segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Geraldo Pereira (Gostosas Saudades)

Aqui deste canto, onde me encanto, ainda, na antiga e paradisíaca praia de Pau Amarelo, onde os pássaros entoavam o cântico dos cânticos, posso parar nesta manhã de sábado e deixar que o imaginário ganhe as asas do tempo, reavendo minhas vivências e minhas convivências, meus convívios, enfim, de anos que se foram. O telefone celular que me acompanha, trazendo boas notícias e às vezes informações dolorosas, não faz ligação para o outrora e nem promove o desejado reaver das lembranças que me inquietam e que alimentam fantasias desses impossíveis retornos nas décadas e até no século. É irrealizável, então, à ciência do homem no presente das coisas essa viagem de volta. À infância – quem sabe? -, à adolescência ou à juventude! Fui feliz, creio firmemente, porque amei e fui amado!
  
Gostaria de me sentar, outra vez, no alpendre de casa, de fazer a arrumação dos brinquedos, os carrinhos de madeira e os apetrechos de guerra, de plástico já. Arranjar o batalhão de soldadinhos de chumbo no chão e prepará-los para a batalha de Monte Castelo, alguns com as armas aos ombros, poucos com o telefone de campanha e a maioria simplesmente em guarda, como deve convir mesmo às criaturas assim, resultantes da imaginação alheia. Sou nascido durante a beligerância mundial e criado no pós-guerra! Sonhar de novo, como fazia dantes, com a vizinha de defronte, bonitona e noiva. Mudar o conteúdo desses devaneios oníricos, como sucedeu, acompanhando o passar da idade, o evoluir dos sentimentos, num crescente apelo do inteiramente sensual.

Ah, que saudades de minha adolescência, de minhas paixões impossíveis e de meus amores plausíveis, das minhas férias e de meu futebol, dos meus canários abrindo as asas e entoando o pranto meloso das perdas! Que saudades das festas de rua, das quermesses e das quadrilhas, dos flertes e dos encontros furtivos, dos beijos roubados num girar qualquer de um carrossel dos ares. Lembranças gostosas do tempo dos tempos, do viço da idade que se esvai mais e mais, da leveza d’alma e do levitar do espírito, dos dias e das noites daqueles inícios! Esperanças a povoarem a força do pensamento, promessas vãs, nunca cumpridas, vontades guardadas e desejos reprimidos, recalcados tantos! Descobertas mil, de sentimentos emergentes e de carícias bem cuidadas, de afetos e de afagos, da saudade que foi surgindo logo, logo!

E a minha juventude? Começo difícil da arte do existir ou do exercício do viver, recomeço, muitas vezes, reflexões impostas à consciência no julgamento pessoal, rigor nas interpretações dos gestos, dos atos e dos fatos! Contato com o bem e o mal, a saúde e a doença, a morte, enfim. Identificação pesarosa do caráter de outros, dos semelhantes que trazem a inquietação e o desamor, artífices das desuniões planejadas, que de nada gostam e por ninguém suportam nutrir o sentimento maior. Falsos e desleais! Empregos conseguidos às custas de um esforço enorme, salários em baixa sempre, inquietudes assim, de natureza pecuniária, as compras do mês comprometidas e as aquisições maiores adiadas! Sonhos desfeitos e devaneios perdidos entre os percalços sentidos! Talvez, nem queira voltar às experiências de jovem!

As minhas gostosas saudades são aquelas, as da infância e as da adolescência, quando o meu ser viveu a completude do tempo! Por isso, nesta nublada manhã de um sábado qualquer, em minhas férias regulares, retorno nas décadas e no século e vou pairar nos meados dos anos cinquenta ou nos inícios dos mágicos dias de sessenta, resgatando pretéritos e retomando passados. Sou um nostálgico, pois! Executo a sinfonia das voltas e tomo assento nos antanhos vividos. Viro menino de calças curtas e me visto, em seguida, com o velho brim coringa não encolhe, uso as alpargatas Rhodia dos agrados de minha tia velha. O grupo escolar e o colégio, a rua de casa e a festa do parque, os passeios no Quemmequer e as fantasias do cinema, um abraço e um beijo! Abro a caneta Compactor, vou escrever, afinal, as letras de meu futuro, que é o hoje dos meus dias.

Feliz século aos homens de boa vontade, aos que têm gostosas saudades!
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GERALDO JOSÉ MARQUES PEREIRA nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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José Feldman (Textos & Trovas) Amores na Mocidade

Texto construído tendo por base a trova do Professor Garcia (Caicó/RN)

Amores na mocidade!...
Depois, a contrapartida:
cansaço, dor e saudade
na curva extrema da vida!

Numa pequena cidade , onde o sol sempre brilhava e as flores coloridas enfeitavam as ruas, vivia uma jovem chamada Lara. Em sua juventude, era conhecida por sua beleza radiante e sua risada contagiante. Ela sonhava com grandes amores, com aventuras que a levariam a lugares distantes e emocionantes. Ao lado de suas amigas, costumava passar as tardes discutindo sobre os romances que lia e imaginando o príncipe encantado que um dia surgiria em sua vida.

Certa manhã, enquanto caminhava pelo parque, Lara encontrou um jovem chamado Lúcio. Ele era diferente de todos que conhecia: tinha um olhar profundo e um jeito tranquilo que a encantava. Os dois logo se tornaram inseparáveis, compartilhando risadas, sonhos e promessas de um futuro juntos. Os dias se transformaram em meses, e aqueles momentos de amor intenso pareciam eternos. Eles faziam planos, falavam sobre construir uma vida juntos e acreditavam que a felicidade seria infinita.

Contudo, com o passar do tempo, a paixão que os unia começou a se transformar. As diferenças entre eles se tornaram evidentes, e as pequenas desavenças que antes eram insignificantes começaram a se acumular. Lúcio, que sempre fora sonhador, agora se via pressionado a assumir responsabilidades que não desejava. Lara, por sua vez, aspirava por aventuras e desafios, enquanto ele buscava segurança e tranquilidade. O amor que antes parecia inabalável começou a fraquejar sob o peso das expectativas e da realidade.

Após alguns meses de tentativas frustradas de resolver suas diferenças, eles decidiram se separar. 

O término foi doloroso, e ambos sentiram a perda de um futuro que acreditavam ser certo. Lara, em particular, sentiu uma onda de saudade que a envolveu como um manto pesado. As memórias dos momentos felizes pareciam agora uma sombra do que poderia ter sido. A cidade que antes vibrava com as cores de sua juventude agora parecia mais cinzenta e solitária.

Com o passar do tempo, ela buscou consolo em novas amizades, mas a dor da perda permanecia. Ela percebeu que, apesar da beleza dos amores da mocidade, havia uma contrapartida que não se podia ignorar: o cansaço emocional, a dor da saudade e a sensação de que algo precioso havia sido deixado para trás. Ela começou a refletir sobre o que realmente significava o amor e como, muitas vezes, ele podia ser fugaz e decepcionante.

Anos se passaram, e ela se tornou uma mulher mais madura. Ela viveu novos relacionamentos, cada um trazendo suas próprias lições e desafios. Aprendeu a valorizar não apenas os momentos de alegria, mas também as dificuldades que moldavam seu caráter. As cicatrizes emocionais que carregava se tornaram parte de sua história, e ela começou a aceitar que o amor, em suas diferentes formas, é uma jornada repleta de altos e baixos.

Um dia, durante um passeio pelo parque, encontrou Lúcio novamente. Ambos estavam mais velhos, com marcas de vida que contavam histórias de amores e perdas. Eles se cumprimentaram com um sorriso tímido, lembrando-se da intensidade da juventude. A conversa fluiu naturalmente, e logo estavam rindo das lembranças que compartilhavam.

“Você se lembra daquele verão?”, perguntou Lara, com um brilho nostálgico nos olhos. “Aquele em que prometemos que seríamos sempre felizes?” ele sorriu, mas havia uma tristeza em seu olhar. “Sim, eu me lembro. Mas a vida nos ensinou que a felicidade é feita de muito mais do que apenas promessas.”

A conversa se aprofundou, e os dois compartilharam suas experiências, seus erros e aprendizados ao longo dos anos. Ela percebeu que, apesar da dor e da saudade, havia algo belo na jornada que vivera. Cada amor, cada desilusão, havia contribuído para a mulher que se tornara. Ela compreendeu que, embora a vida pudesse ser desafiadora, cada capítulo era essencial para seu crescimento.

Ao final do encontro, Lara e Lúcio se despediram com um abraço sincero, cada um levando consigo uma sensação de paz. Ela percebeu que os amores na mocidade, com suas alegrias e tristezas, não eram em vão. Eles faziam parte dos retalhos da vida, cada tecido contribuindo para a imagem mais ampla de quem ela era.

E assim, com o coração mais leve, caminhou de volta para casa, sabendo que a vida, com suas curvas extremas, era uma jornada que valia a pena. A moral dessa história ficou clara em sua mente e coração: 

Os amores da juventude, com suas alegrias e dores, são fundamentais para moldar quem nos tornamos, e mesmo na saudade, há beleza e aprendizado.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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domingo, 9 de fevereiro de 2025

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 10

 
  

José Feldman (Solidão: Ser e Estar)

A solidão é uma das experiências mais universais e, ao mesmo tempo, mais profundamente particulares da condição humana. Em um mundo hiperconectado, onde a comunicação flui instantaneamente através de telas e redes sociais, a ironia é que muitos se sentem mais sozinhos do que nunca. Esta contradição nos leva a refletir sobre o impacto da solidão no ser humano, suas nuances, suas dores, e, paradoxalmente, seus potenciais benefícios. 

Para alguns, a solidão é uma sombra que se estende, envolvendo o ser em um manto de tristeza e abandono. A ausência de companhia, a falta de diálogo e a desconexão emocional podem se transformar em um labirinto sem saída. Ao olhar ao redor, muitos se deparam com o eco de suas próprias vozes, e a vida se torna um monólogo onde cada pensamento se torna um peso. A perda de vontade de viver é uma consequência comum - a solidão, em sua forma mais crua, pode corroer a esperança e o desejo de mudança. 

Entretanto, a solidão não é apenas um estado de dor. Ela também pode ser um espaço de introspecção e autodescoberta. A solidão, quando bem administrada, oferece uma oportunidade ímpar de reflexão. Em momentos de quietude, o ser humano pode se voltar para dentro, questionar suas crenças, reavaliar seus valores e, quem sabe, encontrar um novo propósito. É nesse silêncio que muitos artistas, pensadores e filósofos encontraram sua voz. A solidão, nesse contexto, pode ser um terreno fértil para a criatividade e o crescimento pessoal. 

Diante desse quadro, a questão que se impõe é: como podemos ajudar aqueles que se encontram presos na solidão? A resposta exige empatia, compreensão e ação. O primeiro passo é a escuta atenta. Muitas vezes, aqueles que se sentem sozinhos apenas desejam ser ouvidos. Um simples gesto de atenção pode fazer toda a diferença. Conversas informais, um convite para um café ou uma caminhada no parque podem quebrar a barreira da solidão e reacender a chama da conexão humana. 

Além disso, é fundamental reconhecer que a solidão não é uma falha pessoal, mas uma condição da vida. Ajudar alguém a entender que não está sozinho em sua experiência é um presente poderoso. Compartilhar histórias, experiências e dificuldades pode criar um vínculo que transforma a solidão em uma jornada compartilhada. Muitas vezes, as pessoas se sentem mais confortáveis em abrir-se quando percebem que outros também enfrentam desafios semelhantes. 

Outro aspecto importante é a promoção de atividades comunitárias. Grupos de leitura, oficinas de arte, ou até mesmo clubes de caminhada podem oferecer oportunidades para que os solitários se conectem com outros e encontrem um senso de pertencimento. A socialização, quando feita de forma gradual e respeitosa, pode ajudar a reestabelecer laços e a confiança em relacionamentos. 

Por outro lado, é crucial respeitar o espaço do outro. Não se deve forçar a interação, pois isso pode resultar em mais angústia. Cada um tem seu tempo e seu modo de lidar com a solidão. O apoio deve ser oferecido, mas sempre de maneira sensível e atenta. 

A solidão, portanto, é uma condição ambivalente. Ela pode ser uma fonte de dor profunda ou um espaço para o florescimento pessoal. O desafio está em encontrar um equilíbrio, em reconhecer quando a solidão se torna um fardo e em buscar formas de transformá-la em uma oportunidade de conexão e crescimento. 

Viver sozinho pode ser um ato de resistência ou um convite ao autoconhecimento. A chave está em como cada um lida com essa experiência. Para muitos, a solidão é um estado transitório, um capítulo que pode ser escrito com novas histórias de amor, amizade e pertencimento. Para outros, pode ser um lugar de reflexão profunda, mas que, se não for cuidado, pode levar à ruína da vontade de viver. 

Assim, cabe a nós, enquanto sociedade, cultivar uma cultura de acolhimento, onde a solidão não seja estigmatizada, mas compreendida. Ao estender a mão para aqueles que se sentem sós, podemos juntos construir um mundo onde cada ser humano se sinta visto, ouvido e amado. A solidão, quando compartilhada, não precisa ser um fardo, mas pode se tornar um espaço onde todos aprendem a se conectar com a essência do ser humano: o amor e a empatia.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Aparecido Raimundo de Souza (O sapo ciclista e a bicicleta de pneu furado)

ZÉLIO DO PAPO COAXANTE era um autêntico sapo que embora não fosse cachorro, tinha pedigree por conta de sua consanguinidade familiar, ou seja, nascera em berço e lago cobertos de ouro. Pertencia a linhagem dos Bufos Marinus. Para início de conversa, a criatura não coaxava simplesmente. Ao fazê-lo, a sua voz não saia sensaborona (desengraçada). Pelo contrário, a sua dicção se propagava graciosa e aconchegante aos ouvidos de todos os demais moradores da deliciosa lagoa de Santa Bárbara do Barranco Morro Acima. Zélio do Papo Coaxante tinha um prestígio danado entre os demais de seu meio. Crescera e se tornara um anfíbio que trazia (não só trazia) orgulho a seus pais. Nascera, e logo que abrira os olhos, se perfilou o orgulho de dona Zica Namoradeira —, a mãe que adorava pedalar pela floresta. 

Zélio do Papo Coaxante puxara os dotes da rainha de seus dias e, ainda metido nas fraldas, saia a correr tresloucadamente desembestado, como se fugisse de um ramerrão (ladainha) montado numa bicicletinha de cor vermelha que ganhara de seu avô. Tal brinquedo, ele apelidara carinhosamente de “Fogueteira”. Todos os dias, explorava novos trilhos e veredas, sentindo o vento fresco e ouvindo o canto dos pássaros. Dessa forma, ele cresceu livre, leve e solto, enquanto os anos voavam ao redor da lagoa. Sua bicicleta de rodinhas, de repente, passou para uma Bike Kruiser S Plus de cor preta. Com marcha, motor e tudo o que tinha direito. De bicicleta nova, manteve o mesmo nome de batismo. Certo dia, enquanto pedalava alegremente, Zélio ouviu um som estranho vindo de sua bicicleta. “Pssssss…” O pneu dianteiro havia furado. 

Parou imediatamente e desceu para inspecionar o dano. Ele sabia que um pneu furado poderia arruinar a sua aventura, mas Zélio se desenvolvera num sujeito determinado e não se deixaria abater tão facilmente por um simples contratempo. Com a sua mochila sempre preparada, tirou dela um kit de reparo de pneus. Lembrou das instruções que seu amigo Cururu, o sapo mecânico havia lhe dado. Primeiro, Zélio retirou a roda da bicicleta com cuidado. Em seguida, usou uma espátula para remover o pneu do aro e encontrar o furo na câmara de ar. Depois de localizar o pequeno buraquinho, limpou a área ao redor e aplicou um remendo com cola especial. Esperou pacientemente até que a cola secasse, enquanto aproveitava para descansar um pouco e apreciar a beleza da floresta ao seu redor. 

Com o remendo bem fixado, recolocou a câmara de ar e o pneu no lugar. Encheu com sua bomba portátil e verificou se estava tudo em ordem. Estava. Satisfeito com seu trabalho, montou novamente na sua “Fogueteira” e continuou a sua jornada. Aquele pequeno contratempo não apenas ensinou a importância de estar sempre preparado para o que pintasse diferente. Também serviu para reforçar a sua paixão pelo ciclismo. Sabia que, como na vida, os desafios poderiam surgir a qualquer momento, porém, com determinação e um pouco de habilidade, não havia meio possível para desapontá-lo de seguir em frente. Com esse pensamento aflorado, Zélio do Papo Coaxante o sapo ciclista, reiniciou a sua jornada feliz se embrenhando mais a fundo pela floresta, atento e pronto para a próxima aventura, com a sua fiel bicicleta. 

Depois de um dia cheio de pedaladas, Zélio decidiu que queria experimentar algo novo. Ouvia falar quase diariamente, das maravilhas da floresta à noite. Nunca teve a oportunidade de explorá-la sob a luz das estrelas. Sem mais delongas, certa tarde, preparou a sua mochila com uma lanterna, um mapa e alguns lanches e refrigerantes. Esperou o sol se por totalmente. Quando a noite chegou, montou em sua amiga “Fogueteira” e deu início à tão sonhada aventura noturna. A floresta, ao seu redor, parecia um lugar completamente diferente à noite. As árvores lançavam sombras misteriosas, e os sons dos animais noturnos criavam uma sinfonia encantadora. Pedalou, sem pressa de voltar. Se embrenhou por trilhas e desvãos que conhecia muito bem durante o dia. 

Contudo, em plena escuridão da noite, pareciam coisas novas e emocionantes. Avistou vagalumes brilhando como pequenos astros ao seu redor e ouviu admirado o canto suave dos grilos. Em um momento, estancou para observar uma coruja majestosa pousada em um galho. Seus olhos grandes e brilhantes refletiam a luz da lanterna de uma maneira exuberante que ele jamais havia visto. Enquanto explorava, o local, encontrou um pequeno lago iluminado pela mesma lua que o acompanhara por todo o trajeto. Decidiu fazer uma pausa e se sentar à beira da água, apreciando a tranquilidade daquele momento que lhe pareceu único e indescritível. O fulgor da constelação, na superfície do lago se fazia hipnotizante, e ele sentiu uma paz profunda. Depois de comer, beber e descansar, resolveu continuar a sua jornada. 

Assim fez. Descobriu, logo adiante, novas sendas e apreciando a beleza da floresta noturna, desejou ter uma câmera fotográfica ou uma filmadora para registrar aqueles momentos espantosos e colossais. Sabia que essa aventura seria transformada em uma das suas favoritas. As trilhas por onde passou, lhe descortinou um lado da mata que ele nunca havia visto antes. Quando finalmente voltou para casa, estava exausto e apesar do cansaço, imensamente feliz. Tinha consciência de que a floresta guardava em seu interior muitos segredos e mal podia esperar para descobrir outras novidades em suas próximas façanhas. Não deu outra. Enquanto explorava aquele bosque denso, em uma outra noite, ouviu um som suave de canto vindo de uma clareira próxima. Curioso, seguiu o som e encontrou, sentada numa pedra enorme, uma linda perereca*.

O nome dela, Banja. A beldade se fazia sentada à beira de um minúsculo riacho. Banja, de posse de um violão, cantava uma canção do Roberto Carlos e a sua voz parecia se harmonizar perfeitamente com os ruídos nascidos do seio da terra. Encantado, ou melhor, embasbacado pela voz e pela beleza daquela estonteante sapa, a mente de Zélio foi perdendo o fio das ideias, ao tempo em que dela se aproximava pé ante pé. Foi se achegando timidamente e a cumprimentou. Ela sorriu e sem demonstrar um pingo de medo, percebeu que naquele momento havia perdido o tom de uma possível emergência em vista do recém-chegado. Sem receio algum, o convidou para se sentar ao seu lado. Nesse momento cresceu dentro dela uma emoção impossível de dominar. 

Começaram a conversar e papo vai, papo vem, descobriram que tinham muito em comum, especialmente no amor incondicional pela natureza e claro, pelas aventuras. Nesse chove não molha, passaram a noite explorando juntos, compartilhando histórias e risadas. Zélio mostrou à Banja alguns de seus lugares favoritos e a prestimosa, por sua vez, o levou para conhecer um campo de flores estonteantes que brilhavam sob a luz cálida da lua. Ambos se divertiram tanto, que perderam a noção do tempo. Quando a noite chegava ao fim, os dois perceberam que não queriam mais se separar. Decidiram que, embora cada um tivesse a sua própria lagoa, poderiam se encontrar frequentemente naquele mesmo lugar, para novas proezas. Selaram, pois, esse compromisso com um longo aperto de mãos e beijos quentes, quase perspirando (transpirando). 

Sem falar nos olhares prolongados e carinhosos, entrelaçados em sorrisos efusivos. Prometeram explorar juntos outros pontos daquele paraíso sempre que pudessem. Não cabendo em si de contentamento, Zélio regressou para a sua lagoa com o coração cheio de alegria e expectativa pelas próximas andanças e aventuras com a Banja. A pequena diva, por sua vez, em dias posteriores, voltou para a sua lagoa, ansiosa para contar às suas amigas sobre o sapo ciclista bonitão que havia conhecido. A partir daquele dia, Zélio do Papo Coaxante e Banja se tornaram grandes amigos e companheiros de muitas peripécias, sempre prontos para descobrirem os segredos insondáveis daquele lindo e flamejante pedaço de chão, agora ricamente aconchegante ou melhor, importante e repleto de mil galhardias e incontáveis magnificências. 
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* Perereca = origem na palavra do tupi pere'reg (“ir aos saltos”), passam mais tempo na água do que os sapos, sendo considerados animais semiaquáticos.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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sábado, 8 de fevereiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 10

 

Figueiredo Pimentel (A moça do lixo)

Passavam um dia duas fadas por um jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o chacareiro havia deixado para estercar a terra.

— Que coisa nojenta! Disse uma delas. Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que seja por um momento!...

— Tive uma ideia, disse a outra. Eu faço para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.

— E eu faço, retorquiu a outra, para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará com o mesmo defeito.

As duas fadas desapareceram e do estrume surgiu uma moça maravilhosamente formosa.

E nos jardins reais, o príncipe, passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde vinha, como se chamava, só obteve em resposta:

— Porcaria! Porcaria!...

Admirado por ouvir aquela grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A deslumbrante moça respondia sempre:

— Porcaria!... Porcaria!...

O príncipe quis fazê-la sua esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes dignatários não o consentiram.

Não podendo, entretanto, deixar de vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la se alojar no palácio.

Tempos depois teve de se casar, como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um imperador vizinho e aliado.

Preparando-se a toalete da noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.

Tirou-o, e apresentou-o à sua nova ama, que o enfiou no dedo

Quando o cortejo chegou à igreja, na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente recebia o príncipe, ouviu-a dizer:

— Porcaria!... Porcaria!...

Não houve meios de se lhe arrancar outra coisa:

— Porcaria!... Porcaria!... – falava sempre.

O príncipe, em vista daquilo, exclamou:

— Não! Não me serve! Porcaria por porcaria, tenho lá no palácio uma melhor.

Foram buscar a outra, que encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi celebrado.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 - 1914, foi poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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José Feldman (Pafúncio e o Coquetel dos Prêmios)

Era uma noite de gala na cidade, e o prestigiado “Coquetel dos Prêmios Fuxicos” estava prestes a começar. Celebridades, influenciadores e jornalistas se reuniam para celebrar os maiores acontecimentos do ano no mundo das fofocas. E, claro, Pafúncio, o jornalista trapalhão da revista “Fuxicos & Fofocas”, não poderia ficar de fora desse evento.

Vestindo um terno que parecia ter sido escolhido às pressas — com uma gravata que mais parecia uma serpentina — Pafúncio chegou ao local com um sorriso de orelha a orelha. Ele estava determinado a fazer sua cobertura ser a mais memorável de todas, mesmo que isso significasse algumas trapalhadas pelo caminho.

Assim que entrou, foi recebido por uma multidão de pessoas bem vestidas, todas segurando taças de champanhe e sorrisos brilhantes. Pafúncio, empolgado, decidiu que a primeira coisa que faria seria se aproximar do buffet. Afinal, quem poderia resistir a uma mesa cheia de aperitivos?

Com um pé na frente do outro, ele se dirigiu à mesa. No entanto, ao tentar pegar um canapé de salmão, ele esbarrou em uma bandeja cheia de bebidas. Em um movimento de câmera lenta, as taças de champanhe voaram pelo ar, chacoalhando como se estivessem dançando. Pafúncio apenas assistiu, paralisado, enquanto as taças atingiam o chão, fazendo um barulho estrondoso.

As pessoas ao redor ficaram em silêncio, olhando para ele. Pafúncio, tentando se redimir, levantou as mãos e disse: “Acho que agora temos um ‘brinde’ ao chão!” A plateia, inicialmente chocada, não conseguiu conter a risada, e o clima começou a relaxar.

Mas o infortúnio de Pafúncio estava apenas começando. Ao se afastar da mesa, ele tropeçou em uma perna de uma cadeira e, sem saber como, acabou caindo de joelhos. Para sua sorte, ele aterrissou bem embaixo de uma mesa que, ao ser puxada, virou, derrubando pratos e copos. O barulho foi ensurdecedor.

“É uma nova dança, a ‘Dança da Mesa Voadora’!” gritou Pafúncio, enquanto tentava se levantar. As pessoas estavam atônitas, mas não conseguiam conter as risadas, e ele começou a se sentir como o verdadeiro centro das atenções. Mas ele não sabia que a situação ainda podia piorar.

Decidido a continuar sua cobertura, ele se levantou e se dirigiu ao palco, onde as premiações estavam prestes a começar. Com um microfone na mão, ele queria fazer uma pergunta ao apresentador, mas, em sua empolgação, tropeçou no próprio pé e caiu para a frente, fazendo com que o microfone batesse em sua boca. O som de um barulho metálico ecoou, e ele, atordoado, exclamou: “Acho que o microfone também quer participar da festa!”

O público estava um pouco surdo devido ao som agudo do microfone, e Pafúncio decidiu que, que para ser o melhor jornalista da noite, ao menos deveria ter mais atenção.

Quando as premiações começaram, ele se aproximou de um grupo de celebridades que estava esperando seu prêmio. Tentando ser sutil, decidiu fazer uma pergunta para a atriz mais famosa da noite, que estava com um vestido deslumbrante. “Se você pudesse ganhar um prêmio por sua habilidade em… em… ficar linda, qual seria o seu segredo?” 

A atriz, sem saber se ria ou se ficava ofendida, respondeu: “Apenas muita água e um bom hidratante!”

Pafúncio, anotando furiosamente, comentou: “Então, a verdadeira receita do sucesso é água e cremes, não champanhe e canapés!” 

Finalmente, chegou o momento do grande prêmio: “Melhor Fuxiqueiro do Ano”. Pafúncio, com seu jeito desajeitado, decidiu que precisava fazer uma cobertura de última hora. Ele se aproximou da mesa dos vencedores, mas, ao tentar tirar uma selfie com todos, fez uma careta tão estranha que acabou derrubando novamente uma taça de champanhe que, por sorte, atingiu apenas seu próprio terno.

“Parece que sou o verdadeiro vencedor da noite!” exclamou, enquanto tentava limpar a mancha com um guardanapo, que, por acaso, estava mais sujo do que o terno em si.

A premiação terminou em risadas, e Pafúncio, exausto mas feliz, voltou para casa com um material inusitado. Ao escrever sua matéria, ele transformou cada trapalhada em um momento hilário e divertido, fazendo com que seus leitores se divertissem tanto quanto ele.

E assim, Pafúncio provou que, mesmo nas situações mais desastrosas, o humor sempre vence. Afinal, em uma noite cheia de glamour, ele conseguiu fazer todos rirem e esquecerem das formalidades, mostrando que, às vezes, o que mais importa é saber rir de si mesmo.

Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 10

 

Júlia Lopes de Almeida (Carta)

"Minha querida.

Venho do circo. Lá ao fundo, na noite escura, em uma baixada do morro, há ainda um clarão avermelhado rompendo o toldo e as paredes de lona suja, onde a rapaziada do bairro assobia ao ritmo da charanga desafinada. As personagens da pantomima esbordoam-se na última cena, fazendo voar as cabeleiras e as longas abas das casacas imundas. O povo ri, mas começa a voltar costas ao espetáculo.

Veem já umas lanternas de doceiras trôpegas pela encosta, como estrelinhas cansadas. No meio da treva, mal atenuada pelos espaçados lampiões de gás, diviso as linhas ondeantes do morro, de onde escorre o aroma agreste das plantas, que o relento refresca e ativa.

Sinto-me triste; e a placidez da noite silenciosa, acolhe a minh'alma como um seio materno. Nunca a escuridão me pareceu mais doce; posso mostrar ao céu a amargura da minha face, porque só Deus a vê, e deixar que o desalento do meu espírito se infiltre e transpareça no meu corpo.

Quem há que não tenha tido, ao menos, uma hora dessas, em que toda a força vital parece esgotada e não nos resta nem ao menos a vontade de reagir?

A meu lado uma voz fala, como um rumor continuado de água rolando em pedregulhos baixos.

Mal me atrevo a esboçar um gesto com que lhe responda. Decididamente a tristeza é o agente da preguiça!

A última bexiga da pantomima deve ter rebentado agora nas costas do estalajadeiro, que era velhaco e sonso. Calou-se a charanga, e o clarão rosado do circo sumiu-se de repente na treva.

Aumenta a bulha de passos; ouço uma voz dizendo: — O palhaço é muito engraçado!

Eu por mim achei-o estúpido, repetidor de trapaças antigas, de um rancismo bolorento. Engraxou-se mal, não tocou ao violão e pouco dançou da chula. Mas a razão não estaria do meu lado; a razão nunca está do lado da gente triste.

O palhaço devia ter cumprido a sua missão. Lembrei-me de ter visto torcer-se toda, em um acesso de hilaridade, uma espectadora velha, expondo no auge da expansão o seu único dente descarnado e longo. Outras caras da arquibancada foram surgindo na minha memória.

Olhar para os espectadores é, em certos espetáculos, o melhor espetáculo, e o único pitoresco num circo de roça. O rosto dos velhos tem sobretudo uma cândida expressão de deleite, mais demonstrativa de enlevo que os das crianças mesmo. A alegria desabrocha-lhes por entre as gelhas da face e as pálpebras franzidas, com o frescor viçoso de flores em ruínas. Aquela alegria curiosa, que eu invejo causa-me entretanto uma certa piedade... É a profanação do uso, a abjeção do gosto.

Parece-me que aquelas cozinheiras e operárias que pasmam radiantes para as misérias da arena só se deveriam sentir à vontade em um circo de sedas claras, com festões de lâmpadas elétricas e ramos de violetas em cada camarote...

Um equilibrista fecha a primeira parte, sustentando maravilhosamente uma pena na ponta do nariz. 

A vaidade do homem devia ser grande naquele indivíduo! Cruzaram-se fardas de belbutina e casacas luxuosas dos ajudantes na arena.

Cerrei as pálpebras, aspirei o aroma de meu lenço e fiz de conta que estava vendo a pompa circense com que se precediam os jogos no circo de Maxencio... e a ilusão talvez se prolongasse, se uma preta moça e tafula se não lembrasse de roçar pelos meus joelhos, exalando o cheiro de um raminho de arruda espetado na carapinha. Entonteci; e logo tudo me pareceu ignóbil: as desafinações da charanga, as pernas grossas das écuyères (escudeiras) mal calçadas o ondear das fitas e das tarlatanas baratas, a repetição das sortes tantas vezes vistas, os assobios do povo, os estalos dos chicotes e das bofetadas, o ruído da mastigação de um vizinho, que enchia a boca de mendubi (amendoim), o fumo dos cigarros, a deficiência das luzes, e os pregões de um espanhol maltrapilho anunciando biscoitos.

Restabelecido o equilíbrio, notei com surpresa que alguns daqueles saltimbancos tinham logrado prender-me a atenção em uma matinê do S. Pedro. Sim, era a mesma gente, era o mesmo trabalho. Somente a atmosfera através da qual eu os via era outra. Não se comia mendubi, mas pastilhas de chocolate; a sala era clara, limpa, e nos camarotes apinhavam-se crianças lavadas e cheirosas. Nesse dia os artistas tinham trabalhado bem, pareceram-me até pessoas de qualidade, que vinham por excepcional obséquio divertir a gente...

Para penitência relembro uma página de Tolstói, sinto sobre o meu ombro fraco a sua mão pesada e como que o seu espírito sussurra ao meu: — A alegria e a verdade estão neste barracão armado à pressa, como uma tenda de campanha, para a cambalhota e as miséria mal disfarçadas.

Sedas? flores? luzes elétricas! são fantasias para gente de casaca, que não sabe rir. Só a gente rude conserva frescura e sensibilidade de alma. Os únicos velhos que têm riso gostoso são os ignorantes. Vai-te embora.

E eu vim-me embora, pensando nessas coisas quando, eis passa por mim um médico ilustrado a quem ouço dizer: — Pois senhores, o palhaço tem graça!

A opinião dos homens confunde-me. O homem, pelo simples motivo de ser homem, está determinado que tenha de tudo uma visão mais positiva, mais clara e mais perfeita do que a minha. Relembro a cena principal do clown: Um sujeito de casaca e de chicote dá-lhe a incumbência de levar um embrulho de doces a certa moça...

Procuro fixar o resto: não posso. foge-me a ideia para outro assunto.

O céu está estrelado, o ar doce, o aroma das magnólias sai dos jardins e envolve-me toda, como uma túnica invisível, que dá à minha alma uma pureza de Vestal.

Pirilampos salpicam o ar de fulgurantes esmeraldas viajoras. Chego ao alto e volto a vista para o local do circo: tudo em trevas; a noite como que suspira de alívio. Passa-me ainda uma vez pelo espírito o romance explorado pelos velhos contistas: o riso agudo do palhaço que se rebola na arena e que se transmuda em soluços quando nos intervalos se atira sobre o corpo moribundo do filho; as sovas nas crianças roubadas, nos estudos da acrobacia, e o pudor das écuyères, virgens e recatadas.

Para mim, todo o palhaço tem sempre no bastidor um filho moribundo e todas as crianças sinais de pancada sob os maillots (camisas) rosados.

E é talvez por isso que este circo de roça, grotesco, e em que as misérias se mostram tanto a nu, não consegue divertir-me nem dissipar-me a tristeza.

À hora em que vou chegando a casa, está o palhaço, e estão os seus companheiros refazendo as forças com o bife e o vinho da ceia, e rindo-se, ainda por cima, porque a féria foi boa.

Entretanto, (oh! prodígios da imaginação enfeitiçada pelos romancistas!) como que distingo no ar, lá muito perto do céu, o senhor clown enfarinhado e choroso sustentando nos braços um filhinho morto!

E como são horas de dormir, digo-te adeus!"

Tua
FRANCISCA.
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JÚLIA VALENTIM DA SILVEIRA LOPES DE ALMEIDA, nasceu em 1862 no Rio de Janeiro e morreu em 1934 na mesma cidade. Passou parte da infância em Campinas - SP. Seu primeiro livro - Traços e Iluminuras - foi publicado aos 24 anos, em Lisboa. Antes disso já publicara artigos na imprensa, tendo sido uma das primeiras mulheres a escrever para jornais. Com uma linguagem leve, simples, cativou seu público: escreveu e publicou mais de 40 volumes entre romances, contos, narrativas, literatura infantil, crônicas e artigos. Foi abolicionista e republicana além de mostrar, em suas obras, ideias feministas e ecológicas. Contista, romancista, cronista, teatróloga. Fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A Semana, O País, Tribunal Liberal. Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance A casa verde. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Carioca de Letras. Em seu livro A árvore (1916), defende com rigor o ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.

Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Publicado originalmente em 1906. Disponível em Domínio Público.  
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Vereda da Poesia = Therezinha Dieguez Brisolla



José Luiz Boromelo (Lembranças)

Dia desses encontrei uma fotografia antiga de minha família. Uma época em que se dormia com as janelas abertas ou se recebia os amigos para uma agradável serenata na madrugada. A lembrança dos tempos de infância remete a um passado distante que não volta mais. Da inocência de um menino correndo descalço no pasto, subindo nas goiabeiras e abacateiros desafiando o “nono”, que ameaçava os pirralhos com sua varinha de marmelo preparada para uma eventual utilização nas partes proeminentes da molecada.

Daquele tempo, fixou-se na memória a imagem da harmonia e dos vínculos familiares. Por conta da origem europeia os descendentes de italianos procuravam manter vivos seus costumes, transmitindo aos sucessores os hábitos dos mais velhos. A alegria contagiante daquele povo que tinha por hábito sincronizar os movimentos das mãos com as palavras emitidas em volume bem acima do usual era sua marca registrada. A grande maioria dos imigrantes fincou raízes na zona rural e com o trabalho árduo de sol a sol alavancou o desenvolvimento do país, deixando um legado de riqueza e fartura para as gerações futuras.

Foi com essas recordações que voltei ao passado. À enorme casa avarandada cercada de rosas, hortênsias e margaridas que minha mãe cuidava com carinho. Dos terreiros feitos de tijolos onde se secava o café, das tulhas levantadas com peroba-rosa aplainadas no machado. Do engenho de cana movido por tração animal. Do pomar onde se colhiam as mais saborosas frutas, da horta incrivelmente verde o ano todo. Ao longe se avistava um enorme jatobá que fornecia suas favas de odor forte e adocicado, local preferido das pacas, quatis e macacos. O riacho onde se pescavam lambaris, traíras e bagres. O capão de mato que fornecia bons cabos de louro, sapuva e guajuvira para as ferramentas de corte e de onde se coletava o delicioso mel silvestre. Um verdadeiro paraíso, que hoje vagueia errante em algum lugar da memória.

No sítio em que nasci pouco restou daqueles tempos. Os vizinhos se mudaram e a terra foi ocupada pela monocultura da cana-de-açúcar. A casa avarandada transformou-se em ruínas. A imagem triste do terreiro de café e do curral encobertos pelo mato, o poço d’água canalizado, as tulhas retiradas, o pomar e a horta transformados em área de preservação permanente incomoda. A moenda esquecida embaixo da velha caneleira revela as marcas do tempo. Restou somente o imponente jatobá com sua copa imensa, como que querendo chegar ao céu. Foi o único que escapou da fúria mecanizada e ecologicamente incorreta. Depois de quase cinco décadas, a visita ao sítio foi uma emocionante volta ao passado.

Ainda hoje sinto nos aromas das flores as lembranças de um tempo que se foi. Mas é possível reviver a alegria da infância cultivando a simplicidade, o amor e o respeito ao ser humano e à natureza. Uma maneira de manter vivos na memória os bons momentos da melhor época de minha vida.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 09


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JERSON LIMA DE BRITO, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.

O. Henry (Namorado de Quatro Vinténs)

Havia 3 000 moças na Grande Loja. Masie era uma delas. Tinha dezoito anos e vendia luvas para cavalheiros. No emprego aprendeu a conhecer duas espécies de seres humanos — os cavalheiros que compram luvas em grandes lojas e as mulheres que compram luvas para cavalheiros menos afortunados. Além desse amplo conhecimento do gênero humano, Masie aprendera outras coisas. Dera ouvidos à consabida sabedoria de 2 999 outras moças e a armazenara num cérebro tão discreto e prudente quanto o de um gato maltês. Quem sabe a Natureza, prevendo que à moça faltariam sábios conselheiros, lhe houvesse juntado à beleza um ingrediente salvador, a esperteza, assim como dotara a raposa prateada, de valiosa pele, com uma argúcia superior à dos outros animais.

Masie era linda. Tinha cabelos de um louro intenso e o porte tranquilo de uma senhora a fazer demonstrações culinárias numa vitrina. Masie ficava a postos atrás do seu balcão na Grande Loja, e quando a gente fechava o punho para tirar a medida das luvas, ao fitar a moça, pensava logo em Hebe; e se a olhava novamente, punha-se a conjeturar em como passara ela pelos olhos de Minerva.

Quando o chefe do departamento não estava prestando atenção, Masie mascava tutti frutti; quando ele a observava, ela erguia os olhos para o céu e sorria pensativamente.

Esse é o sorriso das vendedoras de loja, e suplico ao leitor que o evite, a menos que esteja protegido por calosidade do coração, caramelos ou afinidade com as diabruras de Cupido. Tal sorriso pertencia às horas de folga de Masie e não à loja, mas o chefe deve ter o que lhe cabe. É o Shylock das lojas. Quando vem meter o nariz em algo, já se sabe que é para recolher benefício. Ostenta um olhar meloso sempre que contempla uma moça bonita. Naturalmente, nem todos os chefes de departamento são assim. Há poucos dias os jornais deram notícia de um com mais de oitenta anos de idade.

Certa feita, Irving Carter, pintor, milionário, turista, poeta e automobilista, entrou na Grande Loja. Cumpre dizer que ali não fora por vontade própria. O dever filial o agarrara pelo colarinho e o arrastara até a loja, enquanto sua mãe percorria a seção de estatuetas de bronze e terracota.

Carter dirigiu-se para o balcão de luvas a fim de matar o tempo. Sua necessidade de luvas era legítima; esquecera-se de trazer as suas. Mas seu ato de modo algum carece de justificativa, pois jamais ouvira falar de namoros em balcões de luvas. Ao se avizinhar do seu destino, hesitou, subitamente cônscio dessa desconhecida fase da menos valiosa das atividades de Cupido.

Três ou quatro gajos insignificantes, vestidos espalhafatosamente, inclinavam-se sobre o balcão, batalhando com os intercessivos protetores das mãos, enquanto moças casquinantes serviam-lhes de vivazes segundos no ataque à estridente corda da garridice. Carter deveria ter-se retirado, mas já se adiantara muito. Masie surgiu-lhe pela frente, por detrás do seu balcão, com um olhar inquiridor em olhos tão fria, bela e calidamente azuis quanto os lampejos do sol estival num iceberg a vogar pelos mares meridionais.

Foi então que Irving Carter, pintor, milionário, etc., sentiu um quente rubor subir-lhe às faces aristocraticamente pálidas. Mas não por falta de confiança em si próprio. O rubor era de origem intelectual. Percebeu imediatamente que passara à categoria dos jovens insignificantes que cortejavam as moças casquinantes em outros balcões. Ele próprio debruçou-se sobre o acarvalhado ponto de encontro de um Cupido popular, desejando, no íntimo, conquistar as boas graças de uma vendedora de luvas. Não era melhor do que Bill, Jack ou Mickey. Sentiu então uma certa tolerância para com eles e um desprezo resoluto e corajoso pelas convenções nas quais fora criado, além do firme propósito de conquistar essa criatura perfeita para si.

Depois de pagar as luvas e receber o embrulho, Carter demorou-se ainda alguns instantes. As covinhas nos cantos da boca rósea de Masie se acentuaram. Todos os cavalheiros que compravam luvas demoravam-se daquela maneira. Ela curvou o braço, que, como o de Psiquê, a manga de sua blusa deixava entrever, e apoiou o cotovelo sobre o vidro da montra.

Carter nunca antes se encontrara numa situação que não dominasse completamente. Agora, porém, estava mais atrapalhado do que Bill ou Jack ou Mickey. Não teria oportunidade de encontrar-se com aquela linda moça numa reunião social. Sua mente esforçou-se por recordar a natureza e os hábitos das mocinhas de loja, segundo o que deles soubera por leitura ou conversa. De qualquer maneira, tinha a noção que elas não faziam questão cerrada de uma apresentação formal. Seu coração pôs-se a bater violentamente ao pensamento de propor um encontro não convencional a essa linda e virginal criatura. O tumulto de seu coração, entretanto, deu-lhe coragem.

Depois de algumas observações amáveis e bem recebidas sobre assuntos gerais, colocou seu cartão perto da mão da moça, sobre o vidro.

— Perdoe-me, por favor, se lhe pareço atrevido — disse —, mas ferventemente espero que me dê o prazer de vê-la outra vez. Aqui está o meu nome; afianço-lhe que é com maior respeito que lhe peço a honra de ser um de seus am... conhecidos. Posso ter esperanças desse privilégio?

Masie conhecia os homens principalmente homens que compram luvas. Sem hesitar, encarou o rapaz francamente e disse, com olhos sorridentes:

— Claro. Acho que tem razão. Não saio habitualmente com estranhos. Não fica bem a uma moça. Quando desejaria ver-me de novo?

— Logo que me der licença — declarou Carter. — Se me permite ir buscá-la era sua casa, eu...

Masie deu uma risada cristalina.

— Oh, isso não! — exclamou enfaticamente. — Se visse nosso apartamento! Somos cinco a morar em três quartos. Só imagino a cara que mamãe faria se me visse entrar com um cavalheiro!

— Então, em qualquer outro lugar que lhe seja conveniente — disse o enamorado Carter.

— Olhe — sugeriu Masie, com um olhar radioso a iluminar-lhe a face aveludada —, acho que quinta-feira à noite está bem. Esteja na esquina da Oitava Avenida com a Rua Quarenta e Oito, às sete e meia, sim? Moro ali pertinho. Tenho porém, de estar de volta às onze. Mamãe nunca me deixa chegar mais tarde.

Carter, agradecido, prometeu comparecer ao encontro, e em seguida apressou-se a ir encontrar-se com a mãe, que o procurava para saber-lhe a opinião sobre uma Diana de bronze.

Uma vendedora de olhos miúdos e nariz obtuso achegou-se a Masie, com um amistoso olhar de soslaio.

— Agarrou o grã-fino, Masie? — perguntou, com familiaridade.

— O cavalheiro pediu licença para me visitar — respondeu Masie, dando-se ares, enquanto guardava o cartão de Carter no seio.

— Licença para visitá-la! — repetiu a dos olhos miúdos com um muxoxo. — Falou em jantar no Waldorf e dar um giro de carro depois?

— Ora, cale-se! — replicou Masie, aborrecida. — Você não está acostumada a coisas finas. Ficou despeitada desde que aquele cocheiro de carro pipa a levou a um restaurante chinês. Não, ele não mencionou o Waldorf; mas no seu cartão de visitas há um endereço da Quinta Avenida, e se ele me oferecer um jantar, pode estar certa de que não será onde os garçons usem rabicho!

Ao sair da Grande Loja com a mãe, na sua eletrizante baratinha, Carter mordeu o lábio, com uma dor imprecisa no coração. Sabia que o amor o visitara pela primeira vez nos vinte e nove anos de sua existência. E o fato de o objeto do seu amor ter aquiescido tão prontamente a um encontro de esquina, embora tal encontro representasse passo importante para a realização de seus desejos, o enchia de torturantes apreensões.

Carter não conhecia moças de loja. Não sabia que seu lar é, amiúde, um quarto minúsculo, mal habitável, ou uma casa abarrotada de parentes. Seu locutório é a esquina, o parque sua sala de visitas, a avenida seu jardim; todavia, na maioria dos casos, são tão impolutas e donas de si mesmas nesses locais quanto uma dama em seu aposento cheio de tapeçarias.

Certa tarde, ao crepúsculo, duas semanas após o primeiro encontro, Carter e Masie passeavam de braços dados num pequeno parque mal iluminado. Encontraram um banco retirado, sob uma árvore, e nele se sentaram.

Pela primeira vez, Carter passou gentilmente um dos braços ao redor da moça, que pousou a cabeça brônzeo-dourada no seu ombro.

— Chii! — suspirou ela, grata. — Por que nunca se lembrou disso antes?

— Masie — começou Carter, seriamente —, decerto já sabe que a amo. Peço-lhe, sinceramente, que se case comigo. Já me conhece o bastante para não ter dúvidas sobre mim. Amo-a e quero que me pertença. A diferença de nossas condições não me importa.

— Que diferença? — perguntou Masie, curiosa.

— Bem, não há nenhuma — respondeu Carter apressadamente —, exceto na mente de gente tola. Posso proporcionar-lhe uma vida de luxo. Minha posição social é inatacável e disponho de grandes recursos.

— Todos dizem isso — observou Masie. — É o engodo que oferecem. Suponho que, na realidade, você trabalhe numa mercearia ou nas corridas. Não sou inexperiente quanto pareço.

— Posso dar-lhe todas as provas que quiser — retrucou Carter, gentilmente. — Eu a quero, Masie. Amei-a desde o primeiro dia em que a vi.

— Isso acontece com todos — disse Masie, com um riso divertido —, pelo que dizem. Se eu encontrasse um homem que se embeiçasse por mim só na terceira vez, acho que ficaria caída por ele.

— Por favor, não diga essa coisas — suplicou Carter. — Ouça-me, querida. Desde que lhe fitei olhos pela primeira vez, você se tornou a única mulher do mundo para mim.

— Que brincalhão! — sorriu Masie. — A quantas já disse a mesma coisa?

Carter, porém insistiu. Finalmente, chegou até a pequenina alma, frágil e vibrátil, que existia alhures no âmago daquele seio adorável. Suas palavras penetraram um coração cuja mesma leviandade era sua maior armadura. Masie olhou Cárter com olhos que viam. E um colorido quente subiu-lhe às faces frias.

A tremer, convulsamente, suas asas de mariposa se fecharam e ela pareceu prestes a pousar na flor do amor. Iluminou-lhe a mente um débil clarão da vida, e de suas possibilidades, no lado de lá do balcão da luvaria. Carter sentiu a mudança e aproveitou a ocasião.

— Case-se comigo, Masie — murmurou suavemente. — Deixaremos esta feia cidade em busca de outras, lindas. Esqueceremos o trabalho e os negócios, e a vida será um longo feriado. Sei para onde vou levá-la. Lá já estive muitas vezes. Imagine uma praia onde o verão é eterno, onde as ondas estão sempre a murmurar na areia branca e onde a gente é livre e feliz como crianças. Viajaremos para essas praias e lá ficaremos enquanto você quiser. Numa dessas cidades longínquas há grandes e lindos palácios, e torres cheias de belos quadros e estátuas. As ruas da cidade são de água e nelas viajaremos em...

— Já sei — interrompeu Masie, aprumando-se subitamente. — Gôndolas.

— Isso mesmo — sorriu Carter.

— Logo pensei que fosse isso — declarou Masie.

— Então — prosseguiu Carter — continuaremos a viajar pelo mundo e visitaremos o que quisermos. Depois das cidades da Europa, veremos a Índia e suas velhas cidades, e andaremos em elefantes e conheceremos os templos maravilhosos dos hindus e dos brâmanes, e os jardins do Japão, e as caravanas de camelos, e as corridas de carros na Pérsia, e todas as vistas exóticas de países estrangeiros. Não acha que iria gostar, Masie?

Masie levantou-se.

— É melhor irmos para casa — disse friamente. — Está ficando tarde.

Carter concordou. Aprendera a conhecer-lhe o humor agreste e variável e sabia que era inútil contrariá-la. Sentia-se, porém, algo triunfante e feliz. Por um momento lograra prender, embora com fio de seda, a alma dessa Psiquê bravia, e tinha muita esperança. Por uma vez, fechara ela as asas e pousara a mão fria na sua,

Na Grande Loja, no dia seguinte, a companheira de Masie, Lulu, puxou-a para um canto do balcão.

— Como vai o romance com o seu grã-fino? — perguntou.

— Oh! aquele? — disse Masie, ajeitando os cachos do cabelo. — Tudo acabado. Olhe, Lu, sabe o que o sujeito queria que eu fizesse?

— Que entrasse para o teatro? — arriscou Lulu, sem fôlego.

— Não, não tem tanta classe assim. Queria que eu me casasse com ele e que fossemos passar a lua-de-mel em Coney Island*.
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* Coney Island = grande e famoso parque de diversões de Nova Iorque, onde se encontram réplicas miniaturais dos passeios descritos por Carter.
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O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, nasceu em 11 de setembro de 1862, em Greensboro, Carolina do Norte/EUA. Ele teve uma infância marcada por várias mudanças, já que seu pai era um médico e sua mãe morreu quando ele era jovem. Em sua juventude, trabalhou em diversas funções, incluindo como balconista e farmacêutico. Em 1896, após ser acusado de desvio de fundos em seu trabalho como caixa em um banco, ele se mudou para a América do Sul, onde começou a escrever. Ao retornar aos Estados Unidos, ele adotou o pseudônimo O. Henry e começou a publicar contos em revistas, ganhando fama por suas narrativas envolventes e reviravoltas surpreendentes. O. Henry teve uma vida pessoal tumultuada, marcada por problemas financeiros e saúde. Ele faleceu em 5 de junho de 1910, em Nova York, mas deixou um legado duradouro na literatura com suas histórias que capturam a essência da vida urbana e a natureza humana. O. Henry é lembrado por seu estilo ágil e por suas histórias que frequentemente apresentam finais inesperados, tornando-o um dos mestres do conto curto na literatura americana.

Fontes: O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.  
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