domingo, 9 de junho de 2024

Vereda da Poesia = 29 =


 Trova Humorística de Nova Friburgo/RJ

RODOLPHO ABBUD
1926 – 2013

Um longo teste ela fez,
de cantora com requinte:
– Cantou somente uma vez,
mas foi cantada umas vinte!
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO

E-MAIL

Deletei muitas coisas que me disse,
digitadas em seu computador;
assim que descobri que era tolice
guardar frases bonitas, sem amor.

Temendo que a memória me traísse,
deixei à vista as que me causam dor
para que, nunca mais eu me iludisse
e, em vão, corresse o risco de me expor...

Deletei muita coisa e, na verdade,
não pude deletar toda a saudade
que salvei num arquivo do meu peito...

Pois quanto mais tentava deletar,
mais vinha uma mensagem me avisar
que deletar saudades... não tem jeito...
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Aldravia do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)

Espelho
Meu
Espelho
Meu
Cadê
Eu ?
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Soneto de Portugal

LUÍS VAZ DE CAMÕES
Coimbra, 1524 – 1580, Lisboa

SONETO I 
         
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

      Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

  Verdades puras são, e não defeitos...
E sabeis que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!
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Trova Premiada  em Nova Friburgo/RJ, 2014

ARLINDO TADEU HAGEN 
Juiz de Fora/MG

O velho poeta inspirado
me lembra, em sua euforia,
tronco velho alimentado
pela seiva da poesia!
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Poema de Balneário Camboriú/SC

PEDRO DU BOIS
(Pedro Quadros Du Bois)
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC

CALMA

Na calmaria cede espaço ao cansaço.
Descansa o silêncio e se desentende
em ritos descontinuados. Desavenças
e calçadas ressoam passos. Acalma
o vento. Reclama ao vento a passagem.
Impressiona o sono em ideias aleatórias
de descobertas e conformismos. No
dito recupera da razão o lídimo saber
sobre a calma na alma despossuída.
Em passos atravessa a hora e despede
do gerânio a flor inacabada. Gira o Sol
em retorno: o dia permanece na explosão
sintética da espera. A calma na calúnia
desdita arrebenta os sinos entre torres.
O desafogo na morte: calma arrebatada
ao espírito. Acalma o corpo ao começo.
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Quadra Popular de Alandroal/Portugal

FERNANDO MÁXIMO

Melhorar nossa atitude,
de forma quotidiana,
é cumprir na plenitude
a razão da vida humana.
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Soneto de Volta Redonda/RJ

ANTÔNIO OLIVEIRA PENA

IMPROVISO

Não qual a estrela, na manhã serena,
à flor de um lago, quase a se esconder,
o modo peculiar de me envolver
com o riso à flor da boca, tão pequena!

Nem qual a ave do céu, que, junto ao ninho,
chama contente pelo companheiro,
em cujo peito o amor é mais fagueiro,
e é calmo, p’ra que haja algum espinho.

É várzea em flor, à noite, escondida,
emanando um perfume sem igual
à minha mal-aventurada vida...

(Quem dera fosse o seu olhar, quem dera!
a pino o sol, sobre esse mesmo val,
numa confirmação da primavera!)
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Trova de de Pau dos Ferros/RN

MANOEL CAVALCANTE

Puseste-me na clausura!
E hoje, em sonhos sem sentido,
eu me alimento da jura
que murmuras noutro ouvido…
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Poema de Maia / Porto / Portugal

JOSÉ CARLOS MOUTINHO

RIO TEJO

Tu que vens de tão longe,
Pequeno, quase criança,
Deslizas, crescendo pela avenida do teu leito,
Ladeado pelas alamedas,
Verdejantes, arborizadas e floridas
Das margens da tua vida,
Tornas-te adulto,
Mais maduro e belo,
Quando os raios solares,
Refletem no teu corpo,
És romântico com o luar,
És sereno quando queres,
Turbulento, quando te provocam,
Podes ser a alegria e a morte,
Exiges respeito!

Não corras tão depressa,
Porque vais perder-te no mar.

Um dia, recusaste-me,
Nas águas do teu ventre,
Devolveste-me à vida,
Toleraste a minha inocência!

Tens a grandeza da tua autoridade
Serás eternamente importante
Marcaste a minha vida.
Meu Rio Tejo!
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Haicai de Pedro Leopoldo/MG

WAGNER MARQUES LOPES

O mês é de agosto.
Ao sol, pipa sem cerol:
brinquedo bem posto.
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Setilha Sobre o Mar, de Bacabal/MA

MARIA ROSÁRIO PINTO

É bom pegar uma onda
É bom nos banhar no mar.
O mesmo mar que atraí
Sempre vem nos assustar
Nele nos purificamos
Por Yemanjá clamamos
Mãe! Vem nos ajudar.
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Trova de Orós/CE

FRANCISCO MARCONE DE LIMA

Há uma revolta contida
na mágoa que me consome.
Para alguns muita comida,
quando tantos passam fome!
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE:
Sofredor desde menino 
e tendo o sonho por meta 
quis saber qual seu destino 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
CAROLINA RAMOS 
Santos/SP

GLOSA:
Sofredor desde menino 
neste mundo deletério, 
sem instrução, sem ensino, 
seu destino era um mistério. 

Pelo mundo peregrino 
e tendo o sonho por meta 
o menino, em desatino, 
pensou até ser profeta. 

Nesta procura o menino, 
quase louco, pobrezinho, 
quis saber qual seu destino 
consultando um adivinho! 

Vejo uma luz reluzir 
no teu futuro de esteta, 
e posso te garantir, 
diz-lhe o cigano: - Poeta!
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Aldravia de Mariana/MG

ANDREIA DONADON-LEAL

bebo
nas
noites
tonéis
de
poesia
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Soneto do Rio Grande do Sul

ALMA WELT
Novo Hamburgo/RS, 1972 – 2007, Rosário do Sul/RS

A RISADA DA CAVEIRA

O estranho fato de existir a Morte
Só pode ser de Deus a brincadeira
De mau gosto, feia, um tanto forte.
Senão, vejam a risada da caveira:

Seu riso alvar, sarcástico, grotesco,
E o corpo estilizado de fantoche
Do mais puro estilo picaresco
De escultor chegado no deboche.

Também não dá pra gostar da fedentina
Do banquete dos vermes que outrora
Os poetas chamavam de vermina.

Perdoe-me o fiel que tanto reza,
Que acha tudo belo e tudo preza,
E não vê o absurdo sob a aurora...
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Trova Premiada  em Caxias do Sul/RS, 2012

ROBERTO TCHEPELENTYKY 
São Paulo/SP

Sobre a parreira, o luar
no sereno te retrata…
E os teus olhos a brilhar:
“Duas uvas”… cor de prata…
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Spina de Bragança/PA

ROSE ROSÁRIO

ENTRELAÇO DOS VENTOS

Orvalho, gotas primaveris
esperançando paz, amor;
Cantata colhendo ventos,

engravida de melodias, notas sublimes. 
Adentrando ouvidos nos primeiros raios, 
tempo introspecto move os pensamentos.
Natureza indomável faz estremecer, festeja
sentires, entrelaçando suas cores, sedentos.
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Trova de Bandeirantes/PR

ADALBERTO DUTRA RESENDE
Cataguazes/MG, 1913 – 1999, Bandeirantes/PR

Quem seu ciúme proclama,
fazendo questão de expô-lo,
insulta aquela a quem ama,
e ainda faz papel de tolo…
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Poema de Portugal

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa, 1919 – 2004, Porto

JARDIM PERDIDO

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.
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Poetrix do Rio de Janeiro

RICARDO ALFAYA

exposição

Enxugo dilemas
No varal, toalhas
Manchadas de poemas.
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Soneto de Campo Grande/MS

REGINALDO COSTA DE ALBUQUERQUE

PÁGINA VIRADA
 
Tarde da noite, em meio à quietude das ruas,
encontro nesta banca há muito abandonada,
no entulho de jornais e traças junto à entrada,
revista masculina, expondo moças nuas.
 
E tremo ao desfazer a página virada…
No encarte especial, fotografias tuas
em poses sensuais dizem verdades cruas
que sangram cicatriz que imaginei curada.
 
A propaganda exalta algum lugar distante…
A lua espreguiçada em seu quarto minguante
lança cintilações sobre esta saudade oca…
 
Por um momento a banca agita a velha porta…
Se o teu vulto é ilusão ou real, o que importa?
Aplaco a minha dor beijando a tua boca…
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS
(Antonio Augusto de Assis)

A laranja era tão doce, 
que o limão ficou com medo: 
– por inveja, ou lá o que fosse, 
acabou ficando azedo...
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Poema de Lisboa/Portugal

ARMANDO SILVA CARVALHO

A CHAVE INGLESA

Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

 Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

 Escreveu-me duas cartas
em cima de um trator
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.

Dicas de Escrita (Como Escrever uma Fábula) = 2

(por Danielle McManus, PhD*)

2 ESCREVENDO A HISTÓRIA DA FÁBULA

1 Preencha todo o seu rascunho. 

Uma vez que tiver um esboço dos principais componentes da história, comece a detalhá-los.

Estabeleça o ambiente e o relacionamento dos personagens com ele, que deve ser facilmente reconhecível e estar ligado diretamente aos eventos da história.

2 Coloque o enredo em ação.

Apresente o conflito entre os personagens com detalhes o bastante para que o conflito ou problema fique claro e implore por uma solução.

Avance com eficácia do evento para seu efeito. Não desvie do objetivo da história.

Tudo que acontecer na história deve ser direta e claramente relacionado ao problema e à sua resolução/moral.

Trabalhe para deixar o ritmo da fábula rápido e conciso. Não desperdice tempo com passagens descritivas desnecessariamente elaboradas ou com meditações sobre os personagens e seus arredores.

Por exemplo, em "A Lebre e a Tartaruga", o enredo evolui rápido do desafio para a corrida ao erro da lebre e, então, à vitória da tartaruga.

3 Desenvolva o diálogo.

Ele é um componente-chave para transmitir a personalidade e a perspectiva dos personagens. Em vez de descrever os traços deles de forma explícita, use o diálogo para ilustrá-los.

Inclua diálogos o bastante para ilustrar os relacionamentos entre os personagens e com a natureza do conflito que eles enfrentam.

Por exemplo, as duas características da tartaruga e da lebre são estabelecidas como equilíbrio e calma, de um lado, e arrogância e ansiedade, do outro, como podemos notar no tom do diálogo: a lebre costumava fazer troça da tartaruga por ela ser tão lenta. "Tu alguma vez chegas ao teu destino?", perguntou-lhe um dia zombando dela. "Sim", replicou a tartaruga, "e chego mais depressa do que pensas. Vamos fazer uma corrida e provar-te-ei". A lebre achou graça do desafio da tartaruga e, para se divertir, resolveu aceitar.

4 Crie a resolução.

Depois de mostrar a natureza e os detalhes do conflito, comece a avançar para a resolução dele.

Deve haver um relacionamento claro e direto entre as ações dos personagens, o desenvolvimento do problema e a ilustração da moral/resolução.

Deve haver uma solução para todos os aspectos do problema previamente estabelecido e de que não haja fios soltos.

Pegando de novo o exemplo da tartaruga e da lebre, a resolução ocorre quando a lebre arrogante dispara na corrida e para para tirar uma soneca, enquanto a equilibrada tartaruga simplesmente segue caminhando devagar, ultrapassando a rival adormecida mais tarde e alcançando primeiro a linha de chegada.

5 Articule a lição.

Quando o enredo da fábula tiver se resolvido, apresente a moral ou a lição da história.

Em fábulas, a moral da história costuma ser colocada em uma única frase incisiva.

Procure deixá-la de modo que resuma o problema, a solução e o que deve ser aprendido desta.

A simples moral de "A Lebre e a Tartaruga", por exemplo, é "Nem sempre quem muito corre é o primeiro a chegar". Ela engloba tanto o erro — ser preguiçoso e arrogante por ter confiança demais — e a lição a ser aprendida — que lentidão e persistência acabam vencendo rapidez e desleixo.

6 Escolha um título relevante e criativo.

Ele deve captar o espírito geral da história e ser atrativo o bastante para capturar a atenção do leitor.

Normalmente, é melhor esperar para fazer este Passo até escrever tudo ou ao menos até você ter o rascunho da história de modo que o título possa refleti-la de maneira geral.

Você deve escolher algo básico e descritivo, como a tradição das fábulas de Esopo (ex: "A Lebre e a Tartaruga") ou algo mais criativo e irreverente.
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continua…
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* Danielle McManus, PhD é Conselheira de Graduação em Davis, Califórnia. Completou seu PhD em Língua e Literatura Inglesa na UC Davis em 2013.

Recordando Velhas Canções (O barquinho)


Compositores: Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli

Dia de luz festa de sol
E o barquinho a navegar 
No macio azul do mar,  
tudo é verão o amor se faz
Num barquinho pelo mar
Que desliza sem parar
  Sem intenção nossa canção vai saindo
Deste mar e o sol
Beija o barco e luz, dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar 
e a vontade de cantar, 
céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho coração, 
deslizando na canção, 
tudo isso faz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então

O barquinho vai, a tardinha cai
O barquinho vai...
A tardinha cai o barquinho vai
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Namorada de Ronaldo Bôscoli, Nara Leão sempre o acompanhava nas excursões ao mar de Cabo Frio, que ele fazia com o par Menescal, um aficionado da caça submarina. Foi naquele ambiente praieiro que nasceu “O Barquinho”, um samba paisagístico que levou para o mar a bossa nova do amor, do sorriso e da flor.

Na vida real “O Barquinho” era o Thiago III, uma traineira com motor a gasolina e capacidade para dez passageiros, que Menescal alugava para transportar sua turma aos locais de pescaria. Dirigia o Thiago III o barqueiro Ceci, um tipo meio bronco que jamais acreditou serem seus passageiros “artistas de rádio”.

Rapidamente, “O Barquinho” deslizou para os primeiros lugares das paradas musicais, ganhando várias gravações como a de Maysa, mais apreciada até do que a de seu lançador, João Gilberto. Aliás, nessa gravação do João — informa Ruy Castro no livro Chega de saudade — o tecladista Walter Wanderley quase foi à loucura, por não conseguir reproduzir no órgão um ronco de navio, no exato timbre que o cantor insistia em lhe transmitir... com a voz. Finalmente, no arremate do disco, o maestro Tom Jobim conseguiu colocar nos trombones o tal ronco imaginado e desejado pelo João. 

Aparecido Raimundo de Souza (A menina dos olhos sem luz)

VOU CONTAR a história da menina Fernanda, uma jovenzinha de quinze anos, que morava com a sua tia, a dona Lurdes, em Aldeia da Serra, um bairro elegante de São Paulo, entre Barueri e Santana de Parnaíba. Apesar de todo o conforto oferecido, Fernanda carregava consigo um problema que a fazia diferente das demais mocinhas da sua idade. Seus olhos não viam. Não enxergavam um palmo adiante do nariz. Apesar dessa ablepsia, seu mundo (mergulhado em escuridão perpétua), não se mostrava hostil e aborrascado. A casa da tia Lurdes, se constituía em uma mansão elegante de dois andares, edificada num terreno imenso e bem cuidado, com árvores frondosas e plantas as mais diversas. A bem da verdade, um lugar elegantemente pitoresco e aconchegante, onde as cores mais exuberantes da natureza se mostravam em todo o albor da excelsitude* e realeza. 

Obviamente todas as maravilhas se faziam sentidas e vivenciadas por quem quer que ali chegasse. Em face da sua desdita, contrariando a tudo e a todos –, notadamente pelo seu coração (que possuía mil razões para se ver e se sentir amargurado), a pequena não se lastimava, nem choramingava pelos cantos. Tampouco se deixava ser levada ou abatida pela melancolia ou pela neurastenia do desespero. A consternação, por seu turno, não lhe tirava o foco. Tampouco o derrotismo, ou o desânimo avassalador, lhe enchiam o coração de medos e inquietações. Fernanda não se sentia, em momento algum, acabrunhada ou triste, levando em conta os sentidos vitais inerentes a sua visão não lhe propiciarem a chance, por menor que fosse, de vivenciar a magia contagiante do efêmero, nem que fosse por um milésimo de segundo. 

Sem se melindrar, ou se sentir ao nível do chão, a jovem agia dentro da normalidade, como se os seus olhos fossem perfeitos. Assim, as formas das coisas se moldavam em toda a sua plenitude, como a venustidade* que se fazia percebida de uma maneira que poucos poderiam acreditar e entender. Os males responsáveis pela sua “cegueira” agiam duramente como janelas fechadas em quartos ensombrecidos e lâmpadas queimadas. Para aumentar a degradante tristeza, que ela não sentia, seu “eu” interior maravilhado, não se fechara para o céu azul. Tampouco para o sol radiante e para as estrelas e a lua, quando, à noite, se prostravam no firmamento. Seu coração, mesmo norte, se fazia como uma vidraça corpulenta escancaradamente aberta para um universo paralelo de sensações imorredouras. 

Nesse unissonante paraíso, ela tocava as flores e conhecia as suas cores pelos cheiros e odores dos perfumes que exalavam. Mesmo tom, ao ouvir o vento, distinguia intimamente as paisagens que ele descrevia em suas canções. As pessoas que gravitavam ao seu redor, as empregadas, o motorista da tia, os parentes e os vizinhos que a conheciam, se quedavam em lamentações: “pobre menina! Que horror os seus olhos não capturarem as belezas que o Criador nos deu sem termos que pagar um centavo para desfrutarmos seus esplendores.” Mas Fernanda, ao tomar conhecimento dessas conversas meio que maquiavélicas, não dava a mínima. Limitava a se moderar em sorrisos indescritíveis. Sabia que, de certa forma, percebia, ou melhor, assimilava, nos mínimos detalhes... discernia mais que todo mundo, notadamente os que faziam parte do seu dia a dia, que o seu “eu” interior não vivia e não só vivia, sentia a verdadeira essência das coisas enroupadas numa majestade de beleza única e imperecível. 

As fragrâncias balsâmicas, em iguais passos, não se detinham   apenas em suas aparências. Elas se expandiam e voavam longe. Transcursavam para o divorciado (sic) dos sisudos muros que guarneciam as paredes da luxuosa construção. Certo dia, chegou ao seu conhecimento, que o Carlos –, um rapazote mais velho que ela um ano (morador quatro casas abaixo), tanto perturbou a sua mãe que, sem mais desculpas, a tal senhora se viu obrigada a bater na porta da suntuosa casa milionária. A tia de Fernanda, nessa ocasião, gentilmente atendeu as pretensões do menino, dando-lhe o acesso pleiteado. A mãe de Carlos trocou algumas palavras com a sua circunjacente, culminando com a tia aquiescendo com o encontro do garoto e a sua sobrinha. Com o ingresso do adolescente, permitiu que o púbere realizasse o seu sonho.  

A tia, apesar da nova amiga morar próxima, colocou um segurança discreto a observar o casal. Nesse interregno, convidou a mãe do piá*, para acompanhá-la até a cozinha, onde se sentaram e, enquanto os adolescentes trocavam impressões, dona Lurdes pediu para uma de suas funcionárias preparar um lanche para os convidados. O rapaz estava triste e abatido. Revelara à Fernanda que se sentia deveras insatisfeito. Apesar da pouca idade, seu sonho maior se constituía em ser pintor, porém, não sendo um profissional, e via outra* (sic), ter dado vida para uma grande quantidade de quadros, de repente lhe sucumbira a paixão pela arte. 
— Fernanda, como posso pintar novamente se faz tempo perdi o rumo, levando em conta não ver mais nenhuma beleza no mundo?

Fernanda agasalhou as mãos de Carlos entre as suas e as colocou direto sobre o coração. 
— “Sinta –, disse ela a certa altura. A beleza está aqui. – Para onde você olhar, sentirá a sua força avassaladora. Você só precisará ver com os olhos da alma, jamais com os olhos físicos. ”
O garoto, de pronto, entendeu a mensagem. Inspirado pela graciosa, dias depois recomeçou a pintar. Produziu quadros, como nunca antes havia ousado com seus pincéis. Desde então, matizou os sons do riso, eternizou as texturas da esperança e perenizou os aromas das aventuras. Graças a Fernanda, a menina dos olhos embaciados, ele descobriu uma vastidão ao seu redor de uma maneira jamais vista e sentida. 

Em conclusão dessa história, a Fernanda (que não via com os olhos físicos), ensinou com palavras simples e gestos delicados, ao seu mais novo amigo e vizinho, a usufruir da verdadeira luz que para ele estava e se fazia fria, grosso modo, gélida, oculta e apagada. Descerrou, em paralelo, uma estrada de compleição ensandecida vinda diretamente de dentro do âmago. Ela mostrou também, na sua inocência, que a beleza ímpar, o acendrado* e o inconspurcado* não estavam somente enleados ou escondidos naquilo que olhamos, e não vemos, mas, sobretudo, na maneira sublime e bucólica de como percebemos e sentimos o Universo posicionado bem lá no alto e acima, muito aquém da nossa tão sonhada e inesgotável imaginação. 
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* Vocabulário do blog, em ordem alfabética

Acendrado = depurado.
Excelsitude = magnificência.
Inconspurcado = imaculado.
Piá = guri, garoto, é uma expressão regionalista muito usada no sul do Brasil.
Sic Põe-se entre parênteses depois de uma palavra, expressão ou frase, para indicar que a citação é textualmente exata como escrita pelo autor, e que por ela não se responsabiliza quem a publica.
Venustidade = formosa, graciosa.
Via outra = entretanto,  de outro modo.

Fonte: texto enviado pelo autor

sábado, 8 de junho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “16”

 

Lima Barreto (A ave estranha)

Uma anedota do Reino dos Perus

Um dia em que o azul do ar transluzia e os seus delgados filetes paralelos vibravam como cordas de violino, ao reino dos Perus, sem que se soubesse de onde, chegou uma ave estranha.

Era alta e garbosa, leve e esguia. Vinha envolvida numa doida atmosfera de rubro, de miragem dourada. A doce curva de seu pescoço tomava os mais elegantes ímpetos para atingir o céu distante. Rebrilhavam as suas penas nos matizes mais variados e imprevistos; ora, a turquesa das alturas vivia-lhe na plumagem. Ora, a esmeralda do mar serpenteava pelo seu dorso, por toda ela, aqui, ali, pintas, olhos, cruzes, estrelas de safiras, ágatas, de topázios e rubis brilhavam.

Foi grande a surpresa no domínio do Perus. Cada qual, não saindo do círculo de giz em que desde tempos imemoriais se haviam metido, ergueu a cabeça hedionda.

Oh, espanto! Oh, terror! A ave não se parecia com eles.

Não tinha as penas negras de brilho esverdeado, movia-se em todos os sentidos, os traços de giz não suspendiam seus passos. Mal pousou em terra, familiarmente, como se de há muito conhecesse o hábito, pôs-se a falar, a comentar com liberdade, com segurança. Não tinha medo nem das palavras, nem das ideias, nem dos outros perus, os maiores que eles diziam existir poderosos.

Era tolerante, sabia a grande variabilidade das coisas, a maneira diversa que cada qual pode compreendê-las.

Mas os perus não se podiam capacitar que o mesmo objeto visto por duas pessoas desperte dois modos de ver diferentes. Para eles toda árvore era verde, todo verde era um só. Isso nascia da reflexão da sua natureza íntima.

Todos eram iguais, do mesmo povo, com a mesma voz, com mesmos gostos; as diferenças que, porventura, se lhes pudesse dar o nascimento, os anos lhes tiraram.

Sabiam escrever, mas só de um modo, sabiam pensar, mas só de um modo, não admitiam a dúvida.

Era certo o que diziam, era exato o que representavam. Paravam nas palavras, não iam ao pensamento.

E a letra? Ah! A letra!

Quem tinha letra bonita, escrevia as verdades; e na letra bonita estava o imperativo categórico.

O mundo era rígido, para eles, igual, medido, não tinha diferenças, não tinha nuances, era uma curva abominável. O mundo, já lá dizia o filósofo, é a ilusão do nosso entendimento.

O espanto foi contido e com falsas vozes de amigo, os perus indagaram:

— Donde vens?

— De longe. Atravessei mares, lagos, rios e minhas asas por vezes roçaram na cabeleira verdolenta das florestas. Vi o azul fosforescente do mar dos trópicos, as adustas areias da Ásia, a gama de fogo do Chibuazo, do Cotopaxi. Vi pagodes, cubatas, palácios. Os boulevards de Paris, os jardins de Sandes e as nascentes do Nilo encantaram alternativamente meus olhos. Raças, povos, famílias, de cores e de sangue mais vários amei.

Fonte: Lima Barreto. Contos completos. São Paulo: Cia das Letras, 2010. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 28 =


Trova Humorística de Juiz de Fora/MG

HELOISA ZANCONATO

- Meu guri só diz tolice!...
E o garoto retrucou:
- Mas, papai, tudo o que eu disse
foi você quem me falou!...
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

MANUEL BANDEIRA
(Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho)
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

A CAMÕES

    Quando n’alma pesar de tua raça
    A névoa da apagada e vil tristeza,
    Busque ela sempre a glória que não passa,
    Em teu poema de heroísmo e de beleza.

    Gênio purificado na desgraça,
    Tu resumiste em ti toda a grandeza:
    Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça
    O amor da grande pátria portuguesa.

    E enquanto o fero canto ecoar na mente
    Da estirpe que em perigos sublimados
    Plantou a cruz em cada continente,

    Não morrerá sem poetas nem soldados
    A língua em que cantaste rudemente
    As armas e os barões assinalados.
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Aldravia de Juiz de Fora/MG

CECY BARBOSA CAMPOS

a
turba
ruge
o
tiro
ecoa
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Soneto de Lisboa/Portugal

FERNANDO PESSOA
(Fernando Antonio Nogueira Pessoa)
1888 – 1935

AH UM SONETO!!!

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?… 
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Trova Premiada em Bandeirantes/PR, 2009

JB XAVIER 
(José Xavier Borges Júnior)
São Paulo/SP

Na clausura da existência,
das prisões que nos impomos,
um devaneio é a essência
do que pensamos que somos!
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Poema de Catanduva/SP

ÓGUI LOURENÇO MAURI

O FASCÍNIO DO TEU SORRISO

Não sei como tu consegues ser assim!...
Nenhum contratempo tira teu sorriso.
Eu queria tal postura também pra mim.
É de um humor igual ao teu que preciso...

De tua euforia, tenho feito meu remédio,
Minha terapia é teu rosto risonho.
É sempre tua alegria que me espanta o tédio,
Preso a teu estado d'alma me recomponho.

Ah!... Se Deus me desse teu temperamento...
De quem sorri mesmo nas horas mais duras,
A esperança anularia meu desalento,
Fazendo meu astral chegar às alturas.

Este teu sorriso de puro fascínio,
Com todo o charme de matiz cativante,
Deixou meu coração sob teu domínio,
Prisioneiro de outro, num peito triunfante.

Quando noto, de orelha a orelha, teus lábios,
Um traçado horizontal num rosto lindo,
Percebo-te a usar a estratégia dos sábios,
Convicto de que me ganhaste sorrindo.
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QUADRA POPULAR

Quem me dera estar agora
onde está meu coração,
lá no campo da saudade,
onde meus suspiros vão.
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Soneto de Campo dos Goytacazes/RJ

ANTONIO ROBERTO FERNANDES 
São Fidélis/RJ, 1945 – 2008, Campos dos Goytacazes/RJ

SEM MEDIDA

Quem diz que ama muito ou pouco, mente
ou não conhece o amor, na realidade,
pois não se mede o amor em quantidade,
se ama, ou não se ama, simplesmente.

Quem ama, embora sonhe com a eternidade,
ainda assim não sonha o suficiente
e em nada modifica o amor que sente,
seja na dor ou na felicidade.

Não há um meio olhar ou um meio beijo.
Ninguém tem dez por cento de um desejo
nem existe carícia desmedida.

E o amor, sem ter tamanho, é tão profundo
que podemos achá-lo num segundo
ou procurá-lo, em vão, por toda a vida.
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Trova de Mangualde/ Portugal

ELISABETE DO AMARAL
(Elisabete do Amaral Albuquerque Freire Aguiar)

Sobre o fumo mais escuro,
fruto da vil ambição,
quero pintar um futuro
sol ridente, meu irmão!
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Poema de São Fidélis/RJ

ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

BUSCA

Traço na tábua a trilha da traça.
Tiro da tira um tanto de nada.
Fito na foto a fita que enfeita,
O filme perfeito de um conto de fada.

Fico atento focando no trono,
O rato roendo a roupa do rei.
Vejo ao relento a força da lei,
Perco a esperança, o sonho, o sono!

Sinto na alma um quê de saudade,
Choro sozinho o sonho perdido,
Vejo o passado morto e partido.
De mim sinto pena, dó, piedade!

Lanço o laço em busca do nada.
Sinto o horizonte mais longe que tudo.
Perco o caminho, o rumo, a estrada,
Caio na poça de um poço bem fundo.

Busco na fé a força do forte.
Conto o tempo em cada segundo.
Procuro na bússola a reta, o norte,
Acho você: meu mundo, meu tudo!
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Haicai de Campinas/SP

GUILHERME DE ALMEIDA 
(Guilherme de Andrade de Almeida)
Campinas, 1890-1969, São Paulo/SP

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
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Sextilha de São Simão/SP

THALMA TAVARES
(Vicente Liles de Araújo Pereira)

Descobri um grande amor
– meio século já faz -
e ainda hoje é o motivo
que sempre alegre me traz,
por ser a troca constante
de ternura, amor e paz.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia,
vai, durante nove meses,
“chorar... de barriga cheia!”
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA 
(Nemésio Prata Crisóstomo)

MOTE:
Um sonho lindo que eu tive
onde tudo era harmonia
acordei... não me contive...
Era um sonho!... Que agonia!
José Feldman 
Campo Mourão/PR

GLOSA:
Um sonho lindo que eu tive
trouxe-me doces lembranças
quando jovem, em aclive,
via na vida esperanças!

Fora uma bela visão
onde tudo era harmonia
dando-me viva impressão
do quão feliz eu seria!

Hoje em infausto declive
na vida, sem me por freio,
acordei... não me contive...
foi só mais um devaneio!

Que o sonho fosse verdade
era tudo o que eu queria,
mas quedei-me à realidade:
Era um sonho!... Que agonia!
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Epigrama de Salvador/BA

LAFAIETE SPINOLA
(Lafaiete Ferreira Spínola)
1909 – 1975

Uma coisa aconteceu
Que a todo o mundo intrigou:
O Tesouro emagreceu
E o tesoureiro engordou!

(sobre um tesoureiro que guardava o dinheiro público em seu próprio bolso)
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

JOÃO BARAFUNDA
(João Francisco Coelho Cavalcanti)
São Luiz do Quitunde/AL, 1874 – 1938, Rio de Janeiro/RJ

ROSA

Como um botão de rosa despontando
era assim Rosa — meu primeiro amor;
passava às rosas seu perfume dando
e dando às rosas sua rósea cor.

Quando Rosa morreu, todos, chorando,
rosas puseram no caixão (que dor!)
E as rosas forma pálidas ficando,
ficando triste como a extinta flor.

E foi-se a rosa de meu coração...
Porque fugiste, amor puro e perfeito?
Porque morreste, flor inda em botão?

Tu, que foste rainha das formosas
flores, hás de viver sempre em meu peito.
Tens em meu peito um túmulo de rosas.
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Trova Premiada  em Cachoeiras de Macacu/RJ, 1999

ANTONIO COLAVITE FILHO 
Santos/SP

“Cara-de-pau!” E o grã-fino 
não se abala, não se afoba;
e no rosto, enfim, ladino,
passa um óleo de peroba…
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Spina de São Paulo/SP

CARLA BUENO OLIVEIRA

ESQUEÇO DE TUDO

Esqueço de tudo
desde que conheci
você, meu universo.

Você tornou-se a minha vida,
a razão de tudo, enfim,
de existir cada novo verso.
Foi tão bom isso acontecer,
não poderia ser o inverso!
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ
(Arthur Thomaz da Silva Neto)

Em um lugar no passado...
Hoje, ao ver nosso retrato
esquecido e amarelado,
eu culpo o destino ingrato.
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

LENA JESUS PONTE
(Lena Rúbia Ferreira de Jesus Ponte)

DE PASSAGEM

Na rua dorme um menino
sem lençol de afeto.
Na rua sonha um menino
sonhos sem imagens.
Na rua seca um menino
sem sequer as miragens de um deserto.

O menino dorme,
abraçado à calçada,
aconchegado ao cimento.
Que faz todo mundo neste momento exato?
Dormimos todos um sono profundo.
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Poetrix do Rio de Janeiro/RJ

RICARDO INGENITO ALFAYA

porcelana chinesa

Luz na água do chá
O rosto de um monge
Dentro da xícara
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Poema de Lisboa/Portugal

ANA LUÍSA AMARAL

ESPAÇOS

 As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto

 A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo

 Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio

 A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo
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Trova de Maringá/PR

A. A. de ASSIS
(Antonio Augusto de Assis)

– Aceitas dar-me os deleites 
da próxima contradança?... 
– Aceito, desde que aceites 
não me apertar contra a pança! 
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Poema de Brusque/SC

MARIA LUÍZA WALENDOWSKY

VIDAS II

Vidas, que se cruzam,
Que em seus trilhares
se confundem,
num misto de alegrias,
tristezas...
companheirismo e confidências.

Vidas, que ao longo do tempo,
criam raízes em nossos corações...
que ao se depararem com intempéries,
deixam cicatrizes... apenas!

Vida, que Deus nos presenteia...
e basta um segundo,
um instante,
para se entrelaçar
olhos,
 alma...
e coração!
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Hans Christian Andersen (O Livro Silencioso)

Numa estrada cercada por floresta de ambos os lados, vemos ao fundo uma fazenda dividida por essa estrada. Podia se ver uma bela e enorme árvore bem no centro dessa floresta. 

O dia estava ensolarado, calmo e fresco, como eram dias de verão na Dinamarca todas as janelas da casa da fazenda estavam abertas. Havia um toque de vida vindo de dentro da casa. Porém, no centro do jardim, debaixo de uma tenda feita de um arbusto de sirenes, estava um caixão aberto. Ele aguardava a tampa que o marceneiro estava fazendo para poder sepultar o morto. 

Ninguém veio para vê-lo. Ele estava só, deitado em seu leito e sobre sua face, um pano branco. Mas, ao se olhar de perto, podia-se notar que o semblante do morto estava em paz e até um leve ar de felicidade emanava de sua face. 

Algo interessante e inusitado aparecia debaixo da cabeça do morto, não havia um travesseiro como de costume, mas um livro grande e grosso. Suas folhas eram de um papel de alta qualidade e entre cada folha, uma flor. Havia ali um herbário completo selecionado e colecionado de diferentes lugares. 

Ele havia pedido que esse livro fosse enterrado com ele. Cada flor estava relacionada a um capítulo de sua vida.

– Quem era o morto? – Podemos perguntar. 

E a resposta era: 

– “Um velho estudante de Uppsala, uma cidade na Suécia situada ao norte, a 70 km de Estocolmo. Ele deve ter sido muito inteligente, pois aprendeu línguas, canto, sem contar que escrevia muito bem; mas então algo aconteceu... e ele parou com tudo que fazia, começou inclusive a beber bebidas alcoólicas muito fortes. Porque abandonou tudo, sua saúde um dia o abandonou também. Sem nada e não tendo a quem recorrer, escondeu-se no campo onde encontrou pessoas boas que lhe davam de comer. Apesar de tudo, ele continuava um homem bom, piedoso e simples como uma criança, mas quando uma de suas crises voltava, ele fugia para a floresta e se escondia lá como um animal que estava sendo caçado, mas se o levássemos para casa e dávamos para ele o livro com as folhas, flores e ervas secas, ele se acalmava e podia ficar sentado o dia todo a olhar para uma erva e depois para outra, e muitas vezes lágrimas escorriam pelo seu rosto. Somente Deus sabia a razão dessas lágrimas! Ele pediu que seu livro fosse enterrado com ele, agora ele está lá, apoiando sua cabeça, em pouco tempo a tampa será fechada, e ele terá seu doce descanso na sepultura.”

A mortalha fúnebre foi levantada. Havia paz no rosto do morto, um raio de sol caiu sobre ele; uma andorinha passou em seu voo rápido pelo caramanchão e girou, chilreando sobre a cabeça do homem morto.

Como é estranho, no entanto, - todos nós sabemos disso - pegar velhas cartas de nossa juventude e lê-las; faz uma vida inteira acordar, por assim dizer, com todas as suas esperanças, com todas as suas lembranças, com todas as suas tristezas. Quantas pessoas, como nós, em um tempo vivido com tanto carinho, agora vivem como se estivessem mortos para nós, e ainda vivem, mas por muito tempo não pensamos neles, contudo, ao nos lembrarmos de alguém, deveríamos sempre nos agarrar a essa lembrança para poder compartilhar nossas tristezas e alegrias.

A folha de carvalho murcha no livro, lembra o amigo, amigo dos tempos de escola, amigo para a vida; ele fixou esta folha no boné do estudante, na floresta verde quando esse pacto foi selado para a vida.

- Onde ele está agora?  

A folha escondida, lembra a amizade esquecida. 

Agora temos uma planta de estufa estrangeira, muito boa para os jardins nórdicos – é como se ainda houvesse fragrância nessas folhas! Ela a deu a ele, uma nobre do jardim de ervas nobre. A nenúfar, ele arrancou e molhou com lágrimas salgadas, essa flor nasce em águas doces. Há também uma urtiga, o que sua folha diz? O que ele estava pensando ao pegá-la, ao escondê-la? Outras surgem: o lírio do vale, da solidão da floresta e mais a folha de cabra ambas e outras adornam o vaso de flores da estalagem, por fim a folha de grama nua e afiada !

A sirene em flor derrama seu cacho fresco e perfumado sobre a cabeça do morto –, a andorinha voa novamente: “Qvivit! qvivit!” 

Chegam os homens com pregos e com martelos, a tampa é colocada sobre o morto, que descansa a cabeça no livro mudo. Escondido - esquecido!

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público