domingo, 20 de outubro de 2024

Recordando Velhas Canções (Na casa branca da serra)

(Modinha, 1880)
Compositores: Guimarães Passos e Miguel E. Pestana


Na casa branca da serra
Onde eu ficava horas inteiras
Entre as esbeltas palmeiras
Ficaste calma e feliz
Tudo em meu peito me deste
Quando eu pisei na tua terra
Depois de mim te esqueceste
Quando eu deixei teu país.

Nunca te visse oh! formosa
Nunca contigo falasse
Antes nunca te encontrasse
Na minha vida enganosa
Por que não se abriu a terra
Por que os céus não me puniram
Quando os meus olhos te viram
Na casa branca da serra.

Embora tudo bendigo
Desta ditosa lembrança
Que sem me dar esperança
De unir-me ainda contigo
Bendigo a casa da serra
Bendigo as horas fagueiras
Bendigo as belas palmeiras
Queridas da tua terra.

Saudade e Melancolia na Casa Branca da Serra
A música 'Na casa branca da serra', é uma canção que exala saudade e melancolia. A letra descreve um lugar específico, a casa branca da serra, onde o eu lírico passou momentos felizes e tranquilos. As palmeiras esbeltas e a calma do ambiente são elementos que evocam uma sensação de paz e nostalgia. No entanto, essa tranquilidade é contrastada com a dor da separação e o esquecimento por parte da pessoa amada.

O eu lírico expressa um profundo arrependimento por ter conhecido a pessoa amada, desejando nunca tê-la encontrado para evitar o sofrimento subsequente. A dor é tão intensa que ele questiona por que os céus não o puniram ou por que a terra não se abriu quando seus olhos encontraram os dela. Essa hipérbole enfatiza a profundidade do seu sofrimento e a intensidade de seus sentimentos.

Apesar da dor, o eu lírico ainda bendiz as lembranças da casa na serra, as horas felizes e as palmeiras queridas. Isso mostra uma dualidade de sentimentos: a dor da perda e a gratidão pelos momentos felizes vividos. Cascatinha e Inhana, conhecidos por suas canções que frequentemente abordam temas de amor e saudade, conseguem transmitir essas emoções de maneira tocante e poética, fazendo com que o ouvinte sinta a profundidade do lamento e da nostalgia presentes na música.

Segundo Almirante "se há uma modinha que se possa considerar tradicional no Brasil, esta é chamada “Na Casa Branca da Serra”, da autoria de Miguel Emílio Pestana, com versos de Guimarães Passos. Há dezenas de anos que “Na Casa Branca da Serra” tem sido ao mesmo tempo do repertório dos seresteiros de rua como das mais graciosas senhoritas nos elegantes saraus, já em desuso" (O Pessoal da Velha Guarda, 14-12-1950).

Fontes:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/04/na-casa-branca-da-serra.html
https://www.letras.mus.br/cascatinha-e-inhana/565140/significado.html

sábado, 19 de outubro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “27”

 

José Feldman (Mais filas na Comédia da Vida)


Ah, as filas continuam! Esses longos e intermináveis serpentários que, mais do que um mero aborrecimento, se tornaram verdadeiros palcos de comédia na vida cotidiana. Se você já se viu preso em uma fila, sabe que, por mais frustrante que possa ser, sempre há espaço para boas risadas. Vamos explorar o fascinante mundo das filas em cinco cenários clássicos, onde a paciência é testada.


FILAS DO BANHEIRO: O GRANDE ENIGMA
Comecemos pela fila do banheiro, o local onde o tempo parece parar e a necessidade se torna uma questão de vida ou morte. Você está lá, na fila, e percebe que cada pessoa na sua frente parece estar enfrentando um dilema existencial. Uma mulher, com uma expressão de concentração digna de um filósofo, observa o relógio e parece estar calculando a média de tempo que cada um leva dentro da cabine.

Enquanto isso, uma criança na fila começa a fazer perguntas filosóficas sobre o que acontece dentro do banheiro. “Mamãe, por que o tio está demorando tanto? Ele está fazendo xixi ou tentou entrar em outra dimensão?” E você, ali, tentando não rir da situação, se pergunta se a resposta envolve um portal mágico.

Quando finalmente é sua vez, você entra e percebe que, em um universo paralelo, o banheiro é um spa luxuoso, mas na realidade, é só um cubículo apertado com uma descarga que faz mais barulho do que alívio. No momento em que você sai, a fila aumentou e a pergunta filosófica da criança ecoa em sua mente: “O que é mais estressante: esperar ou estar dentro?”

FILAS PARA O CINEMA: O SHOW DO ENTRETENIMENTO
Depois de sobreviver ao banheiro, você decide ir ao cinema, acreditando que a fila para comprar ingressos será mais tranquila. Mas, ah, a inocência! Na fila, você se depara com uma verdadeira assembleia de cinéfilos. Um grupo discute fervorosamente o último filme de super-herói, enquanto outro faz teorias mirabolantes sobre quem é o verdadeiro vilão da trama.

Quando finalmente chega sua vez, você percebe que o atendente tem a velocidade de um caracol em dia de folga. Enquanto você espera, começa a sentir a pressão. Decidir entre a pipoca doce ou salgada se torna um dilema filosófico. “E se eu escolher a pipoca salgada e, no meio do filme, desejar a doce? E se a pipoca doce não combina com o filme de terror que escolhi?” As angústias cinematográficas são reais!

Finalmente, você consegue comprar seu ingresso e, ao entrar na sala, descobre que a única vaga disponível é ao lado do grupo que não parou de comentar sobre o filme, mesmo durante a exibição. E assim, a fila se transforma em uma experiência de cinema interativa.

FILAS PARA O ATENDIMENTO MÉDICO: O CONSULTÓRIO DO DRAMA
Agora, é hora de ir ao médico. As filas de espera nos consultórios são um espetáculo à parte. Você entra e se depara com uma sala cheia de pessoas que parecem estar em um reality show de “Quem Tem a Doença Mais Estranha”. Ao seu lado, um senhor está explicando para a esposa que ele tem certeza de que sua dor nas costas é causada por um ataque alienígena.

Enquanto espera, você se distrai contando as plantinhas da sala, que tentam, em vão, melhorar o clima. E então, quando finalmente é chamado, você se sente como um jogador de loteria que acabou de ganhar o prêmio. Mas, ao entrar no consultório, o médico parece ter saído para um café e você acaba esperando mais cinco minutos dentro da sala, pensando se a espera estava realmente valendo a pena.

FILAS NO CARTÓRIO: O LABIRINTO DA BUROCRACIA
Depois da consulta, você precisa ir ao cartório. Ah, o cartório, onde a burocracia é elevada à categoria de arte. Você entra e se depara com uma fila que parece ter saído de um filme de terror, onde os cidadãos estão ali, cada um com sua história de desespero.

A conversa entre os que estão na fila é digna de uma comédia de stand-up . “Você já viu como é o novo formulário? Parece que é mais fácil se alistar na NASA do que tentar registrar um documento aqui!” E todos riem, compartilhando suas experiências de como preencher um simples papel se tornou um verdadeiro teste de paciência.

Quando finalmente chega sua vez, a atendente parece ter saído de um filme de ação, digitando tão rápido que você se pergunta se ela está tentando salvar o mundo ou apenas registrando um documento. E você, claro, esquece todos os documentos que deveria ter trazido.

FILAS PARA O ÔNIBUS: O TEATRO DA VIDA URBANA
Por fim, mas não menos importante, a fila para o ônibus. Chegar à parada é como um jogo de estratégia. Você se posiciona no lugar certo, mas logo percebe que alguém mais ousado já está na sua frente, como se tivesse um mapa secreto do caminho mais curto.

Enquanto espera, você ouve conversas hilárias. Um grupo de adolescentes discute se a nova série da moda é melhor que a anterior, e você se pega pensando se a vida real é tão dramática quanto as tramas que eles discutem. E quando o ônibus finalmente chega, a “luta” para entrar se transforma em uma cena de ação digna de Hollywood, com empurrões e acrobacias.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você percebe que a vida é um grande circo, e cada fila é uma atração à parte. Rir das situações absurdas, compartilhar histórias e até mesmo fazer amigos inesperados no caminho é o que torna tudo mais divertido. Portanto, da próxima vez que você se deparar com uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera, é uma oportunidade de viver um pouco mais da comédia da vida!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Arthur Thomaz (O velho e o vento)

Aqui fora, conversando com o sol e com as plantas, percebo a chegada do vento mansamente sem causar alarde.

Arrisquei um "buenas tardes”, mas me disse que podia falar na minha língua, pois ele percorrera os mais distantes rincões do planeta e conhecia todos os idiomas e dialetos.

Então perguntei a ele que bons ventos o traziam (não resisti a essa brincadeira). Indaguei se ele estava com alguma dúvida.

Respondeu que sim, se era verdade que uma mulher quis tentar me estocar.

Após muitas risadas respondi que não era uma mulher e sim uma alienígena, portadora de apenas dois neurônios, e que não deveria ser levada em conta.

Mais risadas.

Nisso uma garça branca chegou, vestida de bombacha e com uma cuia de chimarrão, e depois de saudar a todos perguntou ao vento se ele já tinha lido o texto do Luís Fernando Veríssimo, o qual afirmava que pessoas tristes ouvem o vento gemer e pessoas alegres, ouvem o vento cantar.

Nesse momento, o amigo vento entoou uma maravilhosa canção encantando todos nós.

Um quero-quero e uma maritaca, que observavam a cena, vendo a boa acolhida que a garça branca teve, juntaram-se a nós. 

Formada a roda de chimarrão continuamos nossa conversa. O quero-quero, que também veio lá do sul do Brasil, disse com orgulho que tinha lido a trilogia "O tempo e o vento" de Érico Veríssimo. A maritaca já foi logo perguntando se ele tinha participado do filme "O vento levou". O vento sorriu e soprando levantou as penas da falante ave. Risadas de todos na roda.

Eu pedi que contasse algumas de suas peripécias mais atuais.

Com face de criança arteira perguntou se eu soube do cargueiro que com uma lufada o fez ficar atravessado e interromper a passagem do canal de Suez.

– Consegui o maior congestionamento de navios de todas as épocas: mais de quatrocentos.

Disse também que, às vezes, apenas se divertia levantando saias das moças ou arrancando a peruca de carecas e, há pouco tempo, levou areia do Saara e jogou nos olhos de pessoas em países que estavam atrapalhando a paz mundial.

Imaginando as cenas, rimos juntos por algum tempo.

Ele afirmou que vagara por bilhões de anos antes da vida surgir no planeta e necessitava umas peraltices para acalmar a tempestade interior (devolveu com outra brincadeira).

Um tanto nostálgico, falou que durante esses bilhões de anos no planeta, ainda sem nenhuma forma de vida, contou com a companhia de um fiel amigo: o tempo.

Ficaram tão unidos que pensaram em formar uma dupla sertaneja, Éolo & Cronos, mas desistiram porque o rádio ainda não havia sido inventado e não haveria audiência. Risos.

Indaguei o motivo de andar tão mal-humorado. 

Calmamente, ele disse que não. E que até já convocara uma coletiva de imprensa para explicar e desmentir esse boato. Tudo inútil, mal prestaram atenção no que eu disse, distraídos olhando o celular.

Já havia implorado aos seres humanos que parassem de testar bombas atômicas, que não poluíssem o meio ambiente, que não jogassem lixo nos mares e rios. Explicou que isso aquecia o ar e o jogava em correntes diferentes do seu curso normal. Quando percebia, já se transformara em ciclones ou devastadores furacões.

Eu lhe disse, com ar consternado, que não via possibilidade desses ditos humanos alterarem esse tipo de conduta. 

Que se preparem para acontecimentos piores, vaticinou.

Ele, então, me envolveu em um tépido abraço e assobiando deslocou-se para outras paragens, prometendo voltar para outras conversas.

E, de longe, brincou que por mais força que fizesse jamais despentearia o meu topete.

A borboleta, pousando em meu joelho, indagou se o vento tinha debochado de minha careca.

Até as plantas ao redor gargalharam.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Santos/SP: Bueno ed., 2021. E-book enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Se todos fossem igual a você)


(samba canção, 1957)

Compositores: Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Vai tua vida,
Teu caminho é de paz e amor
Vai tua vida é uma linda canção de amor
Abre os teus braços
E canta a última esperança
A esperança divina de amar em paz

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar,
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar,
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol,
Como a flor,
Como a luz
Amar sem mentir,
Nem sofrer

Existiria verdade,
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

A Utopia do Amor e da Paz em 'Se Todos Fossem Iguais a Você'
A música 'Se Todos Fossem Iguais a Você', de Vinicius de Moraes, é uma ode à paz, ao amor e à esperança. A letra começa com um convite à vida, destacando que o caminho a ser seguido é de paz e amor. Vinicius sugere que a vida é uma linda canção de amor, e que devemos abrir nossos braços e cantar a última esperança, que é a esperança divina de amar em paz. Essa introdução estabelece um tom otimista e idealista, onde o amor é visto como a solução para os problemas do mundo.

No refrão, Vinicius imagina um mundo onde todos fossem iguais à pessoa amada. Ele descreve esse mundo como um lugar maravilhoso para se viver, onde a música e a alegria estariam presentes em todos os lugares. A imagem de uma cidade inteira cantando e sorrindo reforça a ideia de uma sociedade harmoniosa e feliz. A beleza de amar é comparada a elementos naturais como o sol, a flor e a luz, simbolizando pureza e verdade. Amar sem mentir nem sofrer é apresentado como um ideal a ser alcançado.

A música também aborda a questão da verdade, sugerindo que a verdade que ninguém vê existiria se todos fossem iguais à pessoa amada. Isso implica que a falta de amor e compreensão é o que impede a verdade de ser percebida. Vinicius de Moraes, conhecido por suas poesias e canções que exploram temas de amor e existencialismo, utiliza essa música para expressar uma visão utópica de um mundo melhor. A simplicidade e a beleza da letra refletem a profundidade dos sentimentos humanos e a busca por um ideal de vida baseado no amor e na paz.

Em meados de 56, Vinícius de Moraes estava com a peça "Orfeu da Conceição" pronta, faltando somente conseguir um compositor para musicá-la e, se possível, orquestrá-la. Achava Vinicius que o nome ideal para a tarefa seria o de Vadico (Osvaldo Gogliano), parceiro de Noel Rosa que, convidado não aceitou.

Atendendo, então, a uma sugestão do crítico musical Lúcio Rangel, o poeta convidou Antônio Carlos Jobim, na época um jovem compositor e arranjador ainda pouco conhecido.

Começava assim a parceria Tom/Vinicius, uma das mais importantes da música brasileira, juntando o talento de um grande músico ao de um poeta consagrado e que deu como primeiro fruto "Se Todos Fossem Iguais a Você". Romântica, requintada, até com uma certa tendência para o monumental, "Se Todos Fossem Iguais a Você" é a melhor composição do repertório criado para a peça. Lançada por Roberto Paiva no final de 56 chegaria ao sucesso no ano seguinte, quando recebeu várias outras gravações.

Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, A Canção no Tempo. vol. 1. 1997.
https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49284/

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 4 *


 

Geraldo Pereira (Colombinas Enternecidas)

As minhas saudades estão guardadas agora em dourados guizos das fantasias dos meus outroras e revivem lembranças dos carnavais que se foram e nunca mais hão de voltar. Ah, recordações dos tempos pretéritos, de amores rompidos assim, sem as antecipações dos rumores e das dores! 

Onde andarão as enternecidas colombinas de meus anos, que encantavam pierrôs apaixonados e inquietavam arlequins desesperados? E os palhaços, de roupas largas e de muitas cores, de máscaras risonhas, tocando castanhola e acompanhando o frevo de bloco ou o rasgado dos acordes?

Nem as serpentinas jogadas bem longe, nas distâncias que embalam os nostálgicos sonhos do imaginário, recuperam aqueles tempos: os salões enfeitados e os pares rodopiando alegria. E nem os confetes, com o espectro todo do arco-íris da vida, flutuando nos ares ao sabor dos ventos, vão trazer de volta os beijos roubados das mascaradas moçoilas, que escondiam a face, mas não podiam negar as formas do corpo! Se o lança perfume evaporou-se para sempre, deixou pelo menos gravado na memória das épocas o aroma gostoso que aproximava os corações ardentes, inflamando as paixões! E o mais do que tradicional corso, como uma serpente enorme, espalhando-se e se espraiando, carro após carro, caminhões enfeitados com faixas de pano, batucadas improvisadas e músicos de ocasião? O bate-bate de maracujá e a animação tomando conta do mundo pequeno dos meus dias de menino desapareceram também nos ares da vida! Era o frevo no pé e o pé no frevo, contanto que houvesse alegria na fanfarra das horas!

Revejo, então, o sacrário das minhas saudades, depositário das minhas lembranças, para acender os meus devaneios pueris, guardados ali, naquele canto das recordações dos pretéritos do existir terreno. A fantasia azul de marinheiro, da cor do céu, de gola branca e larga estava lá, engomada e passada, pronta para ser usada. Foi a minha mãe quem a manteve assim, embalando as divagações e os sonhos da criança do antes, oníricos, sobretudo diurnos, preservando os mais particulares desejos, de ver e de rever esse tempo encantado. Não adianta querer vestir a roupinha de palhaço, de fazenda estampada, com um coração muito grande preso no pano, representando os amores de uma infância feliz e bem vivida. E de que serve querer ouvir, na velha radiola de casa, os acordes dos frevos de bloco, a musicalidade de Nelson e de Capiba, tão presentes naqueles dias?

O disco de 78 rotações não tem mais em que agulhinha rodar, porque cedeu lugar aos avanços e perdeu o espaço na corrida do tempo: 

“Ah!/Saudade!/Saudade tão grande!/Saudade que tenho...” . Na madrugada do domingo, agora, não posso mais ver chegar a musa de minha rua, vestida com a fantasia de capitão, da mais pura e branca seda, aos beijos e aos abraços com o pretendente emergente, num amor de causar dor e dó a todos que a tinham na mais do que franca maneira de promover no imaginário as enlevações do espírito. Se casou ninguém sabe, ninguém viu! Sabe-se, apenas, que ficou na lembrança de muita gente!

Faço hoje mesmo o itinerário sentimental do corso e viajo pelas ruas do Recife, sem me ater aos indicativos de trânsito, às proibições do tráfego, postas aqui e ali sinalizando a modernidade, contanto que possa rever os meus passos e os meus passados, as minhas andanças, afinal, em tempos idos, acolhidos já na enorme distância das saudades! Posso ouvir o batuque cadenciado dos tamborins daqueles outroras, que no caminhão, ao fundo, animava a meninada toda! E na velha Casa de Detenção descortino os antigos sinais dos encarcerados, da gente presa ali, pendurada às grades, dando adeus à liberdade dos outros. Passo pela a rua da Concórdia inteira, o meu paço da folia à época, do começo à praça, cumprimentando em pensamento os passantes todos, as colombinas e os arlequins, os pierrôs e os palhaços, os mascarados e os papangus* que assombravam os meninos nas ruidosas manhãs de sábados encantados. Sento-me, porém, num banco qualquer e vou rebuscar encontros e desencontros dos meus derradeiros corsos! Foi aqui, relembro, falando quase, que vi a musa dos meus dias, que identifiquei o peculiar sorriso, alvo e puro, de incisivos levemente oblíquos, dando vida à beleza nascente, que a vi crescer e desenvolver na corrida do tempo, do implacável relógio marcando as horas e rodando os dias. Quando os nossos olhares se cruzavam nos ares da fanfarra, o riso adornava-lhe a face bem desenhada das esculturas forjadas pelas mãos do Criador! Tomei a mim a missão de amá-la! Melindrosa dos meus dias!

Posso, então, cantar, com o menestrel do amor: “Os melhores dias de minha vida/Eu passei contigo/Minha querida...”. Assim, atualizo as minhas saudades, lembrando os carnavais do ontem e amando a musa do hoje!
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* Papangus = Pessoa que sai à rua mascarada ou com certa fantasia, no carnaval ou em reisados.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Clarisse da Costa (Trabalho coletivo)


Você perde muitas coisas seguindo padrões. O bom profissional pensa fora da caixa. Primeiro que trabalhar no coletivo é pensar coletivamente. Temos que ser visionários. Eu não organizo uma antologia pensando no lucro, mas sim, visando o futuro de todos, pois é um trabalho coletivo.

A base de um trabalho coletivo é dedicação, troca de ideias, parcerias, diálogos abertos e ocupação de espaços, para o melhor andamento do projeto.

É necessário conhecer as pessoas com quem iremos trabalhar, por isso a importância de diálogos abertos.

Claro que conhecer as técnicas e todas as teorias faz parte do processo, entretanto precisamos usar o lado humano em algumas em algumas questões. Afinal de contas, usamos máquinas no nosso trabalho, mas não precisamos ser máquinas.

Fonte: Texto enviado por Samuel da Costa

Recordando Velhas Canções (Eu não existo sem você)

(samba-canção, 1958)


Compositores: Vinícius de Moraes e Tom Jobim

Eu sei e você sabe,
já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
levará você de mim
Eu sei e você sabe
que a distância não existe
Que todo grande amor
só é bem grande se for triste

Por isso, meu amor, não tenha medo de sofrer
Pois todos os caminhos me encaminham prá você

Assim como o oceano só é belo com o luar
Assim como a canção só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem só acontece se chover
Assim como o poeta só é grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor não é viver
Não há você sem mim e eu não existo sem você

A Intensidade do Amor em 'Eu Não Existo Sem Você'
A música 'Eu Não Existo Sem Você', é uma expressão lírica da intensidade e da profundidade do amor romântico. A letra transmite a ideia de que o amor verdadeiro é tão essencial à existência dos amantes que um não pode viver sem o outro. Através de comparações poéticas, Vinicius de Moraes enfatiza que a vida sem o ser amado é incompleta, assim como a canção precisa da voz para existir ou o oceano precisa da lua para ser belo.

O poeta também aborda a inevitável presença da tristeza no amor, sugerindo que o sofrimento é um componente natural e até mesmo necessário para que o amor seja grandioso. A aceitação da dor como parte do amor é um convite para enfrentar os desafios sem medo, pois todos os caminhos levam ao encontro do ser amado. A música reflete a visão de Vinicius de que o amor é um sentimento sublime, capaz de transcender distâncias e adversidades.

A canção é um clássico da música popular brasileira e reflete o estilo lírico e emocional de Vinicius de Moraes, que era conhecido como 'o poeta do amor'. Suas obras frequentemente exploram os temas do amor, da paixão e da saudade, e 'Eu Não Existo Sem Você' é um exemplo marcante dessa temática, ressoando com ouvintes que se identificam com a experiência universal do amor profundo e suas complexidades.
Fonte: https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49268/

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 41

 

José Feldman (A Arte da Filinha: Uma Comédia da Vida Cotidiana)

Ah, as filas! Essas longas serpentes de impaciência que se estendem como uma obra de arte moderna, sempre nos convidando a uma reflexão profunda sobre a condição humana. Se você pensa que a vida é feita de momentos gloriosos, experimente passar um dia inteiro na fila de um supermercado. Aí sim você vai entender o verdadeiro significado de “esperar”.

O supermercado, esse templo da alimentação onde, em teoria, você vai apenas comprar um pão e um litro de leite. Mas, ao entrar, você se depara com um labirinto de prateleiras e, claro, a fila do caixa. Você observa a cena: uma senhora, que parece ter saído de um filme de ação, está examinando cada item no seu carrinho como se fosse uma missão secreta. E ali está você, atrás dela, questionando suas escolhas: “Por que alguém precisaria de 17 pacotes de bolacha de água e sal?”

Enquanto isso, a jovem à sua frente está tentando pagar com um cartão que claramente já passou pela guerra. O caixa, que é um ser humano como você, tenta, com todas as suas forças, persuadir a máquina a aceitar aquele pedaço de plástico. E você, que estava apenas querendo um pão, agora se encontra em um drama digno de Shakespeare.

Saindo do supermercado, você pensa: “Pelo menos no banco as filas são mais organizadas.” Ah, ingênuo! A fila do banco é como um jogo de xadrez. Você se posiciona cuidadosamente, mas logo percebe que está cercado. À sua esquerda, um homem que parece ter uma consulta de emergência com o gerente, e à sua direita, uma mãe tentando explicar a importância da conta bancária para sua filha de cinco anos. “Não, querida, você não pode comprar um unicórnio com moedinhas.” O diálogo se arrasta, e você, que só queria sacar dinheiro, começa a imaginar a vida em uma ilha deserta.

E, claro, quando finalmente chega sua vez, o caixa está fora do ar. “Desculpe, o sistema está lento hoje.” Ah, o sistema! Essa entidade mística que nunca parece funcionar quando você mais precisa. Agora você se pergunta se é mais fácil sacar dinheiro de um caixa eletrônico ou se deve arriscar mais uma fila.

Ah, os caixas eletrônicos, essas máquinas que prometem a liberdade financeira, mas que muitas vezes se tornam um verdadeiro campo de batalha. Você se aproxima do caixa, triunfante, e aperta os botões como se estivesse jogando um videogame. Mas, claro, a máquina não reconhece seu cartão. “Cartão não identificado.” Que mistério! Você olha ao redor, esperando que alguém aponte a solução mágica, mas todos estão tão absortos em seus próprios dramas que você se sente como um personagem secundário em um filme sem roteiro.

E quando finalmente consegue fazer a transação, você se depara com a tela que pergunta: “Deseja realizar outra transação?” Você hesita, pensando: “Desejo, sim, mas não desejo ficar aqui mais um segundo.”

Depois do drama do banco e do caixa eletrônico, você decide que é hora de ir para casa. Mas, claro, o destino reserva mais uma fila para você: a do estacionamento. Você roda em círculos, como um hamster em uma roda, à procura de uma vaga. E quando finalmente encontra uma, tem que lidar com a arte de estacionar. O carro da frente parece ter sido estacionado por um artista surrealista, e você se pergunta se realmente precisa de uma licença de piloto para isso.

Uma vez estacionado, você se dirige à saída, apenas para se deparar com uma fila de pessoas tentando pagar seus tickets. O caixa, que parece ter saído de um filme de terror, tenta processar os pagamentos, mas a máquina de cartão está mais lenta que um caracol em um dia preguiçoso.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você volta para casa exausto, mas também um pouco mais feliz. Porque, no fundo, as filas são um microcosmo da vida. Elas nos ensinam paciência, resiliência e, claro, a arte de fazer amigos. Você pode até sair de uma fila com um novo conhecido, alguém que também estava preso no labirinto do supermercado ou tentando desvendar os mistérios do caixa eletrônico.

Portanto, da próxima vez que você se encontrar em uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera. É uma oportunidade de rir, refletir e, quem sabe, fazer uma nova amizade. Afinal, o verdadeiro tesouro da vida pode muito bem estar escondido entre os carrinhos de compras e as máquinas de cartão. 

E se não estiver, pelo menos você terá uma boa história para contar!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Flavius Avianus (O asno em pele de leão)

Certa feita, um asno achou uma pele de leão. Cuidou, pois, de cobrir-se, como podia, com a pele, embora esta pouco lhe conviesse. E, como se viu vestido com a roupa de leão honrado, exibindo uma valentia muito superior à que lhe legara a Natureza, aterrorizava todos os outros animais.

Com desmedida presunção, pisoteava o pasto que partilhava com as ovelhas e os cordeiros e, com semelhante empáfia, apavorava dóceis animais silvestres, como os cervos e as lebres nas matas.

Todavia, quando assim pomposamente desfilava no bosque, deparou-se com o seu dono — o aldeão de quem se havia desgarrado — e que, por acaso, passava por aquelas matas. 

Achando-o assim vestido com uma pele de leão, o aldeão agarrou-o pelas longas orelhas — que haviam ficado descobertas — e, dando-lhe cruéis vergastadas, arrojou-lhe fora a vestimenta enganosa.

— Aos que não te conhecem, tu provocas, facilmente, pavor e espanto; mas aos que sabem quem verdadeiramente és, já não podes apavorar: sempre foste e serás o que és: um asno. E enverga, apenas, as roupas que o teu pai natural te legou: não cobices as honras alheias — que não te pertencem — para que não sejas menosprezado quando delas fores desnudado! A quem pensavas indevidamente honrar?

Fontes: Flavius Avianus. Fábulas. século V. versão em português de Paulo Soriano, a partir de tradução anônima espanhola de 1489.
Imagem obtida em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=bXMpzUTbs-M

Recordando Velhas Canções (Duas contas)

(samba-canção, 1955)


Compositor: Garoto

Teus olhos
São duas contas pequeninas
Qual duas pedras preciosas
Que brilham mais que o luar

São eles
Guias do meu caminho escuro
Cheio de desilusão
E dor

Quisera que eles soubessem
O que representam pra mim
Fazendo que eu prossiga feliz
Ai amor
A luz dos teus olhos
 
A Luz dos Olhos em 'Duas Contas'
A música 'Duas Contas' é uma bela e poética declaração de amor, onde o artista utiliza metáforas para expressar a importância dos olhos da pessoa amada em sua vida. Os olhos são comparados a 'duas contas pequeninas' e 'pedras preciosas', destacando seu valor e brilho. Essa comparação não só exalta a beleza física dos olhos, mas também sugere que eles possuem um valor inestimável para o eu lírico.

Os olhos da pessoa amada são descritos como guias no 'caminho escuro' do eu lírico, que está cheio de desilusão e dor. Essa metáfora indica que, apesar das dificuldades e tristezas enfrentadas, a presença e o olhar da pessoa amada trazem luz e direção, proporcionando esperança e felicidade. A música, portanto, fala sobre a capacidade do amor de transformar e iluminar a vida, mesmo nos momentos mais sombrios.

Utiliza uma linguagem simples, mas profundamente emotiva, para transmitir a mensagem de 'Duas Contas'. A repetição da ideia de que os olhos da pessoa amada são uma fonte de luz e felicidade reforça a centralidade desse sentimento na vida do eu lírico. A canção é uma celebração do amor e da importância de pequenos gestos e detalhes, como um olhar, que podem ter um impacto profundo e duradouro.
Fonte: https://www.letras.mus.br/toquinho/1206287/

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 61: O fardo


 

José Feldman (Pafúncio e o Velório do Cantor)

 
Era uma manhã nublada quando Pafúncio, o jornalista da revista de fofocas, recebeu uma tarefa que o deixou em estado de choque: cobrir o velório de um famoso cantor pop que havia falecido. O editor da revista, em um momento de pura ousadia, achou que Pafúncio seria a pessoa perfeita para trazer um “toque especial” ao evento.

Com um terno que parecia ter sido herdado de um tio distante e uma gravata de estampas questionáveis, Pafúncio chegou ao local do velório. A atmosfera estava pesada, mas ele, em sua natureza despreocupada, acreditava que poderia trazer alguma leveza ao ambiente.

Assim que entrou na sala, Pafúncio se deparou com uma multidão de fãs chorando e uma série de flores e coroas espalhadas por todo o espaço. Ele se aproximou do caixão, onde o cantor estava descansando em paz, e começou a se preparar para tirar algumas fotos. “Isso vai render uma ótima matéria!” pensou, enquanto ajeitava a câmera.

No entanto, sua primeira trapalhada ocorreu quando, ao tentar ajustar a lente, ele acidentalmente ativou o flash. O estalo foi tão alto que muitos dos presentes se viraram, surpresos. 

“Desculpe, gente! Só capturando a luz do além!” Pafúncio gritou, fazendo alguns fãs rirem nervosamente.

Decidido a fazer uma reportagem que seria lembrada, ele começou a entrevistar os fãs que estavam ali. 

“O que você mais gostava no cantor?” perguntou a uma fã, que, em meio às lágrimas, respondeu: “A voz dele era como um anjo!”

“E como você acha que ele se sentiria se soubesse que você está aqui?” Pafúncio continuou, sem perceber que estava sendo totalmente insensível.

“Ele estaria feliz! Mas, por favor, é um velório…” a fã tentou responder, mas Pafúncio já estava distraído, tentando captar a emoção dela com a câmera.

Em sua busca por boas histórias, Pafúncio se aproximou de um grupo de músicos que estavam lamentando a perda do amigo. 

“Oi, posso perguntar como é ser parte da banda do ‘Cantor que Não Deveria Estar Morto’?” ele disse, sem pensar. 

Os músicos o olharam com uma mistura de indignação e surpresa.

“Ele não está ‘morto’! Ele só está descansando!” um deles gritou, enquanto Pafúncio tentava se explicar. “Eu quis dizer… é uma expressão! Como ‘partir para outra!’” ele balbuciou, mas a situação só piorou.

Pafúncio então decidiu que precisava fazer algo grandioso para a reportagem. Ele se lembrou de que o cantor havia escrito uma famosa balada sobre amor e, em um momento de pura inspiração, decidiu que seria uma boa ideia cantar um trecho da música no velório. Subindo em uma cadeira, ele começou a entoar a canção com toda a sua alma, mas sua voz era tão desafinada que os presentes começaram a olhar para ele com expressões de horror.

“Pafúncio, por favor, desça daí!” gritou um dos organizadores do velório, mas ele estava tão envolvido em sua performance que ignorou os avisos.

Depois de alguns versos desastrosos, ele perdeu o equilíbrio e caiu, derrubando uma mesa cheia de flores. As flores voaram pelo ar, caindo sobre o caixão e as pessoas ao redor. 

“Desculpe! Isso foi um… um tributo floral!” ele gritou, enquanto tentava se levantar, mas as pessoas já estavam em estado de choque.

Para piorar a situação, Pafúncio, tentando se desculpar, pegou um copo d'água para se refrescar e, sem querer, jogou o conteúdo todo na direção do caixão. O líquido escorreu pelo lado e atingiu a roupa do cantor. 

“Isso é um sinal! Ele está se mexendo!” alguém gritou, e as pessoas começaram a entrar em pânico.

Quando a situação parecia mais insustentável, algo realmente surpreendente aconteceu. Com um estalo, o caixão se abriu lentamente e, para espanto de todos, o cantor começou a se levantar. Com um olhar irritado, ele se virou para Pafúncio, que estava paralisado de medo.

“Pafúncio! Por favor, me deixe morrer em paz!” exclamou o cantor, claramente frustrado com toda a confusão. 

Ele olhou para a multidão, que estava em estado de choque, e disse: “Eu só queria um velório tranquilo, e você transformou isso em um show!”

A sala ficou em silêncio absoluto, e Pafúncio, com o rosto vermelho de vergonha, finalmente encontrou sua voz. “Desculpe! Eu só queria ajudar!” ele gaguejou.

O cantor, ainda visivelmente irritado, balançou a cabeça e se deixou cair de volta no caixão. “Você realmente não deveria estar aqui, Pafúncio,” ele disse, enquanto a tampa do caixão se fechava lentamente.

Com a tensão no ar, as pessoas começaram a rir nervosamente, e Pafúncio finalmente percebeu que havia se tornado o centro das atenções, mas não da maneira que esperava. 

“Acho que sou a última pessoa que deveria fazer reportagens sobre eventos tristes,” ele murmurou, enquanto começava a se afastar do caixão.

Saindo do velório, Pafúncio se sentiu aliviado, mas também um pouco triste. “O que será que vou escrever sobre isso?” ele pensou, enquanto se afastava, já pensando na manchete: “O cantor que não queria ser perturbado e o jornalista trapalhão que não sabia quando parar.”

E assim, mais uma vez, Pafúncio provou que, em sua vida cheia de desastres, sempre havia espaço para uma boa história — mesmo que essa história envolvesse um cantor ressuscitando para pedir paz. 

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Figueiredo Pimentel (A princesa adivinha)

Luísa era uma princesa, que tinha tudo quanto pode haver de mais formoso. Quem a via, ficava logo perdido de amores.

Pretendentes sem conta, todos os reis da terra, apareceram, pedindo-a em casamento. Luísa recusou-os, declarando que só se casaria com o homem, fosse quem fosse, capaz de fazer uma adivinhação que ela não conseguisse decifrar.

Sabendo disso, um rapaz, conhecido como Zé Tolinho, quis ver se obtinha aquele impossível. Filho de um viúvo que se casara em segundas núpcias, a madrasta maltratava-o. Era um desgraçado, e tanto lhe fazia viver como morrer. 

Saiu de casa, em companhia de uma cachorra chamada Pita, levando um pedaço de pão, que a madrasta lhe dera.

Ia reparando em tudo quanto via pelo caminho.

Sentindo fome, estava para trincar o pão, quando se lembrou que a madrasta podia tê-lo envenenado.

Para experimentar deu-o à cadelinha, que caiu morta no mesmo instante. 

Estava a enterrar o pobre animalzinho, e ia pô-lo no buraco que cavara, mas não teve tempo: uma nuvem de urubus desceu, e alguns, mais ousados, devoraram-na de pronto. Sete mais esfomeados, morreram.

Tolinho caminhou adiante, levando os urubus mortos.

Chegando a uma casa que havia à beira da estrada, três bandidos tomaram-lhe à força os urubus. Havia muitos dias que se achavam foragidos da polícia, e morriam de fome. Atiraram-se aos urubus, julgando que eram galinhas, e morreram envenenados. 

Vendo-os mortos, Tolinho escolheu a melhor espingarda, e prosseguiu na jornada.

Um pouco mais longe avistou um macaco trepado sobre uma árvore. Apontou a espingarda, fez fogo, mas errou o tiro, indo porém matar uma pomba-rola que não vira.

Depenou-a, assou-a, fazendo fogo com a madeira conhecida como santa-cruz, e comeu-a. Sentia sede, e não tendo água, aparou o suor que lhe escorria do rosto, e bebeu-o.

Terminado o frugal jantar, marchou pelo caminho em fora, encontrando um cavalo morto, levado pela correnteza do rio, enquanto os urubus o comiam.

Meia légua mais além, reparou que um burro escavava o chão, até encontrar uma panela com dinheiro, ali enterrada. Apanhou o dinheiro, montou no animal e chegou ao palácio.

Quando Luísa soube que um novo pretendente se apresentava, marcou a hora para a audiência.

No salão principal do régio paço, perante a corte, na presença dos maiores sábios, e mais ilustres literatos, Tolinho compareceu, e propôs o enigma:

Eu saí com massa e Pita:
A massa matou a Pita;
E Pita matou a sete,
Que também a três mataram.
Das três a melhor colhi,
E atirando no que vi,
Fui matar o que não vi...
Foi com a madeira santa,
Que cozinhei e comi;
Bebi água, não do céu;
Um morto vivos levava;
E o que os homens não sabiam,
Sabia um simples jumento...
Decifre, pra seu tormento...

Em vão Luísa tentou adivinhar o enigma.

Não o conseguindo, cumpriu a sua palavra, desposando Tolinho.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Incelença do Amor Retirante)


Compositor: Elomar Figueira Melo 

Vem amiga visitar
A terra, o lugar
Que você abandonou
Inda ouço murmurar
Nunca vou te deixar
Por Deus Nosso Senhor
Pena cumpanheira agora
Que você foi embora

Na vida fulorô
Ouço em toda noite escura
Como eu a tua procura
Um grilo a cantar
Lá no fundo do terreiro
Um grilo violeiro
Inhambado a procurar
Mas já pela madrugada
Ouço o canto da amada
Do grilo cantador
Geme os rebanhos na aurora
Mugindo cadê a senhora
Que nunca mais voltou

Faz um ano em janeiro
Que aqui pousou um tropeiro
O cujo prometeu
De na derradeira lua
Trazer notícia tua
Se vive ou se morreu
Derna aquela madrugada
Tenho os olhos na istrada
E a tropa não voltou
Ao sinhô peço clemença
Num canto de incelença
Do amor que ritirou

A Dor do Amor Perdido em 'Incelença Pro Amor Retirante'
A música 'Incelença Pro Amor Retirante' de Elomar Figueira Melo é uma obra poética que retrata a dor e a saudade de um amor que se foi. A letra é rica em imagens e metáforas que evocam a solidão e a espera interminável por notícias da pessoa amada. Desde o início, o eu lírico convida a amiga a visitar o lugar que ela abandonou, revelando um sentimento de abandono e perda. A promessa de nunca deixar o outro, feita em nome de Deus, contrasta com a realidade da separação, intensificando a dor sentida pelo eu lírico.

A presença de elementos da natureza, como o grilo cantador e os rebanhos que gemem na aurora, serve para ilustrar a solidão e a busca incessante pelo amor perdido. O grilo, que canta na escuridão, simboliza a esperança e a procura constante, enquanto os rebanhos mugindo representam a ausência e a saudade. A música também faz referência a um tropeiro que prometeu trazer notícias da amada, mas que nunca voltou, aumentando a sensação de desespero e incerteza sobre o destino do amor.

Elomar, conhecido por sua habilidade em mesclar elementos da cultura sertaneja com uma linguagem poética sofisticada, utiliza a 'incelença' – um canto fúnebre tradicional do sertão – para expressar a dor do amor retirante. A música é uma lamentação profunda, um pedido de clemência ao Senhor pela ausência da amada. A 'incelença' finaliza a canção, reforçando o tom de tristeza e resignação diante da perda irreparável. A obra de Elomar é um testemunho da riqueza cultural do sertão brasileiro e da universalidade dos sentimentos humanos.
Fonte: https://www.letras.mus.br/elomar/376570/