quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Vereda da Poesia = 97 =


Trova de Bauru/SP

ERCY MARIA MARQUES DE FARIA

A chuva é sempre bem-vinda 
e, se é de versos, então, 
deixa mais bonito ainda 
o jardim do coração! 
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Poema de Belém/PA

ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA

Oleiro e Barro

Acorda! Já é dia e o teu destino
é fazer teu destino caminhando!
Tu és, ao mesmo tempo, oleiro e barro;
Tu és, num só momento, o boi e o carro!

Acorda! O tempo urge... Tu não sabes
que deténs as rédeas da ação?
Tu és a solução dos teus problemas
e a chave que abre tuas algemas
repousa, eternamente, em tua mão!

Levanta! O sol se põe... Bate a poeira
acumulada por tantos verões!...
Tu és a vela-mestra da História,
o caminho que conduz à glória,
a semente das revoluções!
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Trova de Magé/RJ

MARIA MADALENA FERREIRA

Entre as lembranças que trago
a sete chaves, com gosto,
eu guardo o primeiro afago
  que tu fizeste em meu rosto!!!  
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Dobradinha Poética (trova e soneto) de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Reencontro

Na tua ausência formei
um rosário dos meus “ais”
e, hoje, que te reencontrei:
– Meu Deus, sofrer, nunca mais!

Antevendo o momento em que irei reencontrar-te,
repensando, feliz, quanto ainda te quero,
intento este preencher do meu tempo com arte,
vindo expor num soneto o amor puro e sincero.

A ansiedade me envolve e já sei que faz parte,
leva quase à loucura e quando eu desespero,
desse anseio sofrido, almejando o descarte,
ouço a voz da esperança e esta angústia, supero!

Com excelso desvelo eu desejo te olhar,
abraçar-te bem forte e, depois, mergulhar
na paixão que revela o que sinto por ti.

Hora e dia a apontar, terra e céu presenciando
o milagre da volta e eu prossigo rogando:
— teu amor para sempre... e esquecer que sofri!
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Trova Premiada em Vila Velha/ES, 2018

MARA MELINNI
  Caicó/RN

Velho tropeiro de outrora,
levaste o rumo da vida
galopando, mundo afora,
entre o abraço e a despedida...!
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Poema de Lisboa/Portugal

FERNANDO PESSOA
1888 – 1935

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
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Trova Popular

Quem não nasceu pra sofrer
desafiar pode os fados,   
que os próprios deuses respeitam
os entes afortunados.
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Soneto Paulista 

GUILHERME DE ALMEIDA 
Campinas/SP, 1890-1969, São Paulo/SP

Dor Oculta

Quando uma nuvem nômade destila
gotas, roçando a crista azul da serra,
umas brincam na relva; outras, tranquila,
serenamente entranham-se na terra.

E a gente fala da gotinha que erra
de folha em folha e, trêmula, cintila,
mas nem se lembra da que o solo encerra,
da que ficou no coração da argila!

Quanta gente, que zomba do desgosto
mudo, da angústia que não molha o rosto
e que não tomba, em gotas, pelo chão,

havia de chorar, se adivinhasse
que há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

A trova, além da leitura,
requer, na declamação,
um tiquinho de ternura
e um tantinho de emoção.
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Poema de São Paulo/SP

CACO PONTES

Nu olhar

 A gente vê
gente
pelas ruas da cidade
A gente vai passando
e fica só olhando
gente
fora das janelas
peixes sem aquário
A gente vê
besta certeza
guardada nu olhar
a gente quer ir
antes que chegue
a hora
as vezes
e vê gente
que diz assim:
- aí bicho, isso daí não tá cum nada!
rabisca, amassa, chuta
e tenta outra vez
A gente vê
mas no fim da parada
não enxerga quase nada.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Pôs anúncios nas estradas:
"Por um módico aluguel,
moitas limpas, bem cuidadas".
E inaugurou seu..."Moitel"!
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Soneto de de Santos/SP

MARTINS FONTES
1884 – 1937

Como é Bom Ser Bom

Tu, que vês tudo pelo coração,
Que perdoas e esqueces facilmente,
E és, para todos, sempre complacente,
Bendito sejas, venturoso irmão.

Possuis a graça como inspiração
Amas, divides, dás, vives contente,
E a bondade que espalhas, não se sente,
Tão natural é a tua compaixão.

Como o pássaro tem maviosidade,
Tua voz, a cantar, no mesmo tom,
Alivia, consola e persuade.

E assim, tal qual a flor contém o dom.
De concentrar no aroma a suavidade,
Da mesma forma, tu nasceste bom.
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Trova de Curitiba/PR

VANDA ALVES DA SILVA

Restam horas já passadas,
da história de uma paixão:
lembranças esfumaçadas,
nas sombras do carrilhão.
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Poema de Ribeirão Preto/SP

ELISA ALDERANI

Morte do Poeta

Tu, poeta, cantas a vida,
Aquela que nunca finda.
Sutil brisa no alvorecer,
Pelo arrebol do Eterno Sol 
Que o mundo ilumina.

Tu, poeta, cantas a morte,
Arte despojada,
Estrutura informe, inacabada.
Vazia, sem réplica.
Da cor do mistério da terra muda.

Tu, poeta, falas de vida e de morte.
Um dia vive de alegria,
Noutro chora de tristeza.
Num só abraço
de braços sem força.

Tu, poeta, viverás para sempre…
Teus versos o vento jamais levará.
Cinzelados despontam De inúteis devaneios
Pela desconhecida morte
Inspirados!
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Os destinos se cruzaram,
mesmo que por uns instantes...
e as almas se eternizaram
em amores fascinantes.
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Soneto de Magé/RJ

BENEDITA AZEVEDO

Desgaste

Se alguém diz que te ama se precisa
Que cuides de sua vida e dos negócios,
Cuidado! Pois de acordo com a pesquisa
É provável que acabe em dois divórcios.

Primeiro são os bens que já não tem
Pois  tudo divido já foi dantes
Que te arriscasses neste vai e vem
De filhos, ex-mulheres e amantes.

Mas o pior de tudo é perceber
Que por mais que se faça é olvidado
E quem nunca fez nada é premiado.

E teus neurônios vão se desgastando
Que às vezes já não pode ser levado
Um casamento assim, atrapalhado.
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Trova Humorística Vencedora em Vila Velha/ES, 2018

WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

– Tropa de choque! Socorro! –
grita o genro, em faniquito,
 ao chegar sogra, cachorro,
 papagaio e periquito!
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Poema de Catanduva/SP

ÓGUI LOURENÇO MAURI

Um Vazio

Um vazio põe além do horizonte 
Um querer que à distância se lança, 
Pois a ânsia que o barco desponte 
Jacta o falso sabor da esperança. 

Eu bem sei, não mudou a janela, 
Mas o barco de longe não vem. 
A saudade é bem mais do que "aquela" 
E a vontade do beijo também! 

É verdade que após as tormentas 
O mar calmo se faz tão presente, 
Como é certo que as nuvens cinzentas 
Põem o Sol a brilhar novamente. 

Por aqui, vejo a chuva caindo; 
Logo mais, chega a luz desde o leste, 
A mostrar todo o azul do céu lindo, 
Um desenho de Deus, inconteste! 

Pensamento vai longe, de vez! 
Traz, enfim, esse barco; reitero! 
Penso até que meu porto, talvez, 
Não comporte o navio que eu espero.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

De tal modo a rosa é amada, 
que o cravo mói-se de ciúme... 
– É o que dá ter namorada 
que esbanja encanto e perfume!
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE 
Sai do bar - e já sem prumo - 
tropeçando, cuca em brasa, 
pergunta, todo sem-rumo: 
- "Onde fica a minha casa?" 
Héron Patrício  
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

GLOSA 
Sai do bar - e já sem prumo - 
com sua cabeça "feita", 
diz o Saraiva, sem rumo: 
- Eita calçadinha estreita! 

Caminhando em ziguezague 
tropeçando, cuca em brasa, 
o Saraiva, e não é blague, 
perdeu o rumo de casa! 

E neste seu desarrumo, 
o Saraiva, já abatido, 
pergunta, todo sem-rumo: 
será que eu estou perdido? 

A mulher, cheia de raiva 
respondeu: - Na cova rasa! - 
ao perguntar-lhe o Saraiva: 
- "Onde fica a minha casa?"
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Pequenino grão latente,
que brota e aos poucos se expande,
criança é humana semente,
na conquista de ser grande.
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Hino de Loanda/PR

Terra boa, Loanda querida
Berço augusto de sonho e de amor
Nasce em ti a esperança que agita
No sorriso de fé e de amor
O teu céu, o teu sol, tua gente,
Tudo é glória perene imortal
Que ilumina no porvir esplendente
Filho altivo de nosso ideal.

Em ti deixamos nossa esperança
Sempre inspirada no teu amor
E só por ti, querida Loanda,
Nos corações haverá louvor.
Em ti deixamos nossa esperança
Sempre inspirada no teu amor
E só por ti, querida Loanda
Nos corações haverá louvor.

Pioneira feliz do progresso
Sintetizas a paz e o labor
E teu solo bendito é acesso
As riquezas que são teu fulgor
O teu nome, Loanda querida
Será sempre divina canção
A inspirar nossos passos
A vida para a tua formosa ascensão.
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Trova de Juiz de Fora/MG

DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO

Quando a vejo na calçada,
de passagem pela rua,
minha sombra inconformada
ainda vai atrás da sua.
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Soneto de Sorocaba/SP

DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Sob as cinzas

… as saudades queimam mais do que brasas…
Silveira Bueno

Como supostas brasas apagadas,
que ao sopro de um vadio e inquieto vento,
livre das cinzas, não mais abafadas,
revivescessem, retomando alento,

certas recordações em nosso peito,
de há muito adormecidas e caladas,
revolvem-se, de súbito, no leito,
despertando agressivas e agitadas.

E essas lembranças todas revividas
que imaginávamos já recolhidas
ao abrigo silente do passado,

vêm ralar nosso peito de amargura,
e as saudades, em dúlcida tortura,
queimam mais que o carvão reativado.
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Trova de Nova Friburgo/RJ

SÉRGIO FERRAZ DOS SANTOS

No mais claro português
com voz firme à revelia,
disseste adeus uma vez
e eu ouço  o adeus todo dia.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O conselho dos ratos

Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era o seu nome,
Sua alcunha — Esgana-ratos.

As ratazanas mais feras
Apenas o percebiam,
Mesmo lá dentro das tocas
Com susto dele tremiam;

Que amortalhava nas unhas
Ainda o rato mais machucho,
Tendo para o sepultar
Um cemitério no bucho.

Passava entre aqueles pobres,
De quem ia dando cabo,
Não por um gato maltês,
Sim por um vivo diabo.

Mas janeiro ao nosso herói
Já dor de dentes causava,
E ele de telhas acima
O remédio lhe buscava.

Dona Gata Tartaruga,
De amor versada nas lides,
Era só por quem na roca
Fiava este novo Alcides.

Em tanto o deão dos ratos,
Achando léu ajuntou
Num canto do estrago o resto,
E ansioso assim lhe falou:

«Enquanto o permite a noite,
Cumpre, irmãos meus, que vejamos
Se à nossa comum desgraça
Algum remédio encontramos.

Rodilardo é um verdugo
Em urdir nossa desgraça;
Se não se lhe obstar, veremos
Finda em breve a nossa raça.

Creio que evitar-se pode
Este fatal prejuízo;
Mas cumpre que do agressor
Se prenda ao pescoço um guizo.

Bem que ande com pés de lã,
Quando o cascavel tinir,
Lá onde quer que estivermos
Teremos léu de fugir.»

Foi geralmente aprovado
Voto de tanta prudência;
Mas era a dúvida achar
Quem fizesse a diligência.

«Vamos saber qual de vós,
Disse outra vez o deão,
Se atreve a dar ao proposto
A devida execução.

— Eu não vou lá, disse aquele;
— Menos eu, outro dizia;
— Nem que me cobrissem de ouro,
Respondeu outro, eu lá ia!

— Pois então quem há de ser?
Disse o severo deão;
Mas todos à boca cheia
Disseram: «Eu não, eu não!»

Tomou-se em nada o congresso;
Que o aperto às vezes é tal
Que o remédio que se encontra
Ainda é pior do que o mal.

Assim mil coisas se assentam
Numa assembleia, ou conselho;
Mas vê-se na execução
Que têm dente de coelho.

A. A. de Assis (O nosso português de cada dia) Um régulo na panturrilha

Não se assuste se ouvir alguém dizer que fulano tem um “régulo na panturrilha”. Significará apenas que o tal fulano tem um “reizinho na barriguinha”. 

Se os diminutivos em português fossem todos marcados por “inho” ou “zinho”, seria moleza (barquinho, barzinho). O problema é que muitos deles vieram prontos do latim, mantendo a forma erudita; outros chegaram até nós via espanhol, francês, italiano, e alguns nem parecem diminutivos. Por exemplo: é fácil entender que “caixinha” é diminutivo de “caixa”, porém nem todos percebem de imediato que “cápsula” (do latim “capsa” = caixa) é a mesma coisa, isto é, uma “caixinha”. 

Assim também acontece com “régulo”, diminutivo erudito de “rei”, e com “panturrilha”, palavra que pedimos emprestada ao espanhol e que em geral é empregada no sentido de “barriga da perna” (daí que os jogadores de futebol frequentemente se queixam de “contratura na panturrilha”). A palavra tem origem no latim “pantex” (= barriga), que virou “panza” em espanhol e “pança” em português. De “pantex” temos também os verbos “empanturrar” e “empanzinar”. 

Há muitos outros casos interessantes. Por exemplo: poucos percebem que o “asterisco” (*) é assim chamado por ser uma estrelinha. É um diminutivo do latim “aster” = astro, estrela. 

Só os mais antigos se dão conta de que “maçaneta” é um diminutivo de “maçã”. Nos velhos bons tempos as maçanetas das portas tinham o formato de uma maçãzinha. 

Desde também os velhos tempos foi sempre comum alguém dar uma gratificação a quem lhe prestasse um pequeno serviço. Dizia-se: “Leve pra molhar a gorja” (tomar uma cachacinha). “Gorjeta” é um diminutivo de “gorja” = “garganta”, “goela”. É uma “gargantinha”. 

Já reparou que a “cedilha” (aquele rabinho que vem embaixo do “ç”) na verdade é um pequeno “z”? Pois é... “cedilha” (em espanhol “zedilla”) é um diminutivo da letra grega “zeta”. A função do “z-zinho” (ç) é indicar que aquele “c” tem o som de “tz” (ss). 

“Aedes” (latim) é casa, edifício. O diminutivo de “aedes” (édis) é “aedicula” (edícula). Daí o nome daquela pequena casa habitualmente construída no quintal. 

“Boca” em latim é “os, oris” (de onde temos a palavra “oral”. “Ósculo” (diminutivo de “os”) é uma pequena boca. Mas em português “ósculo” é sinônimo de “beijo”. Explica-se: quando você vai beijar contrai os lábios, como que formasse uma boquinha... 

Na mesma linha, temos numerosos outros diminutivos curiosos: castanhola é uma pequena castanha. Donzela (diminutivo de “dona”) é uma doninha, uma senhorita. Opúsculo (pequena obra literária) é dimunitivo de “opus” = obra. Palito é diminutivo de “palus” = pau (é um pauzinho). Roseta é um diminutivo de rosa. Sarjeta é diminutivo de “sarja” = valeta, escoadouro de águas. Vesícula é diminutivo de “vesica” = bexiga (é uma bexiguinha). Vírgula é diminutivo de “virga” = vara (a vírgula tem a forma de uma varinha). E por hoje ficamos por aqui. Pax. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 29-8-2024)

Fonte: Texto enviado pelo autor

Antero Jerónimo (Lançamento do livro "Na pele do sentir", em Lisboa, 19 de outubro)


Recordando Velhas Canções (No bico da chaleira)


(Polca, 1909)

Compositor: Juca Storoni

Iaiá me deixe subir esta ladeira,
Que eu sou do grupo do pega na chaleira,
Iaiá me deixe subir esta ladeira,
Que eu sou do grupo do pega na chaleira.

Que vem de lá,
Bela Iaiá,
Ó abre alas,
Que eu quero passar,
Sou Democrata,
Águia de Prata,
Vem cá mulata,
Que me faz chorar..
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Diariamente, o Morro da Graça no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro era frequentado por dezenas de pessoas - senadores, deputados, juízes, empresários ou, simplesmente, candidatos a cargos públicos ou mandatos eletivos. A razão da romaria era que no alto do morro morava o general senador José Gomes Pinheiro Machado, líder do Partido Republicano Conservador, que dominou a política nacional no início do século.

Pois foi para satirizar o comportamento desses bajuladores que o maestro Costa Júnior (Juca Storoni) fez a animada polca "No Bico da Chaleira", sucesso do carnaval de 1909: "Iaiá me deixe subir nessa ladeira / eu sou do grupo que pega na chaleira...". E tamanha foi a popularidade da composição que acabou por consagrar o uso dos termos "chaleira" e "chaleirar" como sinônimos de bajulador e bajular. Isso porque, dizia-se na época, o pessoal que subia a ladeira da Graça disputava acirradamente o privilégio de segurar a chaleira que supria de água quente o chimarrão do chefe.

Com a morte de Pinheiro Machado, assassinado por um débil mental em 1915, deram seu nome à Rua Guanabara, onde começava a subida para sua casa, na qual passou a funcionar o Colégio Sacre Coeur e tempos depois uma empresa construtora.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 23

 

Trovador Homenageado do Dia: Edy Soares (Trovas em preto e branco)

O beija-flor à direita, é a ave símbolo do Espírito Santo

1
A memória enfraquecida,
a fronte calva, a bengala,
mostra no ciclo da vida
o velho que o neto embala.
2
A trapaça é artifício
do covarde sem pudor,
que sem nenhum sacrifício
quer se fazer vencedor.
3
Da semente, a nova planta;
da planta, a semente e o pão.
Do pão, a vida que encanta,
que planta e cultiva o chão
4
- Era profunda a raiz!
Disse o dentista ao cliente,
ao perceber que o nariz
saiu agarrado ao dente.
5
Eu... você... as confidências...
Que pena que o tempo passa!
Hoje vivo de aparências
e a vida já não tem graça…
6
Meu Noel é de dar dó...
Nesta crise, veio a pé,
sem renas e sem trenó...
E entalou na chaminé!
7
O chato que mais me irrita
e que mais me funde a cuca...
é aquela pessoa aflita,
que enquanto fala, cutuca.
8
Por egoísmo e ganância
a Terra está dividida.
Tanto poder e arrogância,
ante a pobreza sofrida.
9
Quer, ricos ou indigentes,
todos são filhos de Deus;
sejam mansos ou valentes,
sejam nobres ou plebeus.
10
Sem o amor do jardineiro,
o que seria da flor?...
Rosas não teriam cheiro,
jardins não teriam cor!…
11
- “Três dias de penitencia”,
pede o padre ao confessado.
- "Pode dobrar a exigência,
vou repetir o pecado!”
12
Velhas fotos no monóculo,
na gaveta de uma estante...
É como ver de binóculo,
um tempo já bem distante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

AS TROVAS DE EDY SOARES EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

AS TROVAS UMA A UMA

1. A memória enfraquecida
A primeira trova reflete sobre a passagem do tempo e a fragilidade da memória. A imagem do velho sendo embalado pelo neto simboliza a continuidade da vida e a relação entre gerações.

2. A trapaça é artifício
Aqui, o autor critica a covardia e a falta de ética. A trapaça é apresentada como uma solução fácil para quem não quer se esforçar, destacando a desonestidade como um caminho sem valor.

3. Da semente, a nova planta
Esta trova aborda o ciclo da vida e a conexão entre natureza e existência. A semente representa o potencial, enquanto o pão simboliza a vida e a sustento, enfatizando a importância da agricultura.

4. Era profunda a raiz!
Com um toque de humor, essa trova brinca com a relação entre dentista e cliente. A metáfora da raiz dental que "sai agarrado ao dente" retrata a relação entre dor e cuidado.

5. Eu... você... as confidências...
Refere-se à passagem do tempo e à superficialidade das relações modernas. O eu lírico lamenta que, apesar das confidências, a vida perdeu sua essência, tornando-se apenas aparência.

6. Meu Noel é de dar dó...
Essa trova traz uma crítica à realidade econômica, usando a figura do Papai Noel como símbolo de esperança que se tornou ineficaz. A imagem de Noel "entalado na chaminé" é uma metáfora para as dificuldades da vida.

7. O chato que mais me irrita
Aqui, o autor fala sobre a irritação causada por pessoas que não param de falar. A "cutucada" é uma metáfora para a insistência, destacando a falta de empatia.

8. Por egoísmo e ganância
Essa trova critica a desigualdade social. A Terra dividida simboliza a luta por poder e a arrogância dos que têm em contraste com a pobreza dos que não têm.

9. Quer, ricos ou indigentes
O autor reafirma a ideia de que todos são iguais diante de Deus, independentemente de sua condição social. A mensagem é de unidade e humanidade.

10. Sem o amor do jardineiro
Esta trova celebra a importância do cuidado e do amor. Sem o jardineiro, as flores não teriam seu valor; essa relação enfatiza a dependência entre amor e beleza.

11. Três dias de penitência
Com humor, essa trova aborda a hipocrisia nas práticas religiosas. O diálogo entre o padre e o confessado revela a ideia de que a penitência é muitas vezes superficial.

12. Velhas fotos no monóculo
Por fim, essa trova reflete sobre a nostalgia e a memória. As fotos guardadas simbolizam recordações de um passado distante, visto de forma distorcida, como se olhado através de um binóculo.

ABORDAGENS

As trovas de Edy Soares são uma expressão rica e multifacetada da poesia popular brasileira, refletindo tanto a simplicidade quanto a profundidade das experiências humanas.

Conexão com a Tradição Popular
As trovas se inserem na tradição da poesia popular, que é acessível e frequentemente recitada em diferentes contextos sociais. Essa conexão com o folclore e a oralidade confere às trovas um caráter atemporal.

Reflexão sobre a Condição Humana
Cada trova traz uma reflexão sobre a vida, abordando questões como a passagem do tempo, a fragilidade das relações e as desigualdades sociais. Essa capacidade de capturar a essência da experiência humana torna as trovas relevantes em diferentes épocas e contextos.

Humor como Ferramenta Crítica
O uso do humor e da ironia é uma característica marcante. A leveza com que Edy Soares aborda temas pesados permite que o leitor reflita sobre questões sérias sem sentir-se oprimido. O humor é uma forma eficaz de crítica social, tornando as mensagens mais impactantes.

Imagens e Metáforas
As metáforas utilizadas nas trovas são poderosas e evocativas, permitindo que o leitor visualize e sinta as emoções descritas. A utilização de elementos da natureza, por exemplo, serve para simbolizar experiências humanas, criando uma conexão íntima entre o homem e o meio ambiente.

Universalidade e Acessibilidade
A linguagem simples e direta torna as trovas acessíveis a um público amplo. Essa universalidade permite que pessoas de diferentes idades e origens se identifiquem com as mensagens, promovendo um sentimento de comunidade e pertencimento.

Impacto Emocional
As trovas conseguem tocar em questões emocionais profundas, provocando reflexões sobre amor, perda, nostalgia e esperança. Essa capacidade de evocar emoções é o que torna a poesia de Edy tão ressonante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas trovas, com seu tom leve e crítico, oferecem uma rica reflexão sobre a vida, a sociedade e as relações humanas. Cada trova aborda temas universais, como a vida, a morte, as relações humanas e as questões sociais, muitas vezes com um toque de humor ou ironia. O uso de metáforas é comum, enriquecendo a mensagem e proporcionando múltiplas interpretações. Mensagens profundas transmitidas de maneira concisa e memorável.

Enfim, as trovas de Edy Soares são uma rica contribuição à literatura brasileira, combinando forma, conteúdo e emoção de maneira magistral. Elas não apenas entretêm, mas também oferecem uma profunda reflexão sobre a vida e a sociedade, tornando-se uma fonte de inspiração e aprendizado. A sua relevância perdura, mostrando que a poesia pode ser um meio poderoso de expressão e crítica.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Mensagem na Garrafa = 133 =

RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Porque sou poeta

Era uma casinha modesta no meio do chapadão. Ali o sertão me cultivava. 

Lá fora, o vento com seus dedos esguios tocava a folhagem e as árvores gemiam. A noite passeava em mim e seguia seu curso em busca de um novo amanhecer. 

Tudo era um chamado à meditação, tudo mostrava um recado do Criador que, em minha precoce alma de poeta, eu procurava decifrar. 

O dia amanhecido me reerguia igual ao sol daquela manhã cheia de significados, enquanto eu, miúda de extravagâncias, deixava que a santidade do sertão me cultivasse de acordo com aquele momento sublime, vazio de ambições, mas repleto de Deus. E minha alma vagava pela imensidão dos campos verdes pisando aquela manhã orvalhada de poesia. 

Ali, nasceu meu jeito de ser poeta. Um poeta das miudezas, diante do imenso mundo que me cercava. 

Minha alma foi treinada para menos, sou abastada de conformidades, a poesia me fez terra, rio e sertão. Isso me basta. 

Sou poeta porque a natureza versa em mim.

Fonte: Texto enviado pela autora