domingo, 1 de junho de 2025

Asas da Poesia * 31 *

 

Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Naufrágio

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Você diz que me quer bem
mas ontem não riu pra mim,
deixe desse fingimento,
quem ama não faz assim.
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

Soneto de Criação

Deus te fez numa forma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma calma, cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Ester

Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te na longa cachemira,
Como as judias moles do Levante,

Alva a clâmide aos ventos - roçagante...
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!

Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa. . .

Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Incontentado

Quando em teus braços, meu amor, te beijo,
se me torno, de súbito, tristonho,
é porque às vezes, com temor, prevejo
que esta alegria pode ser um sonho.

Olho os meus olhos nos teus olhos... Ponho,
trêmulo, as mãos nas tuas mãos... E vejo
que és tu mesma, que és tu! E ainda suponho
Ser enganado pelo meu desejo.

Quanto mais, desvairado de ansiedade,
do teu corpo, meu corpo se avizinha,
mais de ti, junto a ti, sinto saudade...

- E o meu suplício atroz não se adivinha,
quando, beijando-te, o pavor me invade
de que em meus braços tu não sejas minha!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

No botão da flor,
depois da explosão da rosa,
os lábios do amor! 
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Olha Daisy: quando eu morrer tu hás-de...
(Fernando Pessoa/Alvaro de Campos "Cem Sonetos Portugueses", p. 82)

Olha, Daisy: quando eu morrer tu pensas
Que fui ali, à esquina, ver tabaco
Que me escapei do lar, sem dar cavaco
Mas que voltarei já, sem mais detenças.

Vendo bem, não são muitas as diferenças
Entre a morte e uma queda num buraco
Da rua em que rasgamos o casaco
E o corpo sofre mais outras ofensas.

Insulta-me: "És canalha e mentiroso!!!
Seu traidor!!! És um traste e cão raivoso!!!
Até que enfim, me vi livre de ti!"

E não indo a saudade à tua porta
Quando a minha lembrança for já morta
Não vale a pena, então, ver que eu morri...
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Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Camões, I

Tu quem és? Sou o século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.

Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis à morte.
Ele, que é morto?... Vive a eterna vida.
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Curva do caminho

Eis-me chegando à curva do caminho,
onde vejo os escombros do passado:
a casa em que nasci, cresci, malgrado
o quarto de dormir em desalinho.

Não me faltou, porém, muito carinho
vivendo no Sertão injustiçado,
onde o “mandante” sempre desalmado
faz o povo sofrer, no Pelourinho...

No entanto, a vida é bela e deslumbrante,
mesmo que a estrada se apresente escura
sempre brilha uma luz ao viajante...

... E quando eu me tornar uma saudade,
minha alma esquecerá a desventura
para cantar, em verso, a Eternidade!
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

O gato Bernardo

O gato Bernardo
mia, mia sem parar.
Quer apanhar uma estrela,
mas não sabe como a ela chegar.

Faz contas e mais contas,
calcula distâncias em vão.
Não sabe como chegar ao céu:
se a pé ou de avião.

Recomendei-lhe um foguetão
ou uma nave espacial.
O gato Bernardo está confuso
pois escolher não sabe qual!

A força da gravidade
está a deixá-lo preocupado.
Diz que já não tem idade
para andar pendurado.

Talvez peça a uma empresa
para lhe trazer o seu desejo.
Vai deixá-la no seu quarto
e com ela será um festejo.

A estrelinha vai-lhe contar
histórias para adormecer.
Serão os melhores amigos
até o Sol nascer!
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

Cantilenas

Na rude sina de escrever
não tenho o brilho de versejar,
sem o estro como me atrever
a alguma rima iluminar.

Lendo Confúcio e os sonetos
de Bilac reverberando,
nos parnasianos, nos analetos
a rabiscar vou bem lutando.

São cantigas mãos-atadas,
sem vigor e sem brilho, dezenas
de estrofes versalhadas,

São cores sem nenhum matiz,
tantos versos cantilenas
e garatujas do bardo aprendiz.
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Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Chocados os ovos,
há o choque
dos seres novos.
E a vida prossegue.
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Agonia

Nos lençóis inda sinto o perfume
Desse amor indomado, atrevido.
Perco o sono, em saudade embebido,
Tu partiste, emergi em negrume.

Por espinhos agudos cingido
Não mais tenho o mirífico lume,
A lamúria o viver se resume
Com tristura esta cama divido.

Presa fácil de infinda agonia
Tua ausência pranteio, definho,
Perambulo em vereda sombria.

Se tivesse outra vez o carinho
A sorrir de prazer voltaria,
Não me deixes penar mais sozinho.
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Poetrix de
TÂNIA SOUZA
Mato Grosso do Sul

Vitrine

Confeitos coloridos!
Nos olhos do menino
A fome chora.
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Silêncio

Existem  dias que  prefiro o silêncio,
um silêncio brando, suave, que me transporta
ao profundo útero da alma.
Feto sem luz, ali me recolho à espera de renascimento.
Choro um choro sufocado, que o silêncio silencia.
A  gestação  prossegue recriando minha alma
e  reencontro a vida que  a mim proponho.
 É no fundo do silêncio que me reconstruo
e  me apodero de novos sonhos.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Ao som da minha lira

Se me deixas à deriva, sou navio
resistente a solidão das calmarias.
quando as nuvens que me vêm, ficam sombrias,
fantasias iluminam meu vazio.

Abstrai-me o abandono que me inspira
a içar  as minhas velas renitentes,
movimento-me ao som da minha lira,
mesmo quando o meu silêncio é  permanente.

Se me deixas  à deriva, não me deixas,
pois a tua companhia é  tão  minha,
e até  mesmo sem saber se tu te  queixas, 

teu sorriso me acompanha na viagem
que jamais será  mais triste ou mais sozinha, 
porque teu amor faz  parte da  paisagem.
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Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Alvorada eterna

Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos...

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos...

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca...

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!
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Poema de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Amar-te em poesia!

Face a detalhes adversos
E a entraves do dia a dia,
Preciso apelar pros versos
E assim te amar em poesia!

Meus versos são lenitivos
À falta de teu calor,
Mantêm instintos ativos
Por conta de nosso amor.

Amar-te em poesia, sim;
Abrir para ti meu peito!
Trazer tua imagem pra mim
E envolvê-la do meu jeito!

Musa és de meus poemas
Instados pela distância.
De ti, vêm todos os temas
E paixão em abundância.

Os doces versos saindo,
Dão-me vida afortunada.
Amar-te em poesia é lindo,
Antes isso do que nada!
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Medo de amar

Amor, meu grande amor, bem que eu queria
saber coisas de amor que não entendo.
Tuas respostas sempre têm o adendo
oculto e dúbio... cheias de magia...

Olho-te, o teu mistério não desvendo,
o teu olhar confunde a analogia;
e nada do que sinto é mais horrendo
que o desespero de perder-te um dia...

E um medo bem maior que te perder
vêm dos teus olhos e do teu poder
que deixam meus desejos tão incertos...

Quem sabe teus mistérios e segredos
estejam protelando estes meus medos
para que os teus não sejam descobertos!...
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Epigrama n. 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
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Trova de
ARI SANTOS DE CAMPOS
Balneário Camboriú/SC

Neste mundo de conflitos
o Poder faz e desfaz...
E os povos seguem aflitos
com a esperança de paz!...
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Limerique de
TATIANA BELINKY
São Petersburgo/Rússia, 1919 – 2013, São Paulo

Minhocas

Ao ver uma velha coroca
fritando um filé de minhoca
o Zé Minhocão
falou pro irmão:
“Não achas melhor ir pra toca?”
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Soneto de
TÚLIO VARGAS
Piraí do Sul/PR, 1929 -2008, Curitiba/PR

Machadiano

“Oh! Flor do céu! oh! flor cândida e pura!”
Que dos vergéis avulta doce e inquieta;
encanta e traz, das vestes da natura,
da luz o brilho e a cor da borboleta.

Para exaltar-te invoca-se um poeta,
a declamar sem laivos de amargura,
pois eu, que sou um infeliz esteta,
não intento alcançar tal formosura.

Quero dizer-te a frase romanesca,
mas na garganta cessa voz grotesca
e o pensamento todo se embaralha.

Um número qualquer na sorte crivo,
oh! dúvida cruel! Mas sobrevivo.
“Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”
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Glosa de
FRANCISCO PESSOA
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Cada passo é mais um sonho 
Ao longo do caminhar

Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.

Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.
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Copla* de
ÂNGELO FRANCO
São Luiz Gonzaga/RS

Coplas de um gaúcho brasileiro

Esta parada que eu carrego no meu jeito
Vem do meu peito embriagado de ideal
Eu sou de um povo que se fez a ferro e fogo
Guardando posto no Brasil meridional

Os olhos firmes não retratam amarguras,
Pois as agruras não são mais que provações
Se rio pouco quando rio, sou sincero
Sei o que quero não nasci pras ilusões

A cada dia que o Brasil fica mais velho
Eu me revelo mais gaúcho e brasileiro
Pena que os olhos do país às vezes turvam
E nos enxergam muito mais como estrangeiros

É bem verdade que não somos agregados
Aos que parados choram pranto de miséria
Sangue latino, coração de terra bruta
A nossa luta é por trabalho e gente séria

Nossas verdades têm razões nacionalistas
Como ativistas da cultura regional
Já não pregamos nenhuma separação
Revolução é dar a mão ao seu igual

Por isso eu digo pra cada brasileiro
Somos gaúchos com orgulho da nação
Apenas peço não esqueçam do Rio Grande
Que ainda temos o Brasil no coração
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* Copla, pequeno poema lírico de inspiração popular, constituído geralmente por estrofes de quatro versos octossílábicos, assonantados. Os versos podem também ser assonantes ou consoantes de oito, onze ou doze sílabas. Há ainda octossílábicos alternados com heptassílábicos. A copla pode ser de mais de quatro versos: cinco, sete, nove... e de menos: três. As coplas se denominam: de vilancetes, de seguidilhas, quintilhas, sextilhas, de sete, oito e nove versos; coplas reais, coplas de arte maior, coplas de pé quebrado. Cada uma destas têm sua própria estrutura: tipo de versos (octossilábico, quintilha, etc), quantidade de versos e estrofes, e rimas. 
Fonte: Federico Carlos Sáinz de Robles. Diccionário de La Literatura. Aguillar, 1982.
(tradução do espanhol por José Feldman)
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José Feldman (Trovas em Preto & Branco: Luiz Poeta*)

análise das trovas de Luiz Poeta por José Feldman

As trovas de Luiz Poeta expressam uma profunda reflexão sobre a vida, a espiritualidade, a solidão e as relações humanas. Cada uma delas traz temas universais imbuídas da experiência humana e podem ser comparados a obras de outros poetas, revelando tanto semelhanças quanto diferenças em estilo e abordagem. A escolha lexical nas trovas desempenha um papel crucial na criação de metáforas que evocam emoções e experiências profundas. Ao selecionar palavras específicas, ele não apenas constrói imagens intensas, mas também infunde suas metáforas com significados adicionais.

Trova 1: A Graça de Deus

"A graça de Deus é vasta,  
Deus sempre me abençoou  
e enquanto a vida se arrasta,  
agradeço por quem sou."

Nesta trova, Luiz Poeta expressa gratidão pela graça divina e pelas bênçãos recebidas. A metáfora da "graça" sugere um espaço ilimitado e generoso, implicando que a presença divina é abundante e sempre disponível. Essa concepção de Deus como uma força benevolente reflete um sentimento de gratidão e conexão espiritual. 

A palavra "graça" carrega uma conotação de benevolência e generosidade, enquanto "vasta" sugere infinitude. Essa escolha lexical torna a metáfora poderosa, evocando uma sensação de acolhimento e proteção divina. A combinação das palavras cria um sentimento de gratidão.

A ideia de reconhecer a presença de Deus na vida cotidiana é um tema recorrente na poesia de “Cecília Meireles”, que também fala sobre a espiritualidade e a conexão com o divino. Poetas americanos como “Walt Whitman" exploram temas de gratidão e autoconhecimento, refletindo sobre a relação do eu lírico com a vida e o universo. A busca por significados e a relação com o sagrado são comuns em muitas tradições poéticas, incluindo a obra de "Pablo Neruda", que frequentemente aborda a espiritualidade de forma intensa e pessoal.

Trova 2: A Solidão

"A solidão é assim:  
metade de um falso inteiro,  
início de um falso fim  
que nunca foi verdadeiro."

A solidão é apresentada como uma contradição, uma experiência complexa que pode ser tanto um início quanto um fim. Aqui, a solidão é comparada a um "falso inteiro", o que sugere que ela é uma experiência incompleta e enganadora. Essa metáfora revela a dualidade da solidão, que pode parecer plena, mas na verdade é fragmentada e insatisfatória. 

A escolha de "metade" e "falso" sugere incompletude e desilusão. Essas palavras intensificam a metáfora, transmitindo a ideia de que a solidão é uma experiência ilusória, um estado de falta que não é verdadeiro. O uso de termos que contrastam entre si ajuda a reforçar a complexidade da solidão.

Essa abordagem se assemelha à obra de "Fernando Pessoa", que frequentemente explora a solidão e a fragmentação do eu. A solidão como uma condição humana também é tema de poetas ingleses como "John Keats", que reflete sobre a melancolia e a busca pela conexão. A dualidade da solidão é um tema universal encontrado na poesia latino-americana, como em "Gabriela Mistral", onde a solidão é muitas vezes associada ao amor e à perda.

Trova 3: Portas Fechadas e Abertas

"Com tanta porta fechada,  
Deus nos mostra a porta aberta.  
Quem entra na porta errada,  
erra mais do que acerta."

Aqui, Luiz Poeta usa a metáfora das portas para simbolizar as oportunidades na vida. As portas simbolizam oportunidades e escolhas na vida. A metáfora sugere que, apesar das dificuldades e obstáculos, sempre há uma nova possibilidade. Essa imagem é poderosa porque ilustra a esperança mesmo em momentos de desespero. 

A simplicidade das palavras "porta" e "aberta" facilita a compreensão da metáfora, mas também a torna mais impactante. A ideia de portas representa escolhas e oportunidades, e o contraste entre "fechada" e "aberta" evoca uma esperança renovada diante das dificuldades.

A ideia de que, mesmo diante de dificuldades, há sempre uma nova chance é semelhante à filosofia encontrada na obra de "Mário Quintana", que fala sobre o otimismo e a esperança. Poetas americanos como "Emily Dickinson" também abordam a ideia de escolha e oportunidades, refletindo sobre como as decisões moldam nossas vidas. A metáfora de portas é comum na poesia de "Neruda", que frequentemente fala sobre caminhos e escolhas.

Trova 4: Linhas do Amor

"Das tuas mãos, li as linhas,  
mas como sou mau leitor,  
não percebi que eram minhas,  
as linhas do teu amor."

Nesta trova, a ideia de leitura se torna uma metáfora para a compreensão das relações amorosas. As "linhas" representam os sentimentos e os destinos que se entrelaçam nas relações amorosas. Essa metáfora sugere que as histórias de amor são escritas e lidas, enfatizando a conexão profunda entre as pessoas. 

A palavra "linhas" é evocativa, sugerindo não apenas a escrita, mas também o traçado de um destino. Ao associar "linhas" com "mãos", a metáfora se torna íntima, oferecendo uma sensação de conexão pessoal. A expressão "mau leitor" sugere uma falta de percepção, intensificando a confusão emocional.

A dificuldade em perceber o amor do outro pode ser comparada à obra de "Adélia Prado", que explora as nuances do amor e das relações humanas. A confusão sobre os sentimentos também é um tema abordado por poetas como "Sylvia Plath", que frequentemente fala sobre a complexidade e as ambivalências do amor. A ideia de "linhas" como uma representação do amor é uma imagem poética que está personificada na obra de "William Blake", que também utiliza metáforas visuais para expressar emoções.

Trova 5: A Educação e o Amor

"Fiel ao que a mestra ensina  
com tanto amor e ternura,  
orgulhosa, a pequenina  
sorri ao fim da leitura."

A relação entre educação e amor é celebrada nesta trova. A palavra "fiel" sugere lealdade e dedicação. Essa escolha implica que a relação entre a mestra e a aluna é baseada na confiança e no respeito mútuo. A fidelidade ao ensino indica um compromisso profundo com o aprendizado, destacando a importância da figura da mestra na formação da criança. As expressões "amor" e "ternura" são fundamentais para a metáfora, pois criam uma imagem de um ambiente educacional caloroso e acolhedor. Essas palavras evocam um sentimento de segurança e carinho, que é crucial para o desenvolvimento emocional da criança. A combinação dessas palavras sugere que o aprendizado é uma experiência afetiva, não apenas intelectual. A escolha de "pequenina" ao invés de "menina" confere uma conotação de fragilidade e inocência. Essa palavra cria uma imagem de vulnerabilidade, enfatizando a proteção que a mestra oferece. Refere-se à fase de formação da criança, onde cada passo é significativo.

A imagem da "pequenina" que aprende e sorri ecoa a obra de "Monteiro Lobato", que valoriza a educação como um meio de crescimento e desenvolvimento. A abordagem carinhosa da aprendizagem também pode ser comparada à obra de "Walt Whitman", que fala sobre a importância da educação e do amor no processo de formação do indivíduo. A conexão entre o aprendizado e a alegria é um tema comum na literatura, refletindo a importância do conhecimento como forma de amor.

Trova 6: Poder do Amor

"Há poder na onda do mar;  
há poder no Sol ardente,  
mas há mais poder no olhar  
de quem ama ardentemente."

Nesta trova, o poder do amor é exaltado, superando até mesmo forças da natureza. O "olhar" é uma metáfora para a conexão emocional e o amor profundo. Sugere que a capacidade de amar é uma força poderosa, mais impactante do que qualquer elemento natural, destacando a intensidade das emoções humanas. 

A escolha de "poder" e "ardentemente" infunde a metáfora com uma sensação de intensidade e força. "Onda" evoca a natureza, enquanto "olhar" sugere uma conexão emocional profunda. Essa combinação de palavras cria uma imagem poderosa da força do amor em contraste com a força da natureza.

Essa ideia assemelha-se com a poesia de "Vinícius de Moraes", que frequentemente celebra a força do amor em suas muitas formas. A comparação com elementos naturais é um recurso comum na poesia de "Pablo Neruda", que também reconhece o poder transformador do amor. A intensidade do olhar como símbolo de amor é uma imagem poderosa que pode ser encontrada na obra de "Rainer Maria Rilke", que explora a profundidade das emoções humanas.

Trova 7: Aprendizado pela Dor

"Quem nunca tomou porrada,  
não sabe nada da vida;  
faz da avenida, a calçada  
e da calçada, avenida."

Aqui, Luiz Poeta reflete sobre a importância da experiência e do sofrimento como parte do aprendizado da vida. A "porrada" é uma metáfora para as dificuldades e desafios que enfrentamos. Essa expressão sugere que o sofrimento é essencial para o aprendizado e a maturidade, refletindo a ideia de que a vida é uma série de lições. 

A palavra "porrada" é forte e coloquial, transmitindo a brutalidade das experiências de vida. As comparações com "avenida" e "calçada" estabelecem um contraste entre caminhos e escolhas, reforçando a ideia de que a dor é uma parte fundamental do aprendizado.

Essa ideia é similar à obra de "Drummond", que explora a dor e a experiência como fundamentais para a compreensão da existência. A noção de que a dor ensina é um tema comum na poesia de "Langston Hughes", que fala sobre as lutas e os desafios da vida. A metáfora das "portas" e "caminhos" é recorrente, mostrando como as experiências moldam a percepção da vida.

Trova 8: Fantasias e Desejos

"Roubei tuas fantasias,  
mas tu ficaste com as minhas;  
guardaste mais que podias  
e eu quis bem mais do que tinhas."

Nesta trova, a troca de fantasias entre amantes é explorada, mostrando como os desejos e sonhos podem ser compartilhados e, ao mesmo tempo, se tornam fontes de conflito. As "fantasias" simbolizam os sonhos e aspirações pessoais. Essa metáfora expressa a troca emocional entre duas pessoas, mostrando como as relações podem envolver um compartilhamento profundo de desejos e esperanças. 

"Roubei" sugere uma ação ativa e quase íntima, enquanto "fantasias" evoca sonhos e desejos. Essa escolha de palavras cria uma tensão emocional, refletindo a complexidade das trocas nas relações. A palavra "guardaste" implica cuidado, intensificando a conexão entre os amantes.

Essa ideia de troca e possessão é semelhante à poesia de "E. E. Cummings", que frequentemente explora as complexidades das relações amorosas. A tensão entre o que se deseja e o que se possui também aparece na obra de "Gabriela Mistral", que fala sobre amor e anseios não correspondidos.

Trova 9: Achismos e Descobertas

"Tanto achismo e tanto achado,  
tanto eu acho e... "desachei",  
que olhando o lado errado,  
eu percebo que acertei."

Nesta reflexão sobre a incerteza e a descoberta, Luiz Poeta aborda a complexidade da busca pelo sentido. A metáfora do "desachei" sugere a ideia de que, ao tentar entender a vida, muitas vezes encontramos respostas inesperadas. Essa expressão é um jogo de palavras que reflete a incerteza e a complexidade da busca pelo conhecimento. 

O uso de "achismo" e "desachei" confere um tom informal, que torna a reflexão mais acessível. Essas palavras criam uma sensação de incerteza e humor, refletindo a complexidade da busca por respostas na vida.

Essa ideia de que o erro pode levar a acertos é uma abordagem que ressoa com a obra de "Fernando Pessoa", que explora a ambiguidade da experiência humana. A filosofia da incerteza também é encontrada na obra de poetas americanos como "Robert Frost", que frequentemente fala sobre as decisões e seus resultados imprevisíveis.

Trova 10: Novo Dia e Graça

"Temos sempre um novo dia  
a cada dor que não passa...  
se a vida nos desafia,  
Deus concede nova graça."

A última trova traz uma mensagem de esperança e renovação. A "dor" é uma metáfora para as dificuldades da vida, enquanto o "novo dia" simboliza a esperança e a renovação. Essa metáfora sugere que, mesmo diante do sofrimento, sempre há uma oportunidade para recomeçar e encontrar paz. 

A expressão "novo dia" sugere renovação e esperança, enquanto "dor" é uma palavra que carrega peso emocional. A escolha lexical aqui estabelece um contraste entre o sofrimento e a possibilidade de renascimento, reforçando a ideia de que sempre há uma nova oportunidade para recomeçar. 

A ideia de que cada novo dia é uma oportunidade de renovação é um tema comum na poesia de "Cecília Meireles", que frequentemente fala sobre a beleza do recomeço. A relação entre dor e graça também é abordada na obra de "Neruda", que reflete sobre a luta e o consolo divino. A esperança frente aos desafios da vida é uma constante em muitas tradições poéticas, refletindo a busca universal por significado e luz.

Considerações Finais

As trovas de Luiz Poeta são um testemunho da riqueza e da profundidade da experiência humana, utilizando metáforas para intensificar o significado dos versos e convidar à reflexão. A escolha cuidadosa de palavras e a construção de imagens poéticas revelam uma sensibilidade que conecta o eu lírico a temas universais como amor, solidão, aprendizado e espiritualidade.

Várias influências podem ser cruciais para a composição das trovas de Luiz Poeta. A tradição da poesia brasileira, que inclui nomes como Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, pode ter moldado sua abordagem lírica, enfatizando a relação entre emoções e a natureza. A poesia romântica e moderna, tanto no Brasil quanto em outras culturas, traz à tona a busca por autenticidade e a exploração de sentimentos profundos. Além disso, as influências da música popular brasileira, com sua rica tradição de letras poéticas, podem ter contribuído para a formação de suas trovas.

As metáforas nas trovas são fundamentais para dar maior conteúdo e discernimento aos versos. Elas funcionam não apenas como recursos estilísticos, mas também como ferramentas de comunicação que permitem ao leitor perceber a complexidade das emoções e experiências. Por exemplo, a metáfora da "solidão" como um "falso inteiro" sugere que o eu lírico está consciente das ilusões que a solidão pode criar, promovendo uma reflexão mais profunda sobre a condição humana. Além disso, o uso de metáforas relacionadas à natureza, como "a onda do mar" ou "a luz do olhar", conecta as emoções humanas a elementos do mundo natural, criando uma harmonia entre o interior e o exterior. Essas imagens evocativas não apenas enriquecem a estética dos versos, mas também aprofundam a compreensão do leitor sobre as nuances das experiências descritas.

Em suma, as trovas de Luiz Poeta são um reflexo da intersecção entre a tradição poética e a experiência pessoal. Através do uso habilidoso de metáforas e uma escolha lexical cuidadosa, ele cria uma linguagem que é ao mesmo tempo acessível e profunda. Essa combinação permite que suas trovas repercutem com o leitor, convidando-o a explorar suas próprias emoções e reflexões. Assim, Luiz Poeta não apenas narra histórias, mas também oferece um espaço para que cada um de nós possa encontrar significado e beleza nas complexidades da vida.
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* LUIZ GILBERTO DE BARROS, registrado na Sociedade Brasileira de autores, compositores e escritores de música – SBACEM – como LUIZ POETA, nasceu em 1950, em Bangu, no Rio de Janeiro. Escritor, Poeta, Contista, Cronista, Ensaísta, Trovador, Aldravianista, Sonetista, Músico, Compositor, Produtor Musical, Artista Plástico, Gestor Educacional e Docente Aposentado  de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa. Paralelamente às atividades profissionais, destaca-se também no meio artístico como produtor fonográfico, violonista, guitarrista, compositor, poeta e artista plástico. É Verbete do Dicionário de Música Popular Brasileira Antônio Houaiss e detentor de  relevantes títulos acadêmicos. Fundador de diversas entidades culturais Nacionais e internacionais. Autor premiadíssimo em inúmeros concursos no Brasil e no Exterior. Foi Presidente da Academia Pan-Americana de Letras e Artes; do Centro Cultural Leopoldina de Souza Marques, da Faculdade Souza Marques, e Diretor Presidente do Jornal “ O Coruja “, de circulação universitária. Membro da Academia Luso-Brasileira de Letras, – Cerc Universal des Ambasssadeurs de la Paix, Divine Academie Française de Letters y Arts, Associação dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras, e outras. Dá nome, à Sala de Leitura de uma das  escolas onde lecionou (EM Evangelina Duarte Batista-RJ ) da Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro. Sua obra artística é eclética e engloba mais de 10.000 trabalhos (músicas, poesias, ensaios contos, novelas, textos dramáticos e crônicas – além de telas e trabalhos artesanais ). Tem CDs e DVDs gravados, tendo publicado mais de 100 obras publicadas entre livros-solo, antologias, CDs, DVDs, jornais e revistas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Biografia resumida, obtida na Confraria Brasileira de Letras, enviada pelo trovador.
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Eduardo Martínez (Santana, o moralista)


Lá estava o Santana, ostentando a arma na cintura, se achando o maior combatente do crime. Isso apesar de não ter certeza nem mesmo se teria ingerido duas, três ou meia dúzia de latinhas de cerveja, já que havia inúmeras outras no chão, tão próximas aos seus pés, que, provavelmente, iriam contribuir ainda mais para aumentar a pança, que tanto dificultava vestir as próprias calças. Ao seu lado, ligeiramente mais sóbrio, se encontrava o Limeira, seu companheiro de tantas primaveras na polícia.

Não muito longe do palco, os dois canas escutavam aquela música cheia de agudos. Até ensaiavam uns passos, mas nem a música animada conseguia fazer com que aqueles corpos disformes fossem além de alguns estalares de dedos. Todavia, se o Limeira estava mais a fim de curtir a noite, o Santana, sempre atento a tudo, apesar de quase nem sempre conseguir enxergar um palmo à frente da própria fuça, não gostou do beijo mais caloroso do casal logo ali. Foi dar uma de moralista em pleno show de rock.

— Que "porra" é essa? 

Os dois pombinhos nem notaram a interrupção do paquiderme armado. Isso, aliás, provocou uma reação ainda mais severa do Santana, que deu um empurrão no rapaz. Este, por sua vez, olhou espantado para aquele homem barrigudo.

— Tá olhando o quê, moleque? - Santana, enfurecido, desafiou o jovem, que não devia ter mais do que 20 anos.

— Você é muito macho porque está armado!

Pra quê? O Santana, num movimento até rápido para alguém tão gordo e embriagado, pegou a pistola em sua cintura e a jogou no meio da plateia.

— Agora vem, moleque!

Coitado do Santana! Tomou um soco no meio do nariz e caiu sentado no asfalto. O rapaz tomou a mão da amada, agora ainda mais apaixonada, e sumiu na multidão. Já o Santana, além de perder a contenda, nunca mais conseguiu encontrar a sua arma. Quanto à autoestima, não tinha o que fazer, pois,  há muito, ela o abandonara.
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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Juan Barnav (Como escrever um livro) – 2. Tenha sempre um caderno e uma caneta à mão


Muito já foi escrito sobre inventividade e criatividade.

Há quem diga que é algo que nasce com você junto com o talento e que só aqueles dotados de inclinação especial para escrever são aqueles que podem desenvolver a atividade prazerosa de criar histórias, textos ou livros. 

Acreditamos que existem pessoas que realmente nascem com a inclinação ou o dom especial de usar as palavras como instrumento de expressão e que são reconhecidas pelo mundo como grandes autores.

Mas é nosso desejo abrir espaço para nós mesmos no mundo da literatura, para provar a nós que também podemos criar páginas, às vezes bonitas, muitas vezes interessantes, que nos dão a satisfação de expressar o que queremos e, além disso, fazê-lo bem.

A sabedoria popular diz que "um escritor nasce ou se faz escritor".

Devemos reconhecer que ele nasce, mas também podemos demonstrar que ele é feito. O que se necessita principalmente é "o ofício"; Ou seja, a prática para se tornar um mestre. Isto é efetivamente alcançado através da escrita. E a questão que surge imediatamente é de onde ele tirará ideias para escrever e desenvolver os temas.

Como se trata de um assunto que exige muita inspiração, ela pode surgir no momento menos esperado. Então é muito importante que não sejamos pegos de surpresa e, quando temos uma boa ideia, não sabemos o que fazer com ela. 

A técnica para preservar ideias é tão simples quanto ter sempre um pequeno caderno e uma boa caneta à mão, no bolso da camisa ou na bolsa, para que as ideias não saiam da sua cabeça.

A ideia que pode ser a base da nossa história, o personagem que buscávamos para completar o elenco da mesma; A situação-chave para resolver o mistério que estamos desenvolvendo pode surgir no momento menos esperado. Ela aparecerá no teatro, num café ou nos lugares mais inusitados.

Ao longo do dia, seja indo para o trabalho, no transporte público, no carro, ouvindo rádio ou assistindo televisão, um comentário ou uma notícia pode despertar a ideia que buscamos ansiosamente. Mesmo que nosso trabalho seja de pesquisa, quando encontramos dados importantes, é sempre necessário ter um lugar para registrar aquela informação inesperada.

Um escritor popular de romances policiais reconstrói suas histórias com base em notícias do gênero que aparecem nos jornais. Seus personagens são pessoas de carne e osso que viraram manchete de fato, com sangue ou pelo menos violento, e o autor não precisa necessariamente saber a história completa dos protagonistas dos eventos para criar suas histórias.

Ele usa uma técnica praticamente detetivesca, ou seja, o resultado constrói uma história ao contrário. Você já sabe o que aconteceu, agora, como um bom pesquisador, você tem que reconstruir na sua ficção, os eventos anteriores que levaram ao desfecho que produziu a notícia violenta. Naturalmente, ele muda os nomes dos personagens, coloca os eventos em outros contextos, até muda o gênero dos personagens nas notícias e, de alguma forma, ele tem uma história nova e diferente.

É uma boa ideia praticar anotar ideias, muitas ideias, que nos ajudarão a completar a história que estamos criando. Lembre-se da anedota daquele senhor que, em sua ânsia de se tornar escritor, acordava várias vezes à noite, quando, no meio do sono, aquelas ideias brilhantes o assaltavam. Ele adotou a disciplina de anotar tudo o que lhe vinha à cabeça e acabou colocando o caderno no criado-mudo para evitar que os pensamentos lhe escapassem. Certa manhã, ao abrir os olhos, lembrou-se de que havia acordado no meio da noite para escrever algo, e de fato, em seu caderno estava escrito às pressas: "Anote, anote".

Exercício:

Leve um caderno na bolsa, começando cedo pela manhã. Escreva durante o dia as ideias que vêm à mente e que podem ser tópicos a serem desenvolvidos.

Conte quantas ideias você anota quando chega em casa à noite.

Desenvolva aqueles que você considera mais interessantes em uma página. 
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continua… 3. Tenha seu próprio espaço para escrever e todos os implementos necessários

Fontes:
http://www.mailxmail.com/curso-como-escribir-libro/ (tradução do espanhol por Jfeldman)
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Guillaume Apollinaire (O Marinheiro de Amsterdã)


0 cargueiro holandês Alkmaar voltava de Java, carregado de especiarias e outros materiais preciosos.

Fez escala em Southampton e os marinheiros tiveram permissão para descer à terra.

Um deles, Hendrijk Wersteeg, levava um macaco no ombro direito, um papagaio no ombro esquerdo e, a tiracolo, um pacote de tecidos indianos que tinha a intenção de vender na cidade, assim como seus animais.

Era o começo de primavera e a noite ainda caía cedo. Hendrijk Wersteeg caminhava a passos largos pelas ruas um tanto enevoadas que os lampiões a gás quase não iluminavam.

Na Above Bar Street, um senhor muito bem vestido o abordou perguntando se ele procurava um comprador para seu papagaio:

- Este pássaro - disse ele - resolveria meu problema. Eu vivo sozinho e preciso que falem comigo sem que eu tenha que responder.

Como a maioria dos marujos holandeses, Hendrijk Wersteeg falava inglês. Deu seu preço, que o desconhecido achou conveniente.

- Siga-me - disse este último. - Moro bastante longe. O senhor mesmo colocará o papagaio numa gaiola que tenho em casa. Desembrulhará seus tecidos e talvez eles me agradem.

Todo feliz com sua boa sorte, Hendrijk Wersteeg se foi com o cavalheiro, a quem, na esperança de fazer outra venda, elogiou durante o caminho seu macaco, que era, dizia ele, de uma raça um tanto rara, uma daquelas cujos exemplares resistem melhor ao clima da Inglaterra e que mais se afeiçoam a seu dono.

Mas logo Hendrijk Wersteeg parou de falar. Gastava suas palavras inteiramente à toa, pois o desconhecido não lhe respondia e nem mesmo parecia escutá-lo.

Continuaram seu caminho em silêncio, um ao lado do outro. Solitários, saudosos de suas florestas natais nos trópicos, o macaco assustado na névoa dava às vezes um gritinho parecido com o choro de uma criança recém-nascida, e o papagaio batia as asas.

No fim de uma hora de caminhada, o desconhecido disse bruscamente:

- Estamos chegando à minha casa.

Haviam saído da cidade. A estrada era ladeada por grandes parques, fechados por grades. De vez em quando, as árvores, as janelas iluminadas de uma casa de campo, e ouvia-se, a intervalos, o grito sinistro de uma sirene ao mar.

O desconhecido parou diante de uma grade, tirou do bolso um molho de chaves e abriu a porta que voltou a fechar depois que Hendrijk atravessou.

O marujo estava impressionado. Apenas entrevia, no fundo de um jardim, uma pequena mansão de aparência bastante boa, mas cujas persianas fechadas não deixavam passar luz alguma.

O desconhecido silencioso, a casa sem vida, tudo aquilo era bastante lúgubre. Mas Hendrijk lembrou-se de que o desconhecido vivia só.

"É um excêntrico", pensou, e, como um marujo holandês não é suficientemente rico para que alguém o atraia com a intenção de roubá-lo, teve vergonha de seu momento de ansiedade.

- Se tem fósforos, ilumine aqui para mim - disse o desconhecido introduzindo uma chave na fechadura que fechava a porta da casa de campo.

O marujo obedeceu e, assim que se encontraram no interior da casa, o desconhecido trouxe um lampião que logo iluminou um salão mobiliado com gosto.

Hendrijk Wersteeg sentia-se completamente tranquilo. Já alimentava a esperança de que seu estranho companheiro lhe compraria uma boa parte de seus tecidos.

O desconhecido, que saíra do salão, voltou com uma gaiola.

- Coloque aqui seu papagaio - disse ele. - Só o colocarei num poleiro quando ele estiver domesticado e souber disser o que quero que ele diga.

Então, depois de ter fechado a gaiola, com a qual o pássaro estava pasmo, pediu ao marujo que apanhasse o lampião e passasse para o cômodo vizinho onde havia, dizia ele, uma mesa confortável para estender as fazendas. Hendrijk Wersteeg obedeceu e entrou no quarto que lhe foi indicado. Imediatamente, ouviu a porta se fechar atrás dele, a chave girou. Ele estava preso.

Perplexo, colocou o lampião sobre a mesa e quis atirar-se contra a porta para derrubá-la.

- Um passo e está morto, marujo!

Erguendo a cabeça, Hendrijk viu, por uma fresta na qual ainda não havia reparado, o cano de um revólver apontado para ele. Aterrorizado, parou.

Não tinha como lutar, sua faca não lhe poderia servir naquelas circunstâncias, mesmo um revólver teria sido inútil. O desconhecido que o tinha nas mãos abrigava-se atrás da parede, ao lado da fresta por onde observava o marujo e por onde passava apenas a mão que empunhava o revólver.

- Ouça bem - disse o desconhecido - e obedeça. O serviço forçado que vai me prestar será recompensado. Mas não tem escolha. É preciso me obedecer sem hesitar, senão eu o matarei como a um cão. Abra a gaveta da mesa... Há nela um revólver de seis tiros, carregado com cinco balas. .. Pegue-o.

O marujo holandês obedecia quase inconscientemente. O macaco, em seu ombro, dava gritos de terror e tremia. O desconhecido continuou:

- Há uma cortina no fundo do quarto. Abra-a.

Aberta a cortina, Hendrijk viu uma alcova, na qual, sobre uma cama, pés e mãos atados, amordaçada, uma mulher o olhava com olhos cheios de desespero.

- Solte as mãos e os pés desta mulher - disse o desconhecido -, e tire-lhe a mordaça.

Executada a ordem, a mulher, muito jovem e de uma beleza admirável, atirou-se de joelhos na direção da fenda, exclamando:

- Harry, esta é uma armadilha infame! Você me atraiu a esta mansão para me assassinar. Você dizia tê-la alugado para que passássemos aqui os primeiros tempos de nossa reconciliação. Eu acreditava tê-lo convencido. Pensava que você finalmente tivesse a certeza de que nunca fui culpada!... Harry ! Pensava que você finalmente tinha a certeza de que nunca fui culpada!. .. Harry! Harry! Eu sou inocente!

- Não acredito - disse secamente o desconhecido.

- Harry ! Eu sou inocente! - repetiu a jovem senhora com voz embargada.

- Estas são suas últimas palavras. Eu as registro com cuidado. Serão repetidas durante toda a minha vida.

E a voz do desconhecido tremeu um pouco, mas voltou imediatamente a ser firme.

- Pois eu ainda a amo - acrescentou ele. Se a amasse menos, eu mesmo a mataria. Mas isto me é impossível, pois eu a amo. .. Agora, marujo, se, antes que eu tenha contado até dez, você não tiver posto uma bala na cabeça desta mulher, vai cair morto aos pés dela. Um, dois, três. ..

E antes que o desconhecido tivesse o tempo de contar até quatro, Hendrijk, desvairado, atirou na mulher, que, sempre de joelhos, o olhava fixamente. Ela caiu com o rosto contra o chão. A bala a havia atingido na testa. Imediatamente, um tiro partiu da fenda. Veio atingir o marujo na têmpora direita. Ele caiu de encontro à mesa enquanto o macaco, dando gritos agudos de terror, escondia-se em sua japona.

No dia seguinte, transeuntes que ouviram gritos estranhos vindos de uma casa de campo no subúrbio de Southampton avisaram a polícia que logo chegou para arrombar as portas.

Encontraram os cadáveres da jovem senhora e do marujo.

O macaco, saindo bruscamente da japona de seu dono, saltou no nariz de um dos policiais. Os policiais se assustaram a tal ponto que, dando alguns passos para trás, eles o abateram a tiros antes de ousarem se aproximar novamente.

A justiça informou. Pareceu claro que o marujo havia matado a senhora e se suicidara depois. As circunstâncias do drama, entretanto, pareciam misteriosas. Os dois cadáveres foram identificados sem dificuldade e a pergunta era como Lady Finngal, mulher de um lorde da Inglaterra, se encontrava sozinha numa casa de campo isolada, com um marujo que chegara na véspera a Southampton.

O proprietário da mansão não soube dar qualquer informação adequada para esclarecer a justiça. A casa de campo fora alugada, oito dias antes do drama, a um assim chamado Collins, de Manchester, que, aliás, nunca foi encontrado. Esse Collins usava óculos e tinha uma longa barba ruiva que poderia muito bem ser falsa.

O lorde chegou de Londres a toda pressa. Adorava sua mulher e sua dor dava pena. Como todos, nada compreendia daquele caso.

Após estes acontecimentos, ele se retirou do mundo. Vive na casa de Kensington, sem outra companhia além de um empregado e um papagaio que repete sem parar:

- Harry, eu sou inocente!
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GUILLAUME APOLLINAIRE (Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary de Wąż-Kostrowicki), Roma, 1880 – 1918, Paris, foi um escritor e crítico de arte francês, possivelmente o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, conhecido particularmente por sua poesia sem pontuação e gráfica, e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, além de ser o criador da palavra Surrealismo. Chegou a ser preso, por uma semana, pelo roubo da Mona Lisa e de arte egípcia em um caso rumoroso. Enfraquecido por ferimentos que teve durante a Primeira Guerra Mundial, morreu precocemente ao contrair a gripe espanhola.

Fontes:
Guillaume Apollinaire. Os maridos das flores. Publicado originalmente em 1915.
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