domingo, 7 de agosto de 2016

J. G. Araújo Jorge (Poemas Escolhidos)

DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…

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A LIBERDADE E A LARANJA
                                     (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
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ESPERANÇA!

Sobre a miséria dos pobres,
a caridade dos ricos,          
a injustiça dos governos,   
o sangue dos inocentes,     
a áspera luta dos fracos,    
a revolta e a humilhação    
dos vencidos e explorados;  
  sobre as manchetes do mundo,
impressas em negro e rubro,
sobre ameaças e pragas      
foguetes, bombas, políticos,

- de repente, ouço, distante,
uma criança gritar: mamãe!
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INQUÉRITO SOBRE A LIBERDADE
Perguntei ao lavrador que tão cedo madrugava
a cuspir, nas duras mãos, presa ao cabo da enxada
se ele queria a liberdade...

E ele me olhou em silêncio, desconfiado,
e baixou os olhos à terra amarga do seu Senhor...
(Inútil terra que só tem servido para enterrar os seus mortos).

Perguntei ao trabalhador apressado, na sombra da manhã,
escravo da família, a crescer e a morrer,
acuado pela vida
se ele queria a liberdade...

e ele deu de ombros, e falou em mais feijão e mais carne em sua mesa,
em segurança e escola para seus filhos...
(Inúteis reivindicações sempre adiante do seu salário).

Perguntei ao intelectual, preocupado e inquieto
entre frustrações e ameaças
se ele queria a liberdade...

E ele indagou: Qual? A americana, que massacra
negros, e explora povos indefesos?
Ou a francesa? que garantiu o direito do rico
ser cada vez mais rico,
e se transformou num estado-policial contra a pobreza?
(Inúteis liberdades que apenas mistificam e revoltam).

Até ao menino maltrapilho, sujo, abandonado,
entre outros companheiros, perambulando nas ruas
perguntei se queria a liberdade...

E ele fugiu sem responder, correu em liberdade...
(Inútil liberdade que o levará ao crime e ao presídio).

Liberdade, ó santa liberdade, ó doce liberdade
tão bela nos hinos escolares, nos discursos políticos
nas manchetes dos jornais,

em que dia, em que dia,
encontrando-te a ti mesma, com um sentimento novo,
deixarás de ser proxeneta da burguesia
para ser a verdade do povo?
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POEMA   AO  JORNALISTA
                                                              À Mario Martins
Ninguém te vê. Nem o homem sério de óculos que se sentou
                                       [ de pijama na cadeira de palhinha
na calçada de um subúrbio qualquer,
nem a mulher gorda que tira os óculos e chora por causa do
                                                             [ assassinato hediondo,
- o homem que matou seis filhos e bebeu veneno -
ou pelos dez órfãos da mãe desesperada,
a mulher que se jogou na linha do trem e o trem repartiu na
                                                                                       [terra.
Ninguém te vê. Nem o garoto que fuma escondido num lugar
                                                         [mal cheiroso do colégio,
nem a menina de tranças que gosta de se sentar na ponta do
                                                                     [banco do bonde
e esquece a rua com as últimas histórias do impossível;
ninguém te vê, nem o rapaz que discute política na mesa do café,
nem a moça que procura o seu nome na crônica social, onde
a caridade fica muito mais bonita e onde ela se sente muito mais humana...

Ninguém te vê.
Estás sentado na tua mesa, entre papéis disperses,
                                                         [telegramas de última hora,
a voz do secretário, o relâmpago do magnésio, a campainha do
                                                                                       [diretor,
a importância do homem que vai dar uma entrevista;
estás sentado na tua mesa, e escreves com a música dos
                                                                        [linotipos
o ruído das máquinas datilográficas,
o vozerio dos companheiros que vão e vêm
a bandeja de café, a fumaça do cigarro, o cheiro de óleo,
- e na tua cabeça há uma prodigiosa procissão de coisas
                                                                           [diversas
que se atropelam como os homens na rua
na mudança dos sinais.
(Verde-vermelho,verde-vermelho-verde -vermelho)

Há presidente e chefes em Washington depois que o ladrão
                           [assaltou o apartamento de Copacabana,
dois tiros, um aniversário, Marieta que cortou os pulsos
                                                             [pela décima vez,
mil aviões desovando bombas, o jantar elegante no grill
                                                                      [do cassino,
um fascista graúdo que tomou chumbo na cara, a mulher que
                                                               [teve quatro gêmeos,
a crônica sobre o vestido de Madame X, o político que
                                                [promete um mundo melhor,
o operário que caiu do 5.0 andar, o quilo de feijão a 3
                                                                            [cruzeiros,
Clark Gable que voltou da guerra, o último gol do América,
-tudo isto está na tua cabeça, que a tua cabeça é o mundo
debruçado sobre um bloco de papel...

Ninguém te vê. Mas tu vês o mundo, tu sentes o mundo, cada
                                                                       [dia, cada noite,
captas o mundo, cada dia, cada noite,
e daqui a pouco, e amanhã bem cedo, terás milhões de olhos,
                                                [terás milhões de consciências,
Porque te difundirás na multidão e andarás na multidão como
                                                                                      [os pés
no corpo...

És tu que mudas todos os dias a alma das multidões,
dá-lhes novo alimento, nova água, novas preocupações, novas alegrias,
ou novos tormentos,
depois do sol, é a tua manchete que brilha mais, e que
                                                                             [clareia a rua,
depois da noite, é a tua manchete que enluta o mundo e
                                                               [encobre os homens...


Ninguém te vê. E existes e estás presente em toda parte,
                                                                             [como Deus,
nas ruas, nas batalhas, no avião que ronca no céu, no navio
                                                                  [que não chegará,
na hora do fuzilamento, no recado para a família, nas
                                                                            [barricadas,
nos subterrâneos inconquistáveis onde a liberdade se
                                                                             [recolheu,
na festa do ministro, no banquete do político, na cadeia,
                                                       [na praça onde a bomba
estourou,
na escadaria onde falava o orador, no salão de baile, no
                                                 [microfone não localizado,
na première da grande fita,
-tens mil olhos, mil ouvidos, mil almas, mil mãos,
estás em toda parte, e ninguém te vê,
até o momento em que explodes na rua como uma granada
e a tua voz é o hino de mil letras dos homens heterogêneos
                                                                            [e dispersos...

Alma nova do mundo a cada novo dia. Música das ruas todos
                                                                              [os instantes.
História efêmera que passa e a memória esquecerá
se os livros não lembrarem;
sem ti, reduziríamos o mundo ao alcance dos nossos olhos.
e ficaríamos surdos e mudos, e de tal forma haveria silêncio
e deserto ao redor,
que nos julgaríamos de repente saídos de algum foguete a jato
sobre a face da lua...

Sem ti o mundo de hoje seria como mastro sem bandeira
como bandeira sem vento, como rádio sem antena,
como cérebro sem pensamento, como bússola sem norte,
como morte sem vida
como vida sem morte. .

Sem ti, o mundo seria mundos
muitos mundos, o meu, o teu, o dele, mundinhos de cada um,
nunca um mundo só, nosso mundo, imenso mundo, mundão,
que sai da tua cabeça
e escorre na tua mão!
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Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo. Mensagem (coletânea). 

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