma relação onde houve exploração emocional ou desequilíbrio, onde um dos parceiros se sente lesado pelo outro. A canção reflete a dor e a resignação de quem foi prejudicado, mas também revela uma perspectiva madura ao reconhecer que o sofrimento amoroso é um sentimento comum e até mesmo banal ('É tão normal ter desamor').

A artista, ao mencionar o 'quadradismo dos meus versos', pode estar fazendo uma autocrítica ou uma reflexão sobre a simplicidade de sua expressão poética, que pode não ser bem recebida pelos 'intelectos que não usam o coração como expressão'. Essa passagem destaca a importância da emoção na arte e na vida, em contraste com uma abordagem mais racional e menos sensível. Maria Creuza, com sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade dos sentimentos envolvidos na experiência do amor e da dor.

Por fim, a música se fecha com a aceitação da própria limitação da artista em falar de outros temas que não o amor. Isso pode ser visto como uma declaração de que o amor, em suas diversas formas, é uma fonte inesgotável de inspiração artística e pessoal. A canção, portanto, além de ser um desabafo sobre uma experiência pessoal, é também uma reflexão sobre a arte de compor e sobre a universalidade do amor como tema central na vida das pessoas.