domingo, 18 de maio de 2025

Asas da Poesia * 23 *

 

Poema de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Conselhos de mãe

Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas, trata-a com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho
sem pressa de alcança-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!
= = = = = = = = =  

Poema de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Amo
(para Carolina Ramos)

Eu amo a lua, que me encanta, bela,
a ressaltar, da noite seus valores;
amo a cascata que borbulha espumas,
amo das brumas hibernais alvores,
Eu amo a brisa que suspira, calma,
deixando na alma o murmurar de amores;
amo dos astros o fulgente lume,
amo o perfume essencial das flores.
Eu amo tudo a que minha alma assiste,
tudo de belo que no mundo existe,
tudo que vibra em mim e amor requer.
Mas... se a tudo consagro um grande amor,
o que amo na terra com maior fervor,
é a inteligência, numa só mulher!
= = = = = = = = =

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A ciência hoje é um colosso, 
com tudo fora de centro: 
faz laranja sem caroço, 
gravidez sem filho dentro...
= = = = = = = = =

Soneto de
PAULO ROBERTO OLIVEIRA CARUSO
Niterói/RJ

Cuidando de tuas pétalas

Devo ter cuidado ao tocar
tuas pétalas adocicadas,
porquanto são-me elas dadas
em assaz incauto confiar!
 
Ademais, são frágeis elas!
Mas são ávidas por afagos.
Os meus toques são bem pagos
com teus ósculos, sorrisos e trelas!
  
Devo tê-las em cuidado,
possuí-las com todo carinho
que uma flor a mim suplique.
  
Tu não tens, porém, suplicado,
porque trato-te com jeitinho.
Que em teu peito este fique!
= = = = = = 

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ 1901 – 1964

Sugestão 

Sede assim  qualquer coisa 
serena, isenta, fiel.

 Flor que se cumpre, 
sem pergunta. 

Onda que se esforça, 
Por exercício desinteressado. 

Lua que envolve igualmente
 os noivos abraçados
 e os soldados já frios. 

Também como este ar da noite:
 sussurrante de silêncios
 cheio de nascimentos e pétalas.

 Igual à pedra detida,
 sustentando seu demorado destino 
E à nuvem, leve e bela,
 vivendo de nunca chegar a ser.
 
À cigarra, queimando-se em música 
ao camelo que mastiga sua longa solidão, 
ao pássaro que procura o fim do mundo, 
ao boi que vai com inocência para a morte.

 Sede assim qualquer coisa 
Serena, isenta, fiel.

 Não como o resto dos homens.
= = = = = = 

Trova de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

Adotei o isolamento, 
feito um ermitão qualquer. 
Pra fugir do casamento 
e das manhas de mulher!...
= = = = = = 

Soneto de
MANUEL BANDEIRA
Recife/PE (1886 – 1968) Rio de Janeiro/RJ

Soneto inglês nº 1

    Quando a morte cerrar meus olhos duros
    — Duros de tantos vãos padecimentos,
    Que pensarão teus peitos imaturos
    Da minha dor de todos os momentos?
    Vejo-te agora alheia, e tão distante:
    Mais que distante — isenta. E bem prevejo,
    Desde já bem prevejo o exato instante
    Em que de outro será não teu desejo,
    Que o não terás, porém teu abandono,
    Tua nudez! Um dia hei de ir embora
    Adormecer no derradeiro sono
    Um dia chorarás... Que importa? Chora.

    Então eu sentirei muito mais perto
    De mim feliz, teu coração incerto.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Dai-nos ó, Pai, a razão,
desta santa imagem tua…
e que eu reparta o meu pão,
com quem não tem pão na rua!!!
= = = = = = 

Dobradinha Poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Eterna Partitura

Sonatas intercaladas
antes, durante e depois…
E em nossa pele, trocadas,
as digitais de nós dois!

Antes que eu chegue ao último suspiro
retirarei de mim toda amargura,
indo aos teus braços e em completo giro,
vivenciarei a eterna partitura…

Ali quero aninhar… Nesse retiro,
longe estarei da dor, da desventura,
do desamor, desdém, porque prefiro
o sonho à realidade sem ternura.

Concordes na regência e no compasso,
acordes vibrarão naquele espaço;
nosso desejo exprimirá bem mais…

Harmonizando o amor com melodia,
o maior feito ao fim da sinfonia:
– ter em meu corpo as tuas digitais!…
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Lembranças de amor desfeito...
silêncio em horas tardias,
pois tua ausência em meu leito
dorme onde outrora dormias.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Exemplo de mãe

Não me admiro de sentir saudade
De meus longínquos tempos de criança,
Vividos na escassez, é bem verdade,
Mas com imenso amor e esperança.

A gente era pobre e a cidade
Nem possuía luz ou segurança
De algum Doutor. Mas nessa qualidade
Aquilo é um sonho em minha lembrança…

Pois o importante é que então vivendo
De modo simples, “remendando o pano”,
só de carinho a gente ia crescendo…

A grande fé em Deus nos consolava,
Mudava em alegria o desengano…
Tal o exemplo que mamãe nos dava!
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Quando a solidão me invade, 
distante do teu carinho, 
eu me agarro na saudade 
para não chorar sozinho!
= = = = = = 

Hino de
FLORÂNIA/RN

Florânia terra querida
Linda filha do sertão
Cantaremos em nossa lira
O que plantaste em nosso coração.

Oh! coração do Seridó
Onde se irradia mais fulgor
Os seresteiros vão cantando
Tua beleza e esplendor.

Rincão cercado de serras
Perfumado de Bugi
Cheio de flores tão belas
Que sempre vão nos seguir.

Tua fé e esperança em festa
Numa eterna melodia
Teus espinhos e pedras se transformam
Em canção e poesia.

Solo puro e bravio
O trabalho nos faz crescer
Sempre humilde e hospitaleiro
Cada dia nos faz vencer.

Ao longo de teus caminhos
Vaqueiros tangem o gado.
E o vento leva as cantigas
Ao santo Monte amado.

Cosme de Abreu é teu exemplo
De coragem e bravura.
Na luta, paz e bondade.
Cheio de amor e candura.

Colhemos tua paz
No branco do algodão
Que é nosso orgulho de colheita
Um pouco de nosso pão.

Oh! Florânia terra querida
De riquezas sem igual
Do Brasil tão querido
Tão bela, sem rival.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Com ousadia me olhaste, 
ousada eu correspondi. 
Com loucura me abraçaste 
e o resto eu juro, nem vi!
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
POEMA DO OLHAR 
(samba-canção, 1962) 
Evaldo Gouveia e Jair Amorim

Em teu olhar busquei perdão
Busquei sorriso e luz
Achei meu sol
Vivi meu céu
Meu céu em teu olhar

Olhando a ti
Eu me perdi pelos caminhos
Quem me chamar
Vai me encontrar nos teus olhinhos

Em teu olhar, estranho olhar
Meu sonho um dia se acabou
Nos olhos teus
Existe amor, existe adeus
= = = = = = = = =

Soneto do
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Apenas um menino 

Queria me tornar uma criança
Diante da tristeza que há no mundo,
Sem precisar usar minha esperança
E nem me entristecer em um segundo. 

Queria ter nos olhos a inocência...
No coração, a chama da bondade
E não saber o que é intransigência,
Nem arrogância, medo...ou maldade. 

Queria a pureza de um menino
Sorrindo para o gesto pequenino
De um outro menininho... nada mais. 

Assim, num novo mundo eu viveria,
Criando sempre nova fantasia
Diante da magia que há na paz
= = = = = = = = =

Aldravia da
MARILZA DE CASTRO
Rio de Janeiro/RJ

Solicitude
lícita
se
verdadeira
atitude
= = = = = = = = =

Soneto de
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Rainha das águas 
(a Alberto de Oliveira)

Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro
Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira,
Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,
Na esguia concha azul orladurada de ouro.

Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro;
Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira,
Das ondas a seguir a luminosa esteira,
Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.

Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia,
Lambem de popa à proa o casco à concha esguia,
Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana;

E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios,
Saúda esse outro sol de coruscantes raios
Que orna a cabeça real da bela soberana.
= = = = = = = = =

Trova Premiada de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

Relendo o livro da vida
quando a solidão me invade,
em cada página lida,
sempre encontro uma saudade…
= = = = = = = = =

Poema de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Talvez a velha saudade
seja apenas um embalo
do vento olhando a lua.
O rascunhar de um poema
nas estrelas, o sorriso
desenhado, o pranto solto,
quem sabe o doce bailar
das águas idolatrando
o amor, cálido, sereno,
na sua poesia nua.
= = = = = = = = =

Quadra Popular de
DEODATO PIRES
Olhão/Portugal

Quer tenha ou não tenha sorte
na vida que Deus lhe deu,
não pode fugir à morte
todo aquele que nasceu.
= = = = = = = = =

Soneto de
CARMO VASCONCELLOS
Lisboa/Portugal

Sem lutos

De vós, amados, quero ao vos deixar:
sentidos poemas, flores, melodias,
riso e lembranças de felizes dias,
e sem lutos a minh’alma há de voar.

E já volátil, há de então acenar-vos 
a fina poeira, da ida e vã matéria,
depois... montada numa gota etérea,
hei de baixar na chuva a visitar-vos.

Porém, se alguns de vós eu vir chorosos,
pérola d’água, os olhos lavarei
aos que em saudade mostram olhar fosco.

E pra secar os olhos lacrimosos,
flamas ao sol brilhante roubarei...
Que amar-vos não será chorar convosco!
= = = = = = = = =

Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Descendo esta escadaria
Onde ela vai me levar?
Se eu soubesse eu desceria;
Como não sei, vou ficar!
= = = = = = = = =

Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa, 1919 – 2004, Porto

Quero

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.
= = = = = = = = =

Haicai de
HUMBERTO DEL MAESTRO 
Serra/ES

Três dias de chuva:
No terreno alagadiço
Concerto de rãs.
= = = = = = = = =

Poetrix de 
RONALDO RIBEIRO JACOBINA
Santo Antonio de Jesus/BA

problemas, eis a questão

Não me envolvo em novelos:
Se posso resolve-los, resolvo, sem alaridos.
Se não, já estão resolvidos.
= = = = = = = = =

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Figura sem estilo 

Ia eu pela rua, figura de estilo na lua
Sem siso, piso o piso molhado, mas que aliteração 
Escorrego numa inadvertida metáfora 
Por pouco não me estatelava no chão.
Podem pensar que é uma hipérbole 
Mas acreditem que não é exagero não 
É que até os pombos se riram
Na sua mais astuta personificação.
O meu joelho é que gemeu coitado
Desesperado com tanta falta de jeito
Pobre de mim, figura sem estilo.
Num mundo sem tino, valha o eufemismo
Um mundo que tropeça à beira do abismo.
Muito eu poderia discorrer sobre o assunto 
Mas já chega desta conversa fiada
As palavras são como as cerejas, valha-nos a comparação
Ainda bem que tive o bom senso, de não usar paralelismos nesta descrição.
Sacudo das vestes toda a ironia
E siga, pronto para mais um dia!
= = = = = = = = =

Eduardo Affonso (Português de Grife)


Tem hora em que eu queria falar português.

Não o daqui, este genérico, mas o de lá, o de marca.

Não passar, como passo, horas na frente da tela do computador, mas diante do écrã.

Conseguir dizer “queria ter consigo” sem que me olhassem como se estivesse a falar grego (significa “quero estar com você”, em tradução livre para o português de cá).

E, claro, abusar da segunda pessoa. Não só do pronome, como fazemos aqui, mas também do verbo. Nada de “tu vai”, “tu viu”, “tu foi”: vais, viste, foste – e tudo isto chiando – ops, a chiar – feito uma panela de pressão no cio, igual mineiro depoix de doix diax de fériax no Rio.

Ter a chance de mandar e desmandar com dois imperativos, o afirmativo e o negativo:

– Vai-te embora! Não, não te vás.

Aqui são iguais:

– Vá embora. Vá embora não.

E a gente nem usa o imperativo, porque prefere pedir, e com jeitinho.

Queria poder aplicar na vida real aquelas conjugações todas que a gente é obrigado a aprender para aplicar só na prova.

Usar “a gente” no sentido de “os outros”, não de “nós”. E usar “nós” de vez em quando, em vez de “a gente”.

Ah, como eu queria uma chávena, em vez de uma xícara. De chá, de preferência, porque chávena de chá é o que o há de mais chique.

Atender o telefone e dizer “Estou”, como se fosse possível atendê-lo não estando.

Valer-me dos pronomes oblíquos e usá-los em lugar de usar eles.

Falar “seu” no sentido de “dele”. E quando alguém disser “Ele levou seu cão a passear” não ter dúvidas de que ele tenha levado o cachorro dele, não o Tião – que, de vira-lata, seria promovido a rafeiro.

E dizer, no acto, que estou convicto que o facto, de prompto, não causará impacto – assim, cheio de soluços, de estalidos na fala.

E ser arquitecto, talvez escriptor (acho que essa eles nem usam mais, mas eu usaria, porque, como eles, me negaria a adoptar o Accordo Ortographico, e ressuscitaria tranqüilamente o trema e o acento grave sòmente por pirraça, para provar que a língua é minha e ninguém tasca).

A propósito, usaria tasca como taberna, jamais como conjugação do verbo tascar, que no português de lá acho que nem existe.

Complicado seria misturar os idiomas e dizer que a gira é gira, que tinha uma bicha na bicha, que o cacete era do cacete. Enfim, essas confusões de todo bilíngue. Ops, bilíngüe (e dá-lhe brigar com o corrector do telemóvel, que teria que ser actualizado para o português que falávamos aqui cem anos atrás).

Queria muito partilhar este texto num sítio, em vez de compartilhá-lo num site.

E junto, postar um enlace, não um link – bastando para tanto acionar a tecla do meu rato. E me acostumar ao facto de que, em português, mouse se diz rato.

Se calhar, se me apetecer, um dia hei-de escrever assim (inclusive com esses hÍfens, que são os únicos cuja regra não tem excepção).

Estás a perceber por que tem horas – perdão, por que há horas – em que dá vontade de falar português?

Mas bate uma lombeira, um banzo, uma leseira, um quebranto, que a vontade logo passa, e eu volto a falar em brasileiro, que tem outro gingado, outro molejo, outro encanto.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do autor. 22.06.2019
https://tianeysa.wordpress.com/2019/06/22/portugues-de-grife/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Contos das Mil e Uma Noites (Os amores de Zain Al-Mauassif)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia certa vez, no antigo dos tempos, um adolescente formoso chamado Anis. Era o mais rico, o mais generoso, o mais delicado e o mais agradável jovem de seu tempo. Amava tudo que era digno de ser amado: as mulheres, os amigos, a poesia, a música, os perfumes, uma boa risada - e vivia no auge da felicidade. Certa tarde, enquanto dormia sob uma árvore em seu jardim, sonhou que estava brincando com quatro pássaros e uma pomba, quando um corvo se precipitou sobre a pomba, arrebatou-a e a levou. Anis acordou impressionado com o sonho e saiu a procurar quem lho pudesse interpretar. No seu caminho, passou por uma linda residência onde uma voz feminina cantava com acentos melancólicos estes versos: 

Ouço o coração dos enamorados 
cantar livremente na madrugada. 
Mas meu coração não canta 
por causa de um cabritinho montês, 
mais ligeiro que um gamo. 
Tenho-te, presente ou ausente. 
E teu nome nunca deixa meus lábios. 
Durará ainda muito teu afastamento? 
o amor, de que me penetraste, 
tornou-se uma tortura além das minhas forças. 
Até quando continuarias a fugir de mim? 
Se teu propósito era matar-me de saudade, 
sente-te feliz, pois teu desejo se cumpriu. 

Levado pelo ímpeto de conhecer a cantora, Anis olhou pela porta semi-aberta e viu um jardim cheio de rosas, jasmins, violetas, narcisos onde gorjeavam mil pássaros. Entrou e começou a andar no jardim e deparou com uma jovem sentada sobre um tapete com quatro companheiras. Era tão bela que podia acender fogo na pedra mais dura. 

Anis inclinou-se diante dela e levou a mão ao coração, lábios e fronte naquela saudação árabe pela qual oferecemos ao interlocutor nossos sentimentos, nossos cumprimentos e nossos pensamentos. Mas a moça gritou: “Como ousaste penetrar neste lugar reservado, ó jovem impertinente? 

Anis respondeu: “Ó minha ama, a culpa não é minha. É tua e deste jardim. Pela porta entreaberta, vi as flores e os pássaros homenagearem a rainha da beleza, e minha alma não resistiu à tentação de vir juntar sua homenagem à das flores e dos pássaros.”

A jovem riu e perguntou: “Como te chamas?”

- Anis, teu escravo.

Ela exclamou: “Anis, agradas-me. Vem sentar-te a meu lado.”

Depois, perguntou-lhe: “Sabes jogar xadrez?” 

“Sim”, respondeu Anis.

O jogo começou. Mas Anis dava mais atenção à beleza da adversária que aos peões, e acabou por exclamar: “Como posso ganhar contra esses dedos?” 

E perdeu um primeiro e um segundo jogos.

- Vamos apostar cem dinares por jogo, disse a moça. Isso te obrigará a te concentrares.

- Com prazer, disse Anis, mas continuou a perder.

- Vamos apostar mil dinares, disse a moça.

- Aceito, disse Anis, mas continuou a perder.

Depois, apostou sua loja, sua casa, seu jardim, seus escravos até que nada lhe sobrasse.

- Anis, meu amigo, és um louco, disse a moça. Mas para que não lamentes ter vindo aqui, devolvo-te tudo que perdeste. Agora, levanta-te e retoma teu caminho em paz.

- Por Alá, minha rainha, não lamento o que perdi. Se me pedisses minha alma, oferecer-te-ia com prazer. Mas deixarás que eu parta sem satisfazer meu desejo?

- Posso satisfazer teu desejo; mas, primeiro, deves trazer-me quatro odres de almíscar puro, quatro onças de âmbar cinzento, quatro mil peças de brocado de ouro e quatro mulas arreadas.

- Pela minha vida, terás tudo isso.

- Como? Não possuis mais nada.

- Tenho amigos. Eles me socorrerão.

- Não precisas apelar para eles, pois com certeza te decepcionarão. Eu te devolvo tudo que perdeste se fores mais hábil no outro jogo de xadrez do que neste.

E Zain Al-Mauassif levou Anis até a alcova. Lá Anis tomou a adolescente nos braços e jogou com ela um jogo de xadrez, seguindo todas as regras com refinamento e perícia. Depois, iniciou e ganhou quinze jogos seguidos, comportando-se o rei em todos eles com a mesma valentia e estando sempre na ofensiva, até que a moça reconheceu ter sido derrotada e exclamou, já sem fôlego: “Ganhaste, ó pai das lanças. Dize ao rei que descanse.”

Depois, disse: “Anis, seduziste-me. Por Alá, não poderei mais viver sem ti.” 

E passaram o resto do dia e toda a noite juntos, beijando-se e se amando. E continuaram assim durante um mês inteiro, só parando para comer. 

Zain AlMauassif, que era casada, recebeu então uma carta do marido, anunciando sua volta. 

“Possa o demônio quebrar-lhe os ossos,” exclamou. “Que devemos fazer, Anis?”

- Os estratagemas e os ardis pertencem mais ao campo feminino que ao masculino.

Ela refletiu uma hora, depois disse: “Meu marido é muito ciumento e astuto. O único meio que vejo é que tu te apresentes a ele como mercador de perfumes e especiarias. Estuda bem este negócio. Depois, procura-o na sua loja e faze amizade com ele.”

Quando o bom homem chegou, achou a mulher toda amarela, da cabeça ao pés. Ignorando que ela se tinha esfregado com açafrão, perguntou-lhe, apavorado, se estava doente. Respondeu: “Estou amarela, não porque estou doente, mas por causa de minhas preocupações a teu respeito durante tua ausência. Em nome da compaixão, não viajes mais sem tomar um companheiro que te possa defender e cuidar de ti.” 

O homem agradeceu esta manifestação de afeto, beijou a mulher com amor redobrado e foi para sua loja, pois era um grande mercador judeu. A mulher também era judia. Anis, que havia estudado seu novo comércio, estava esperando por ele. Para ganhar-lhe a boa vontade imediatamente, ofereceu-lhe perfumes e especiarias por preços bastante inferiores aos do mercado. 

O marido de Zain Al-Mauassif, que tinha a alma endurecida, ficou tão satisfeito que os dois se tornaram amigos e depois sócios, da noite para o dia. E o homem levou Anis para jantar com ele em sua casa, pois sendo destituído de vergonha e não mantêm seus haréns protegidos.

Quando o marido quis apresentar a mulher a Anis, ela se revoltou: “Por Moisés, como ousas introduzir estranhos na intimidade de teu lar? Devo renunciar à virtude das mulheres porque achaste um associado? Prefiro cortar meu corpo em pedaços.”

O judeu regozijou-se no seu coração por ter uma mulher tão casta e reservada; mas disse em alta voz: “Desde quando adquirimos os modos dos muçulmanos de esconder nossas mulheres? Somos filhos de Moisés.” 

E ele apresentou Zain AlMauassif a Anis. Ambos fingiram que não se conheciam e nem sequer olharam um para o outro durante todo o tempo da visita.

O marido reparou, todavia, numa coincidência estranha. Tinha ele em casa uma ave que se habituara a brincar com ele e a pousar em seu ombro. Quando ele voltou da viagem, não o reconheceu. Mas, quando Anis chegou, acorreu a ele com gritos de alegria.

Reparou também que a mulher, que sempre tivera um sono tranquilo, tinha agora sonhos que a agitavam a noite toda. 

Convidou Anis outra vez para sua casa e, antes de mandar servir o jantar, alegou que recebera uma convocação urgente do uáli. 

“Irei vê-lo porque ë meu interesse,” disse à mulher e a Anis; “mas será coisa rápida. Voltarei logo para o jantar.”

Saiu, mas em vez de ir à casa do uáli, deu uma volta e subiu secretamente ao sótão de onde podia observar o que se passava na sala de visitas. E viu os dois se jogarem nos braços um do outro e trocarem beijos de paixão incontida. O homem escondeu sua indignação e voltou para casa, sorridente. Jantaram como se nada tivesse acontecido. 

No dia seguinte, disse à mulher que recebera um relatório de um de seus agentes que o obrigava a viajar de novo. A mulher camuflou sua alegria e começou a gemer e reclamar: “Deixar-me-ás morrer de solidão, amado marido? Pobre Zain Al-Mauassif, nunca poderás conservar teu marido junto de ti?”

Mas o marido retrucou: “Não te aflijas, querida. Decidi levar-te comigo desta vez e não mais te expor aos tormentos da saudade.” 

E partiram na hora, eles e as quatro aias de Zain Al-Mauassif, Hubub, Sukub, Kutub e Rukub.

Após viajarem um mês, o judeu mandou que parassem e montassem as tendas na vizinhança de uma cidade que ele conhecia. Aí, despiu a mulher de suas ricas vestes, pegou numa vara e disse-lhe: “Vil e hipócrita rameira, só esta vara será capaz de purificar-te. Chama Anis em teu socorro.” 

E não obstante os gritos e os protestos, fustigou-a sem piedade.

Depois, foi á cidade e trouxe um ferrador a quem pediu: “Põe ferraduras nas mãos e nos pés desta escrava.” 

O ferrador estupefato, replicou: “Por Alá, é a primeira vez que sou chamado a ferrar seres humanos. Que fez esta jovem para merecer tal castigo?”

- Pelo Pentateuco! Este é o castigo que nós, judeus, impomos às escravas de quem temos queixas.

Mas o ferrador, extasiado diante da beleza de Zain Al-Mauassif, olhou o judeu com desprezo e cuspiu-lhe na face. Em vez de tocar na rapariga, dirigiu estes versos ao seu marido:

Ó cavalgadura imunda, enfiaria mil pregos na tua pele
antes de torturar pés tão delicados,
feitos para serem domados com anéis de ouro.
Se for dado a um pobre senador julgar das coisas,
tu deverias ter ferraduras, e ela, asas.

E o ferrador foi informar o uáli do que estava acontecendo à mais bela das mulheres. O uáli mandou os guardas levarem à sua presença do judeu, a escrava e os outros componentes da caravana.

Quando se apresentaram, o uáli maravilhou-se com a beleza de Zain Al-Mauassif e perguntou-lhe: “Como te chamas, minha filha?”

“Meu nome é Zain Al-Mauassif, tua escrava. Este judeu raptou-me de meu pai e mãe, violentou-me e quis obrigar-me a abjurar a santa fé dos muçulmanos, meus antepassados. Todos os dias tortura-me e tenta superar a minha insistência em permanecer muçulmana. Minhas aias confirmarão o que digo. E o ferrador poderá descrever o bárbaro tratamento a que este judeu queria submeter-me.”

O judeu gritou: “Pelas vidas de Jacó, Moisés e Aarão, esta mulher é judia e é minha legítima esposa.” 

Mas o uáli perguntou às aias: “Qual dos dois está dizendo a verdade?” 

Hubub, Kutub, Sukub e Rukub responderam: “Nossa ama.”

O uáli mandou então aplicar no judeu trezentas chicotadas e ameaçou cortar-lhe as mãos e os pés se não confessasse. Para escapar a tal calamidade, o homem disse: “Pelos comos sagrados de Moisés, confesso que esta mulher não é minha esposa e que a raptei de sua família.”

Ordenou então o uáli “Na base da confissão do réu, condeno-o à prisão perpétua. Assim sejam punidos os homens sem crença.”

Zain Al-Mauassif beijou a mão do uáli, mandou levantar o acampamento e iniciar a marcha da volta.

Ao crepúsculo do terceiro dia, a caravana chegou a um mosteiro cristão, habitado por quarenta monges e seu patriarca Danis. O patriarca convidou a caravana a passar a noite no mosteiro e foi tomado de uma louca paixão por Zain Al-Mauassif. Mandou sucessivamente os quarenta monges pleitearem sua causa junto à moça. Mas foram todos repelidos. 

Então, o patriarca, recordando o provérbio de que “para coçarmos a pele não há como as próprias unhas,” procurou pessoalmente Zain Al-Mauassif, que o rejeitou e humilhou, zombando de sua barba e de sua idade avançada. 

Depois, Zain Al-Mauassif disse a suas companheiras:

“Vamos fugir deste mosteiro antes de sermos violentadas e maculadas por contatos tão aviltantes.” 

Quando, na manhã seguinte, os monges e seu patriarca se deram conta da fuga de Zain Al-Mauassif, reuniram-se na igreja para cantar como asnos, conforme seu costume. Mas em vez de cantarem os hinos habituais, improvisaram versos como estes:

Senhor que criaste o fogo da paixão e 
despertaste em mim este ardente desejo, 
devolve-me o seu corpo saboroso,
ó Senhor que puseste amor na cama de teus filhos.

Depois, decidiram pintar uma imagem da fugitiva e colocá-la nos seus altares.

Quanto a Zain Al-Mauassif, chegou em segurança a sua terra e reencontrou seu amado, que tinha quase enlouquecido de saudade e preocupação diante do mistério de sua desaparição. Curou-o com uma noite de excessiva paixão. 

No dia seguinte, mandaram vir o cádi e as testemunhas e casaram-se legalmente e viveram na felicidade até o fim de seus dias. 

Glorificado seja Aquele que distribui a beleza e os prazeres de acordo com sua justiça. E bênçãos sobre Maomé, o maior dos profetas, que reservou o Paraíso a seus crentes!
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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sexta-feira, 16 de maio de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 30 *

 

Eduardo Martínez (Paulão, Dudu e o Elefante)


Paulão trabalhava em um órgão do governo, onde ocupava uma posição de chefia. Por causa disso, sempre havia um ou outro bajulador em sua sala, seja levando uma maçã ou qualquer outro agrado, seja elogiando o novo terno, seja até mesmo para levar um pouco de café requentado em um copo de plástico. No geral, ele recebia todos de bom grado, mas lhe faltava algo naquela cidade tão distante da sua, lá no interior de São Paulo.

Nesse mesmo local havia um outro funcionário, o Dudu, que de chefe não tinha nada. Ele trabalhava em um departamento bem próximo da sala do Paulão, com quem já havia cruzado algumas vezes pelos corredores ou na cantina. Apenas um "Oi!", nada de muita conversa. No entanto, o Dudu havia percebido algo que o incomodava no Paulão. Ele, que não era psicólogo nem nada, notou um olhar tristonho por detrás daquele sorriso expansivo do Paulão.

Certo dia, lá estava o Paulão, jogando aquelas pernas longas em passadas espaçosas pelo corredor, quando foi parado por um grupo de funcionários, que falava sobre futebol. Um deles, mais atrevido, perguntou para o Paulão qual era o seu time. Ele deu aquela estufada no peito e, quase gritando, disse: 

- Linense!

- O quê?

- Linense! O Elefante!

Ninguém entendeu bulhufas do que o Paulão queria dizer com aquilo. Todavia, antes que ele pudesse explicar, alguém o chamou para resolver um problema de última hora. Coisas da chefia!

Alguns dias se passaram, até que o Paulão precisou ir ao departamento do Dudu, que fingia estar entretido com alguma coisa importante simplesmente porque não queria trabalhar. Entretanto, o olhar sagaz do Paulão não pode deixar de notar o símbolo do seu time do coração na tela de proteção do computador do Dudu.

- Linense! Por que você tem o escudo do Linense no seu computador?

- Ué, porque sou Elefante!

O Paulão, ainda desconfiado, pensou que aquilo fosse uma piada. Mas, antes que pudesse fazer novo questionamento, eis que o Dudu, com um ligeiro toque no teclado bem à sua frente, fez com que o hino do Linense começasse a tocar. 

A partir daí, aqueles dois malucos passaram a ter um vínculo tão intenso, que muita gente não entendia. "Afinal, quem é que torce pro Linense?", todos se perguntavam.
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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