segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Cailin Dragomir (Histórias de Moșneagul*) A Árvore e o Riacho

Em uma aldeia cercada por montanhas e florestas, havia uma grande árvore que se erguia majestosa no centro de um vale. Seus galhos se estendiam como braços acolhedores, e suas folhas verdes eram um abrigo para muitos pássaros. A árvore era antiga e sabia de muitos segredos, observando as estações passarem e as vidas das pessoas que ali viviam.

Um dia, um riacho começou a correr em direção à árvore. Ele era pequeno e tímido, mas tinha um sonho: queria ser grande e forte, como o rio que fluía na montanha. 

Ao se aproximar da árvore, o riacho parou e a saudou.

- Olá, grande árvore! - disse ele. - Você é tão forte e imponente. Eu gostaria de ser como você, mas sou apenas um pequeno riacho.

A árvore sorriu e respondeu:

- Meu querido riacho, cada um tem seu próprio caminho. A força não está apenas em ser grande, mas em saber quando fluir e quando parar. Você tem um papel importante a desempenhar. Sem você, a vida ao seu redor não poderia prosperar.

Intrigado, o riacho perguntou:

- Como assim, grande árvore?

A árvore explicou:

- Você dá vida à terra ao seu redor. Suas águas ajudam as flores a crescer, os animais a beber e as árvores a se fortalecerem. Sua importância é imensa, mesmo que você não a veja.

O riacho refletiu sobre as palavras da árvore e, a partir daquele dia, começou a ver o mundo de outra forma. Ele não apenas fluiu, mas também se deteve para criar pequenas poças onde os pássaros podiam beber e onde as crianças da aldeia podiam brincar.

Com o tempo, o riacho cresceu e se tornou um rio. E quanto mais ele crescia, mais ele lembrava das palavras da árvore. Ele nunca esqueceu que sua verdadeira força estava em servir aos outros.

Anos depois, durante uma grande tempestade, o rio ficou agitado e ameaçador. As águas subiram e uma enchente começou a levar tudo em seu caminho. Mas o riacho, agora um rio sábio, lembrou-se da árvore. Ele se deteve, dividindo suas águas em duas direções, evitando que a enchente causasse mais destruição.

Quando a tempestade passou, a aldeia estava em segurança, e todos celebraram a coragem do rio. A árvore, observando de sua posição elevada, sorriu, sabendo que o riacho, que um dia se sentiu pequeno, havia se tornado um guardião.

Moșneagul concluiu a história com um sorriso sereno:

- Meus amigos, lembrem-se: mesmo os menores de nós têm um papel a desempenhar. A verdadeira força não está em tamanho, mas em como usamos nossos dons para ajudar os outros e a natureza. Cada um de nós pode ser uma árvore ou um riacho, desde que façamos o bem.
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* Nota do autor:
Moșneagul, que significa "o velho" em romeno, é uma figura arquetípica nas tradições folclóricas da Romênia. Ele representa a sabedoria acumulada ao longo dos anos e a conexão profunda com a cultura e as tradições locais. É frequentemente retratado como um sábio que possui um vasto conhecimento sobre a vida, a natureza e as relações humanas. Ele serve como mentor para jovens e adultos, oferecendo conselhos valiosos e orientações que muitas vezes são baseadas em experiências pessoais e sabedoria popular. As histórias contadas por ele são uma parte essencial da cultura romena. Elas geralmente abordam temas universais, como amor, amizade, coragem, e a luta entre o bem e o mal. Suas narrativas muitas vezes incluem elementos do folclore, como criaturas míticas, heróis e lições morais. Ele frequentemente menciona plantas, animais e fenômenos naturais em suas histórias, usando-os como metáforas para ensinar lições sobre a vida e a convivência harmoniosa com o meio ambiente. 

Uma das principais funções de Moșneagul é transmitir a sabedoria das gerações passadas. Suas histórias são uma forma de preservar a memória cultural, passando adiante tradições, costumes e valores que poderiam se perder com o tempo. Moșneagul é muitas vezes visto como a personificação da tradição e da cultura romena. Ele representa a voz do povo, refletindo suas esperanças, medos e aspirações. Suas histórias ajudam a manter a identidade cultural viva, especialmente em tempos de mudança. Apesar da profundidade de suas lições, as histórias de Moșneagul frequentemente contêm humor e ironia. Ele utiliza o riso como uma forma de ensinar, fazendo com que as pessoas reflitam sobre suas próprias vidas de maneira leve e acessível.

As histórias de dele não apenas educam, mas também fortalecem a coesão social na aldeia. Elas criam um senso de pertencimento e identidade, unindo as pessoas em torno de valores compartilhados. Ele é mais do que um simples contador de histórias; ele é um símbolo da sabedoria coletiva, uma ponte entre o passado e o presente, e um farol de esperança e inspiração para todos que o ouvem.
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Cailin Dragomir nasceu em 1949, na vibrante cidade de Timișoara, na Romênia. Desde cedo, demonstrou uma paixão inata pela literatura e pela arte das palavras. Ele cresceu em um ambiente que refletia a rica herança cultural da sua cidade, onde a música e a poesia se entrelaçavam nas conversas cotidianas. Após concluir o ensino médio, ingressou na Universidade, onde se destacou em seus estudos de literatura. Sua dedicação e talento o levaram a continuar sua formação acadêmica, culminando em um pós-doutorado. Durante esse período, ele mergulhou na obra de grandes poetas romenos e internacionais, desenvolvendo um estilo próprio que misturava o lirismo clássico com uma abordagem contemporânea. Em 1992, tomou a decisão de se mudar para o Brasil, em busca de novas oportunidades e experiências. Ao chegar ao país, ele se estabeleceu em São Paulo, onde rapidamente se destacou como professor de literatura. Suas aulas eram conhecidas pela abordagem criativa e envolvente, inspirando os estudantes a apreciar a literatura de maneira profunda e significativa. Além de sua carreira acadêmica, cultivava uma paixão pelo xadrez. Ele se tornou um jogador forte e respeitado, participando de torneios e promovendo o jogo entre seus alunos. Dragomir acreditava que o xadrez, assim como a literatura, era uma forma de arte que desenvolvia o pensamento crítico e a estratégia, habilidades essenciais tanto na vida quanto na escrita. Ao longo de sua vida, Cailin Dragomir se estabeleceu como uma figura influente na cena literária e educacional, deixando um legado duradouro tanto na Romênia quanto no Brasil. A influência da cultura romena em sua poesia se manifesta em diversos aspectos de sua obra. A rica tradição literária da Romênia, que inclui poetas como Mihai Eminescu e George Coșbuc, moldou a sensibilidade estética dele. Ele usa uma linguagem lírica e metafórica, incorporando elementos do folclore e da mitologia romena, que são essenciais na poesia romena clássica. A natureza é um tema recorrente na poesia romena, e Dragomir não é exceção. Suas descrições vívidas de paisagens romenas, como as montanhas dos Cárpatos e os campos de flores, refletem uma profunda conexão com o ambiente natural, transmitem uma sensação de integração e nostalgia.
       A riqueza do folclore romeno permeia sua poesia, com referências a mitos, lendas e tradições populares. Utiliza esses elementos para criar uma ponte entre a modernidade e as raízes culturais, trazendo à tona a sabedoria ancestral que ainda ressoa na vida contemporânea. A poesia romena é conhecida por sua profundidade emocional e introspecção. Seguindo essa tradição, explora sentimentos complexos como amor, perda e saudade, utilizando uma abordagem que reflete tanto a sensibilidade individual quanto a experiência compartilhada do povo romeno. Ele muitas vezes incorpora ritmos e cadências que evocam a sonoridade da música popular romena, criando uma harmonia entre palavra e som que enriquece a experiência do leitor.
       Após sua mudança para o Brasil, passou a incorporar a experiência da diáspora em sua poesia. Essa nova perspectiva enriqueceu sua obra, permitindo uma fusão de influências culturais que resultou em uma poesia mais ampla, reflexiva e acessível a diferentes públicos. 
       Em suas obras faz referências a figuras mitológicas romenas, como "Zmeu", um dragão que frequentemente aparece em contos populares. Ele utiliza essa figura para simbolizar desafios e superações, inserindo a luta contra o Zmeu como uma metáfora para as dificuldades da vida. Também é comum encontrar menções a "nossas montanhas", como os "Cárpatos", que não apenas servem como cenário, mas também como símbolo de resistência e força. Cailin pode descrever a beleza dessas montanhas em relação à história do povo romeno, evocando sentimentos de pertencimento. Ele inclui personagens folclóricos como "Moșneagul" (o velho sábio) e "Zână" (a fada), representando a sabedoria ancestral e a proteção, respectivamente. Esses personagens são frequentemente utilizados para transmitir lições de vida e a importância das tradições. Além disso, faz alusão a festivais tradicionais, como "Mărțișor", que celebra a chegada da primavera. Em seus versos, ele descreve a troca de fitas brancas e vermelhas como um símbolo de renovação e esperança, refletindo a alegria da vida. Histórias de amores impossíveis, como a lenda de "Făt-Frumos" e "Ilena Cosânzeana", podem ser exploradas em sua poesia. Ele usa essas narrativas para abordar temas de amor e sacrifício, conectando a experiência pessoal com a tradição. Há a presença de criaturas míticas, como o "Chimera" ou o "Roc", descrevendo esses seres como guardiões de segredos e mistérios, simbolizando os desafios que todos enfrentamos em busca de conhecimento. Esses elementos folclóricos não apenas enriquecem a poesia de Cailin Dragomir, mas também criam uma ponte entre o passado e o presente, permitindo que ele dialogue com suas raízes culturais enquanto se adapta a novas influências. Essa fusão é uma das marcas distintivas de sua obra.
          Como poeta, Dragomir publicou três livros : 1. "Ecos da Alma" - Uma coletânea de poemas introspectivos que exploram a complexidade das emoções humanas; 2. "Sussurros da Memória" - Uma obra que reflete sobre o passado, a nostalgia e a busca pela identidade; 3. "Caminhos de Luz" - Uma série de poemas que celebram a beleza da natureza e a conexão entre o ser humano e o mundo ao seu redor.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Aparecido Raimundo de Souza (Terapia caseira para ir além do cotidiano)

HÁ UMA MÚSICA que não apenas toca meus ouvidos, mas atravessa minha pele, corta como o vento em estrada aberta. Ela não tem nome fixo, não mora em um gênero específico. Às vezes me vejo sentado na sala, diante de meu Nord Stage 5, tocando essa maravilha, outras vezes me flagro em meio a uma espécie de orquestração ancestral, como se eu fosse o maestro com a batuta nas mãos regendo notas de um paraíso bem longe da Terra. 

Ainda que eu não esteja no teclado, somente ouvindo ou dedilhando o som das suas notas, como se vindas de um ponto distante. Não importa. Nessas horas simplesmente me transporto. Quando a música começa, o mundo ao meu redor desacelera. As paredes do meu apê desaparecem, e de repente sou lançado por trilhas suaves e invisíveis. Viajo nesses momentos mágicos, por horas e horas. Me deleito por sendas que não reconheço, mas que me acolhem. 

É como se cada nota tocada ou ouvida fosse uma bússola apontando o futuro para dentro de mim e não só me direcionando, ou me revelando paisagens, todavia, conduzindo meu espírito para lugares que nunca explorei. De roldão, visitarei lembranças esquecidas, abraçarei desejos não realizados, me livrarei de medos bobos que se camuflavam de coragem. Essa música, me fará viajar sem malas e sem mapas. Me levará por desertos de silêncio e florestas de emoções imorredouras. Às vezes, me encontro em um mundo paralelo. 

Me pilho num vilarejo onde o tempo parou, e então fico ouvindo vozes que falam em línguas que não conheço, mas por algum motivo entendo. Noutras, estou flutuando sobre cidades futuristas, como se estivesse plainado ao redor de prédios altos, onde cada batida me impulsiona em direção ao além mavioso de um céu desconhecido. Ela, a música, me ensina que o incógnito adventício e duvidoso, logo em seguida me mostrará que por onde eu transitar não será um lugar de perigo, porém de novas descobertas. 

Em seguida, me fará ver também que há uma beleza rara e incomum naquilo que não compreendo de imediato. Me fará crer que viajar em suas ondas sonoras não será apenas mudar de lugar, outrossim de perspectiva. E quando a derradeira nota ecoar, prevalecerá um arroubo sempiterno ameno e deleitável, e eu não serei mais o mesmo de antes. Trarei de volta, para o meu mundinho retido dentro do meu apartamento, um porvir esplendoroso. 

Regredirei diferente, é claro. Regressarei extasiado, contemplativo, arrebatado, embebido dos pés à cabeça com algo novo formado dentro de todo meu “eu”, ou seja, me exaltarei empanturrado, inundado a alma toda com ideias corpulentas, ingurgitadas numa sensação, e no ar que respiro uma paz jamais sentida. Essa música que ouço e se espalha, não me dará somente respostas. Ela me proporcionará algo mais e me mostrará caminhos sedentos de amanhã. 

Essa música eu diria sem medo de errar, acabou com a minha quase demência, com meu início de Alzheimer. Não sei o nome dessa música. Apenas me foi dado conhecer e entender que é composta de uma melodia que completou a minha vida. Me sinto, por conta, vivo. Igualmente me abraso livre, me incendeio. É a música terapia da minha vida. A indagação que agora deixo para você, meu caro amigo, é uma só: qual é à música da sua vida? Qual a melodia que lhe transportará para lugares além do chão onde atualmente está pisando? 

Sugiro que você pare e tente capturá-la. Se atenha a uma canção suave e serena, que seja envolvente, que provoque a sua alma, que contemple o seu espírito e, sobretudo, que lhe faça sentir seguro. Como a mim, você verá se dissolver o nevoeiro que o está afligindo. Acredite, essa música existe em cada um de nós e pasme, ela não só devolve a paz, alimenta a alegria de viver...e nos guia para um campo neutro onde nos sentimos realizados. 

Essa música lhe devolverá, ao mesmo tempo, no que melhor existe dentro do oco que fere a sua vida cotidiana. Faça, pois, como eu. Crie um ritual. Apague o mundo. Se recolha em sua cama, coloque os fones no ouvido e se deixe levar pelo som do amor. Ele lhe conduzirá. No dia seguinte, você não acordará apenas desperto. Você se maravilhará vivo. Lembre sempre do que direi antes de terminar: quando a mente começar a falhar, você se deparará, do nada com uma forma de dizer: “Ainda estou aqui.” 

E estará mesmo. Inteiro, saltitante, repaginado. Não é preciso muito para viajar longe. Nem passaporte, nem estrada, nem dinheiro. Basta um par de fones de ouvido e a coragem de se entregar ao som da música certa. Não qualquer som, não o barulho do que está ao seu redor, não o batuque frenético que o empurrará para fora, mas aquela centelha sutil que o desconectará do habitual. Tente capturar a música certa, aquela que não gritará nem agredirá seus tímpanos. 

A música certa, meu caro amigo é a que sussurrará. Ela é feita de instantes suaves, de acordes que parecem respirar. Poderá vir de um órgão solitário tocando como se conversasse com o infinito. Poderá ser de um piano, de uma sanfona, de uma guitarra, ou de um violino que deslizará acordes como água sobre pedra. O importante é que ela não lhe tire o foco, apenas o distraia e se revele a você por inteira. Você não precisará entender de música. Só carecerá de a sentir. À noite, quando tudo se acalmar, repito para que não esqueça: tome um banho, desligue as notificações, apague as luzes.  

Tente se desconectar e se ater ao som limpo, puro, como se ele fosse feito para você. E então, acontecerá. Algo mavioso, inesperado. A sua mente desacelerará. O coração mudará de ritmo. Baterá mais leve. Os pensamentos antes embaralhados, começarão a se alinhar como estrelas cadentes num céu magnânimo. Você não dormirá. Você se reconectará com você mesmo. Quando o dia seguinte nascer, você não acordará apenas descansado. Seu todo pulará para a vida, saltará de alma nova.  Você, meu amigo, se verá inteiramente R E N O V A D O.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 21 de setembro de 2025

Asas da Poesia * 97 *

 

Quintilha de 
CAILIN DRAGOMIR
Timișoara, Romênia

Sonho

Na quietude da noite,  
as estrelas sussurram,  
os sonhos dançam leves,  
enquanto o coração murmura  
as esperanças que perduram.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Catorze versos

Ah, se compor sonetos não tivesse
tão complicadas regras a seguir,
não sairia agora dessa messe,
deixando outras missões para o porvir!

Porém, comigo, às vezes acontece
de me insurgir demais contra o exigir...
Não vou correr atrás de uma benesse,
dar meu suor sem nada conseguir...

Já que não posso, assim, bem sonetear,
eu me distraio com catorze versos,
mas sem, sequer, seu nome mencionar.

Meu coração não mais fica tristonho,
nem aborreço ilustres controversos;
e posso acalentar, enfim, meu sonho!
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

Meu verso

Meu verso vem do Nordeste,
vem do roçado, vem do Sertão,
vem das veredas lá do agreste,
vem das cacimbas e dos grotões.

Meu verso vem dos garimpos,
das catras dos garimpeiros,
da coragem dos vaqueiros
vestidos no seu gibão,
vem do sereno da noite
do perfume do Sertão.

Meu verso simples, sem medo,
vem do sítio, do rochedo,
vem do povo do Sertão,
que com a luz do arrebol
trabalha de sol a sol
para ganhar o seu pão.

Vem da Serra do Carranca
onde a beleza não manca,
e a onça faz sentinela.
Da Serra da Mangabeira
onde a Lua vem brejeira
tecer a renda mais bela.

Meu verso vem da goiaba,
do puçá e da mangaba,
da seriguela e do mamão.
Da pinha e da acerola,
da atemóia e graviola
plantadas no roçadão.

Nasceu na bela Umbaúba,
Boa Vista, Bela Sombra,
na Lagoa de Prudente,
na Chiquita e no Vanique,
onde há muito xique-xique
e o sol parece mais quente.

Brejões, Lagoa do Barro,
Santo Antonio, Traçadal,
Olho D´Água, Rio Verde,
Baixa dos Marques, Coxim,
Ibipetum, depois Pintada,
onde passa a velha estrada,
Zequinha e Lamarca morreram.

Sodrelândia, Deus me Livre,
Pé de Serra, Poço da Areia,
Riacho das Telhas também.
Poço do Cavalo, Matinha,
Mata do Evaristo e Veríssimo,
Olhodaguinha e Ipupiara.

Meu verso nasceu no mato,
não tem brilho, nem ornato,
vem do Morro do Mocó,
da Serra do Sincorá,
vem do morro do Araçá,
nasceu pobre e vive só…
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Poetrix de
ELIANA MORA
Rio de Janeiro/RJ

sentimento clandestino

Tu, em viagens ao mundo,
Eu, ali, sempre escondida,
nos porões do teu navio.
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Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

Esquecimento
 
Tu te esqueceste que esqueci de te esquecer
Mas me lembrei de relembrar tua partida
E o esquecimento na lembrança tem poder
De relembrar que possuíste minha vida.
 
E por lembrar-te não consigo compreender
Por que não posso me esquecer desta ferida
Que o esquecimento da lembrança vem trazer
Me relembrando que jazias esquecida.
 
E vou lembrando e te esquecendo enquanto sigo
Revigorando o esquecimento da lembrança
Enquanto lembro como era estar contigo.
 
Até que um dia eu me lembrei de ter-te aqui
E fui eu mesmo me esquecendo nesta dança
E me lembrando de esquecer que te esqueci…
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Hino de 
Cruzeiro do Sul/AC

No regaço da Selva assombrosa
onde outrora espumava o Tapi
Uma Bela Cidade Ruidosa
Vimos hoje fagueira surgir.

Para o seio da Mata orvalhada
as aragens correndo lá vão
E no cimo da Selva ondulada
Thaumaturgo Azevedo dirão.

Pasma o índio bravio confundido
Empolgando uma flecha nos ares
Ao ouvir que é tão repetido
Vosso nome nos nossos palmares.

O lampejo do sol do progresso
D’ouro ufano este alcantil
Contemplado será no universo
Novo estado no chão do Brasil.

E do trono dos seus esplendores
Sobre nuvens bordados de azul
Deus semeia cascata de flores
E abençoa o Cruzeiro do Sul.
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Soneto de 
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Musa impassível

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó conserva o mesmo orgulho e diante
De um morto o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia crebra*,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos!
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* crebra = frequente
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Trova Funerária Cigana

Sou triste como a caveira
no cemitério rolando,
que vai com o correr do tempo
em negro pó se tornando.
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Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Fugaz

Em meu sonho 
vi você passeando
pelos caminhos
do meu coração. 

Nossos olhos,
num repente, 
se cruzaram 
em louca contemplação.

Pensei comigo: 
“Ela vai voltar”
e todo “meu eu” se engalanou... 
por um instante apenas... que triste decepção!

Havia, ao lado, um outro recipiente
Igualmente com flores enfeitando
Pequenas almas em animada festa
Numa alegria pra lá de incandescente.

O meu desespero... chorou...
Derramou lágrimas da mais pura felicidade 
Esse momento, confesso, eu amei.
Mas, para meu espanto, em seguida, acordei!
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Fábula em Versos
adaptada dos Contos e Lendas da África
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

A Fada do Rio

No vale encantado, onde o rio dançava,
vivia uma fada, cuja luz brilhava.
Ela cuidava das águas, com amor e carinho,
protetora dos peixes, do sapo e do passarinho.
Mas um dia, a poluição ameaçou,
e a fada, aflita, um plano traçou:

Reuniu as crianças, com corações valentes,
“Vamos limpar o rio, seremos persistentes!”
Com mãos unidas, e sorrisos brilhantes,
transformaram o rio, em águas vibrantes.
A fada sorriu, seu coração agradeceu,
o rio reviveu, e a magia renasceu.

Juntos, podemos curar a natureza ferida,
o amor e a ação trazem vida à vida.
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Quadra Popular

Quem  tiver filhos pequenos
por força há de cantar:
quantas vezes as mães cantam
com vontade de chorar.
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Versos dolentes

Voragem tenebrosa que me abraça
Suplico a ti meu breve livramento
Dos tragos espinhosos dessa taça
Já farto quero o fim do sofrimento

Navalha do amargor que me traspassa
E vive a propagar abatimento
A lâmina que inflige tal desgraça
Retires deste peito... Eis meu lamento

Em frias madrugadas, vago aos prantos
Momentos a lembrar, tantos e tantos
Estampa-se em minh'alma uma ferida

Cingido pel'angústia sem remédio
Sou vítima indefesa desse assédio
Amor, como a saudade é dolorida...
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Calmaria

Plantio de sonhos
saúdam em cores
seus ares gentis,

até as estrelas sorriem sutis.
Em arranha-céus paira o eco
seco, pêndulo de uma matiz.
As brandas nuvens são elos
poéticos de novas eras viris.
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Poema de 
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Uma maior solidão

Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.

Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.

Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim
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Abbie Phillips Walker (A pequena boneca da China)

Na vitrine de uma loja estava uma pequena boneca de porcelana. Ela estava na loja há tanto tempo que não se lembrava de ter morado em outro lugar.

Há muito, muito tempo, haviam outras bonecas de porcelana, mas uma a uma, uma garotinha as levou embora e ela ficou sozinha. A Boneca da China tinha cabelos pintados de preto e olhos grandes e arregalados, e seus lábios e bochechas estavam muito vermelhos. Seu corpo estava cheio de serragem e suas mãos e braços eram de porcelana até o cotovelo, assim como seus pés e pernas até os joelhos.

Aos poucos, bonecas de cera chegaram à loja; elas tinham cabelos de verdade, todas cacheadas, e olhos que abriam e fechavam, e a pobre Boneca da China foi colocada de volta na vitrine, e depois de um tempo ela foi colocada em uma caixa na prateleira e retirada apenas uma vez por ano — no Natal — quando era espanada e colocada na vitrine novamente. Ela se sentia muito sozinha com tantas bonecas de cera estilosas e, como já havia perdido a esperança de ser escolhida por alguma garotinha, ficou feliz quando a velhinha que cuidava da loja a colocou de volta na caixa na prateleira.

Finalmente chegou um tempo em que as crianças não iam mais à loja, mas iam à cidade grande comprar seus brinquedos, e a Boneca da China e o pequeno velho lojista envelheceram juntos.

A Boneca da China ficava na vitrine o tempo todo, com fita adesiva, linha e outras coisas úteis, mas era a única coisa que as crianças podiam querer.

Um dia, no verão, uma vendedora parou em frente à loja e um grupo de jovens entrou. Eles compraram várias coisas e encheram a velha loja com suas risadas. 

De repente, a menina mais bonita enfiou a mão na vitrine e tirou a Boneca da China. 

"Oh, sua bonequinha querida e pitoresca!" disse ela. "Minha avó tem uma igual a esta, meninas, e eu pedi a ela muitas vezes para me dar para fazer um alfineteiro francês, mas ela não me deixa ficar com ela."

Oh, como o coração da Boneca da China batia! Seria verdade que ela finalmente ia partir? 

Sim, a moça bonita a comprou e a levou embora.

No dia seguinte, ela vestiu a Boneca da China com o mais lindo vestido de seda, como ela sonhara anos atrás, com uma sobressaia e mangas de tricô. Depois, fez para ela o mais querido gorro de pelúcia, enfeitado com pequenas rosas. Também lhe fez um par de botas de pelica.

Quando a boneca estava toda vestida, a linda menina colocou uma fita em seu braço, e em cada ponta havia uma pequena caixa de fita. Então, ela colocou a boneca em sua penteadeira e usou as caixinhas como alfinetes. 

E lá, a Boneca da China viveu uma vida muito feliz, que ensina que todas as coisas acontecem para aqueles que esperam.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.
Fontes> 
Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). The Sandman's Hour: Stories for Bedtime. Publicado em 1916. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Feldman (A visita da felicidade)

Texto construído tendo por base a trova de Lucília A. T. Decarli (Bandeirantes/PR)
A felicidade é rara
e bem poucos a conhecem…
Os que a viram “cara a cara”,
nunca mais dela se esquecem!
A felicidade, dizem, é uma dama rara. Não é dessas que se encontra todos os dias na praça, nem das que se deixam levar por promessas vazias ou abraços apressados. Ela tem seus próprios caprichos e, ao que tudo indica, gosta de aparecer quando menos se espera — mas nunca por acaso.

Certa vez, ouvi dizer que um homem a viu de perto. Era um sujeito simples, desses que a vida insiste em testar. Trabalhava duro, sonhava pouco, mas guardava um sorriso no canto dos lábios, como quem sabe que, mesmo em dias nublados, há um sol por trás das nuvens. Um dia, enquanto varria o quintal ao som do vento, ali, entre as folhas secas e a poeira da estrada, ela apareceu.

A felicidade chegou sem avisar, como uma brisa que refresca sem pedir licença. Não trazia roupas luxuosas, nem se anunciava com fanfarra. Era apenas uma sensação — um calor que lhe subiu pela espinha ao ouvir o riso de seu filho brincando no quintal, ao sentir o cheiro do café fresco vindo da cozinha, ao perceber que, naquele instante, nada lhe faltava. Ele parou. Olhou ao redor e percebeu: ela estava ali.

Mas a felicidade, como sabemos, não é dessas que ficam para sempre. Ela tem o hábito de visitar e partir, deixando atrás de si um rastro de saudade. O homem sabia disso; não tentou prendê-la, não fez perguntas, nem exigiu explicações. Apenas a contemplou, “cara a cara”, como quem sabe que momentos assim nos transformam. Quando ela se foi, deixou consigo algo precioso: a memória do instante.

E é isso que os que a viram carregam consigo. A felicidade, quando surge, não precisa durar uma eternidade para ser inesquecível. Basta um momento, uma fagulha, e ela finca raízes no coração de quem a viveu. Porque, no fundo, não é ela que é rara — rara é a nossa capacidade de reconhecê-la.

Então, se por acaso a felicidade lhe fizer uma visita, não a obrigue a ficar. Apenas a viva. E quando ela for embora, não a lamente. Afinal, os que a viram, mesmo que por um breve instante, nunca mais dela se esquecem.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Monteiro Lobato (A onça e o coelho)

A onça havia plantado uma roça, onde nasceu muita urtiga. A onça ficou atrapalhada. Nem entrar na roça podia, porque a urtiga arde muito. Foi então que chamou os animais da floresta. 

— Quem me capinar esta roça sem se coçar ganha um boi. — disse ela. 

O macaco se prontificou a fazer o serviço. Mas assim que deu começo à capinação, coçou-se tanto que a onça o tocou de lá. 

Veio o bode, que também se coçou com o chifre. A onça tocou o bode. 

Por fim apresentou-se um coelhinho. "Esta é boa!" — disse a onça. — "Se nem o macaco e o bode puderam capinar a roça, que espera fazer este bichinho?" 

Mas como o coelho insistisse, consentiu. 

A onça ficou fiscalizando o serviço para ver se ele se coçava; depois cansou-se daquilo e deixou uma sua filha no lugar. 

O coelho, que não podia mais de tanta comichão, teve uma ideia. Voltou-se para a filha da onça e perguntou: "Escute: aqui, oncinha, o tal boi que sua mãe prometeu não é um boi malhado, com uma mancha amarela aqui (e dizendo isso coçava a perna), e outra aqui (e coçava o lombo) e outra aqui (e coçava o focinho)? 

A oncinha, muito boba, respondeu que era. O coelho prosseguiu no trabalho, e quando a comichão apertou demais veio novamente perguntar se o boi não tinha também uma mancha amarela em tal e tal parte — e coçava ali. E desse modo conseguiu capinar a roça inteira, ganhando o boi. 

Mas a onça impôs uma condição. 

— Compadre coelho, dou o boi, mas você só poderá matá-lo num lugar onde não houver moscas, nem galo que cante, nem galinha que cacareje. 

O coelho, concordando, lá se foi com o boi em procura de um lugar onde pudesse matá-lo. Andava um pedaço, parava, escutava e sem tardança ouvia um cocoricocó! 

— Aqui não serve. Tem galo. — e seguia para adiante. 

E foi andando até que chegou a um lugar onde não havia mosca nenhuma, nem se ouvia nenhum coricocó. Então matou o boi. Nisto surge a onça. 

— Compadre coelho, — disse ela — um boi é muita coisa para você. Passe para cá um pedaço. 

O coelho deu-lhe um pedaço, que a onça devorou num segundo. 

— Não chegou para matar a minha fome, compadre. Passe para cá outro pedaço. — e o coelho deu outro pedaço. Por fim a onça devorou o boi inteirinho. 

O coelhinho voltou para casa muito triste, com o facão na cintura. Ia pensando num meio de vingar-se da onça. 

Teve uma ideia. Entrou no mato e pôs-se a cortar cipó. Apareceu a onça. 

— Que está fazendo aí, compadre coelho? 

— Estou tirando cipós. Como Deus vai castigar o mundo com uma tremenda ventania, preciso de cipó para me amarrar a um tronco de árvore. 

A onça, amedrontadíssima, pediu: 

— Nesse caso, amarre-me também, compadre. 

— Não posso. — disse o coelho fingida-mente. — Tenho de ir para casa amarrar meus filhinhos. 

— Amarre-me primeiro, - pediu a onça - e depois vá amarrar seus filhinhos. 

O coelho coçou a cabeça e por fim disse: 

— Está bem, comadre onça e como prova de amizade vou fazer esse grande favor — e amarrou-a com todos os cipós, deixando-a impossibilitada do menor movimento. 

— Bom, — disse ele ao concluir o serviço — a comadre está tão bem amarradinha que nem o maior dos furacões é capaz de arrancá-la daí — e foi-se embora, a rir. 

Passado algum tempo a onça, vendo que não vinha vento nenhum, desconfiou. "Querem ver que fui tapeada pelo tal coelho? Como agora livrar-me deste amarramento?" 

Vinha vindo um macaco. 

— Amigo macaco, faça o favor de tirar de mim estes cipós. 

Mas o macaco, sabidão que era, apenas disse: "Deus ajude a quem te amarrou", e foi-se embora. 

Apareceu um veado. 

— Amigo veado, faça o favor de desamarrar-me, pediu a onça. 

O veado, apesar de burrinho, deu a mesma resposta do macaco, e lá se foi. 

Veio o bode, e aconteceu a mesma coisa. 

Passadas algumas horas, o coelho foi espiar como ia indo a onça. 

— Compadre coelho, viva! O vento não apareceu e eu estou que não posso mais. Venha desamarrar-me. 

O coelho, com dó dela, pôs-se a desenrolar os cipós. Assim que a malvada se viu livre, nhoc! deu-lhe um pega. Mas o coelho alcançou dum pulo um buraco, mesmo assim a onça agarrou-lhe um pé. 

O coelho caiu na risada. 

— Ah, como é tola a minha comadre onça! Agarrou uma raiz de pau e está pensando que é meu pé. Ah, ah, ah!... 

A onça, desapontada, soltou as unhas, pensando mesmo que houvesse ferrado uma raiz de pau. O coelho afundou no buraco. 

Uma garça veio pousar ali perto. A onça chamou-a. 

— Comadre garça, — disse ela — fique de olho nesta cova, enquanto eu vou buscar uma enxada. Não deixe o coelho sair. 

A garça ficou na árvore, com os olhos no buraco. 

O coelho disse: — Que grande tola! Então é assim que uma garça toma conta de buraco onde está um coelho? 

— Como devo fazer então? — perguntou a bobinha. 

— Ora, ora! Tem de vir aqui e ficar com o bico dentro do buraco. 

A garça desceu da árvore e enfiou o bico no buraco. O coelho atirou-lhe aos olhos um punhado de areia e escapou. 

Nisto veio a onça com a enxada. Cavou, cavou até lá no fundo e nada de coelho. 

— Comadre garça, que fim levou o coelho que estava aqui? 

— Não sei! — respondeu a tola. — Ele me mandou que enfiasse o bico no buraco. Assim que enfiei o bico, me botou nos olhos areia. Fiquei cega e nada mais vi. 

A onça, furiosa, deu um bote na garça, que lá se foi voando, muito fresca da vida.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
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Tia Célia (A lagarta infeliz)

Num jardim muito agradável e florido vivia uma lagarta que se sentia sempre muito infeliz. Na verdade, ali ela tinha tudo o que precisava.

Passeava pelas plantas e se alimentava de folhas bem verdinhas e macias, e se abrigava entre os ramos das árvores.

A lagarta era muito boa, prestativa e gostava muito de ajudar os outros, mas quem?

Todos a temiam e fugiam dela exclamando:

- Que bicho feio!

Os garotos caçoavam dela e maltratavam a pobrezinha, que corria a esconder-se entre as folhas. Por isso, ela vivia muito triste. Possuía um coração terno e amoroso e queria muito ter amigos, mas não conseguia aproximar-se de ninguém.

Os próprios bichos a olhavam com desdém, dizendo:

- Vejam que roupa mais feia!

E a pobre lagarta ficava cada vez mais triste e sozinha, até que, cansada de tanto ser maltratada ela não saiu mais de casa.

Não podendo aproximar-se de ninguém, ainda assim querendo doar algo de si mesma, ela fez a única coisa que sabia fazer: teceu lindos fios para que alguém pudesse aproveitar confeccionando belas roupas. Como tinha muito tempo à sua disposição, ela trabalhou bastante.

Enrolou-se toda no casulo e ficou quietinha... quietinha...

Estava com tanto sono! Sentia-se tão cansada...

E a lagarta dormiu... dormiu...dormiu...

Quando acordou, sentiu-se diferente, mais leve, mais bem disposta.

Teve vontade de passear e saiu de casa.

Notou que todos os que estavam por perto a fitavam com surpresa e admiração.

- O que está acontecendo? – pensou. Olhou-se e ficou deslumbrada.

Oh! Maravilha! Era um lindo dia e, sob os raios do sol morno da manhã, ela percebeu que se transformara em uma linda borboleta de asas coloridas e cintilantes.

Sem poder conter a emoção do momento, satisfeita da vida e muito, muito feliz, ela bateu as asas brilhantes e, depois de beijar as perfumadas flores do jardim, voou para o infinito.
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Célia Xavier de Camargo (Tia Célia) é natural de Gália/SP, espírita, escritora com 23 livros publicados. É formada em Direito, sendo atualmente professora aposentada. Casada com 4 filhos. Reside em Rolândia – PR. Residiu por muitos anos na cidade de Marília (SP), onde participou ativamente do movimento espírita. Em 1980 iniciou-se na psicografia, publicando 15 livros de diversos autores espirituais, disponíveis nas livrarias espíritas. Tendo atuado por muitos anos na área infanto-juvenil de educação espírita, desde o ano de 1985, é responsável por uma página inteiramente dedicada à criança no mensário O Imortal, de Cambé/PR. Palestrante por todo o Brasil divulgando o Espiritismo. O livro “Um anjo em nossas vidas”, faz parte do Clube do Livro do Instituto Chico Xavier.

Fontes:
Jornal O Imortal. Cambé/PR: 2001.
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