quinta-feira, 8 de abril de 2010

Carlos Drummond de Andrade (Livro de Poesias)



A CASA DO TEMPO PERDIDO

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando. repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.

FIM

Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.

PAVÃO

A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça
o leque vertical do pavão
com toda a sua pompa
solitária no jardim.
De que vale esse luxo, se está preso
entre dois blocos do edifício?
O pavão é, como nós, interno do colégio.

QUERO ME CASAR

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!

SENTIMENTAL

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas,
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

A LEBRE

Apareceu não sei como.
Queria por toda lei
desaparecer num relâmpago.
Foi encurralada
e é recolhida,
orelhas em pânico,
ao pátio dos pavões estupefatos.
Lá está, infeliz, roendo o tempo.
Eu faço o mesmo.

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