A casa ficava um pouco distante do portão de entrada, e até havia um caminho sombreado de pequenos pinheiros bravos, acácias e medronheiros, com pequenos mirantes de pedra, que se abriam sobre o mar. As apresentações foram simples e despidas de qualquer cerimonial, e Luís Carlos ficou encantado com os pais de Sandra Cristina, que eram educadas e simples. Ela esteve sempre presente, mas como a marcar uma ostensiva distância do pintor. Foi a única pessoa que destoou do ambiente de simpatia que o acolheu.
Luís: - Escute Sandra Cristina, eu vim pedir autorização a seus pais, para pintar o seu retrato, pois sem essa autorização, não me atreveria a pintá-la. Mas, se não quiser...
Sandra: - Bem sei, se eu não quiser deixar-me retratar, você ficaria muito satisfeito, porque se livraria de cumprir a sua promessa - não é assim?!
Luís: - Não é verdade, Sandra Cristina, se você não quiser, perco a grande oportunidade da minha vida de poder fazer uma obra de grande arte !
No tom de voz em que falara, transparecia sinceridade, o que impressionou todos os presentes. A mãe da pequena e o António das Ondas encararam-se num olhar de compreensão. O pai tossiu sobre o seu cachimbo, e Sandra Cristina, pareceu sacudida pela veemência com que o rapaz falara...
Sandra: - Se é assim... Se verdadeiramente, me quer pintar, mesmo depois de saber que eu não passo de uma coxa, agradeço-lhe que me tenha escolhido, para o seu quadro, pois sei que já tentou com algumas das mais bonitas raparigas de São Pedro de Moel.
Luís: - Muito obrigado. Você não tem nada que me agradecer, antes pelo contrário!
André, pai de Sandra Cristina, interveio…
André: - Vamos então festejar o acordo entre o pintor e o modelo, bebendo um copo do bom vinho da região de Leiria.
António: - Que por sinal é um excelente vinho!
Luís Carlos vivia em pleno contentamento. Havia já quinze dias que começara a pintar a sua enorme tela, em que Sandra Cristina, aparecia tal como sempre a via diante de si: sentada num mirante que se debruçava sobre a poesia incomparável do Atlântico, e, sobretudo sobre São Pedro de Moel. À medida que o quadro se aproximava do fim, Luís Carlos, vivia intensamente essa estranha sensação que antecede a glória. Estava realizando uma autêntica obra-prima, na qual, para mais, eram evidentes os seus profundos sentimentos perante o modelo... Se o amor, o êxtase administrativo, tivesse traços ou cores próprios, decerto seriam aqueles que Luís Carlos traçara e coloria na sua tela. Por isso pretextara uma superstição sua, e assim ninguém ainda vira o quadro, pois ele declarava que sempre que trabalhava numa obra de responsabilidade, não gostava que a admirasse, antes de estar concluída. O contrário dava-lhe azar. Sandra Cristina permanecia tão desconcertante para ele, como no primeiro dia que a conhecera. Havia dias que estava carinhosa e quase provocante, e outros em que era distante e fria, como um iceberg. Ela modificava-se de tal ordem, que ele voltava a nada entender dos seus verdadeiros sentimentos. Era certo que nunca dissera que lhe tinha amor, mas tinha sido tão evidentes e tão inequívocas as provas que lhe dera sucessivamente, dos quais, dos seus mais profundos anseios, que a rapariga não podia albergar a menor dúvida quanto a eles...
Apesar disso, ou por isso mesmo, a verdade é que o procedimento de Sandra Cristina seguia, era surpreendente e até inexplicável. Nessa manhã, ela perguntou-lhe:
Sandra: - Então, Luís Carlos, quando é que está pronto o meu retrato? ... E quando é que o posso ver?...
Luís: - Será amanhã, Sandra Cristina, e tenho muita pena...
Sandra: - Pena de quê?!...
Luís: - De acabar o seu retrato...
Sandra: - Não sei porquê?!
Luís: - Porque... Porque depois não a poderei mais tê-la tantas horas sozinha comigo, com a tenho tido até agora ...
Sandra: - O que é que quer dizer com isso?!
Luís: - Quer dizer que gosto de estar sozinho com a Sandra Cristina.
Sandra: - Duvido, pois sempre se comportou, digamos, como se não estivéssemos sozinhos!
Luís: - Não seja injusta, Sandra Cristina, pois eu...
Sandra: - Você... Costuma beijar os seus modelos logo à segunda sessão. Ora, eu tenho posado para si há mais de três semanas, e você nunca tentou beijar-me...
Luís: - É certo, mas deixe-me explicar...
Sandra: - Ah, não tente agora convencer-me de que gosta de mim e por isso nem tentou fazê-lo!
Luís: - Por favor, Sandra Cristina...
Sandra: - Claro, se você gostasse de mim, um pouquinho que fosse já me teria beijado. Ou melhor, já teria tentado beijar-me, sim, porque eu não o consentiria que me beijasse. Porque você está aqui para me fazer o retrato, e não para me beijar!
Luís: - Mas que disparate vem a ser essa Sandra Cristina?!
Sandra: - Não é disparate nenhum, pois bem sei que beijou a Ana Maria, logo no segundo dia que ela pousou para si!
Luís: - Mas, Sandra...
Sandra: - E a mim?! Sim, a mim... Porque é que nunca tentou beijar-me? ... Será que eu seja feia?...
Luís: - A Sandra não é nada feia, antes pelo contrário!
Sandra: - Então, é porque sou aleijada, porque sou uma coxa, não é verdade, Sr. Luís Carlos?!
Enquanto falava, fora caminhando, e já estava muito próximo dela, que, entretanto se levantara para impedir que ela visse o quadro.
Sandra: - Mas fale Luís Carlos, diga alguma coisa... É por eu ser aleijada, o motivo porque nunca me beijou? ... Estou a ver que para si também sou a coxa, ou por piedade, a coxinha!
Chegara-se tanto a ele, que Luís Carlos sentia as formas duras dos seios dela, comprimidos contra o seu peito arfante, e os braços de Sandra Cristina, envolveram-lhe o pescoço. E o rosto encantador de Sandra Cristina, como um grande primeiro plano de cinema, foi-se aproximando do dele... Até que Luís Carlos sentiu que a rapariga o abraçava e o beijava.
Luís: - Por favor, Sandra Cristina... Por favor...
Sandra: - Vê como você tem repugnância de mim?! Da aleijada... Da coxinha!
E disto isto, deu uma enorme gargalhada e afastou-se a correr, em direção a casa. Luís Carlos ficou emparvecido com aquele sabor delicioso a arde-lhe na boca, e uma estranha perplexidade a percorrer-lhe o corpo. O seu primeiro impulso foi de deitar a correr atrás dela, entrar em casa onde a Sandra se refugiara como que envergonhada pelo seu gesto, e obrigá-la então a ser beijada realmente, beijada por ele, com ardor, para não mais se esquecer desses beijos que lhe desse. Mas, lembrou-se de que os pais dela tinham saído para a Marinha Grande, e não lhe pareceu correto corresponder assim, à total confiança que nele depositavam...
Luís: - Ainda agora ela saiu de ao pé de mim, e já sinto saudades dela. Meu Deus, como eu a amo! Sandra Cristina, não me estás a ouvir, mas eu gosto muito de ti!
Embrulhou o quadro quase concluído na tela que sempre o protegia, e arrumou tudo sobre um alpendre próximo. Pensativo, retirou-se a caminho do restaurante, onde habitualmente almoçava...
Luís: - Ela gostará de mim? ... é tão linda, que pena ter aquele defeito. Mas ela gostará realmente de mim? ... Logo à tarde, na sessão final de acabamento, terei oportunidade de averiguar os verdadeiros motivos da atitude dela. Mas, Sandra Cristina gostará mesmo de mim?! ...
Nessa tarde, quando voltou a tocar à campainha do portão da família Mendes, a criada que ocorreu a abri-lo, parecia indecisa e quase trêmula. Luís Carlos, porque vinha preocupado com os seus pensamentos, nem o notou e apenas ouviu o que ela lhe dizia:
Criada: - Os senhores estão neste momento recolhidos nos seus aposentos a descansar...
Luís: - E a menina Sandra Cristina, está?...
Criada: - A menina Sandra saiu... E disse-me se o Sr. Luís Carlos viesse, o prevenisse de que fora passear...
Luís Carlos encarou a criadinha, sem a ver, limitando-se a dizer-lhe depois, enquanto voltava as costas e começava a caminhar sobre os seus passos :"Voltarei mais tarde...". Era demais, era demasiado descaramento. Tanta pressa para ver o quadro acabado, tanta curiosidade e tanta ansiedade por conhecer a obra que ele estava realizando com ela, e agora, apetecera-lhe passear. E justamente no momento em que ele devia começar a sessão final... Irritado, furioso, Luís Carlos, caminhava pela alameda atapetada de agulhas de pinheiro. Uma ruga vincava-lhe a testa. Com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, enfim, muito mal humorado. À sua esquerda, o terreno desvia abruptamente para o mar, numa sucessão irregular de rochas e árvores, que lá em baixo, eram beijadas pelas espumas brancas do oceano. Subitamente, o pintor estancou. Estava no local onde vira, pela primeira vez, a Sandra Cristina. E naquele momento estava novamente a vê-la novamente. A rapariga estava de pé, encostada à rocha, de onde ele a desenhara. Mas agora estava de pé e abraçada a um homem.! A sua cabeça quase que rebentava; ela estava ali, de pé e abraçada a um homem, um rapaz novo, vestido à moda da cidade, que a apertava desvairadamente nos braços, e os seus dois rostos confundiam-se num só, na violência daquele beijo interminável. Luís Carlos, pensou ainda que ele a estivesse forçando, mas era evidente que não. Desprenderam-se por instantes, e foi ela quem de novo a abraçou e colocou a sua boca à dele, tal como fizera nessa manhã com ele. Uma decepção cruel estampou-se no rosto do rapaz. Pensou ainda em chamá-la, apenas para a cumprimentá-la, mas teve pena dela... "Até parece impossível - que infeliz eu sou!". Regressou apressadamente, com os olhos a arderem-lhe, com se os tivesse queimado com aquela cena inesperada a que assistira. Lembrou-se confusamente de pormenores, de detalhes cruéis. O rapaz que abraçava e beijava a Sandra Cristina, era um desses "bonecos", que mesmo na praia, vestia como um galã, e não passava de um meninote, um pouco mais velho do que ela. Custava-lhe a acreditar naquilo que os seus olhos viram: a Sandra Cristina, a perfeita, a imaculada, que ele se habituara a respeitar e a adorar "Com certeza que sonhei... não, não é possível!".
Voltou pelo caminho que tinha percorrido. Tocou violentamente a campainha do portão, e apareceu-lhe outra vez aquela criadinha atarantada, como a quer dizer-lhe qualquer coisa, mas ele nem lhe deu tempo. Dirigiu-se logo para o alpendre onde guardara os seus apetrechos de pintura. Uma vez aí, sobraçou-os todos, o cavalete e a tela, a caixa das tintas e a paleta, e voltou a sair com a sua preciosa carga. A criadinha ainda lhe perguntou: "O Sr. Luís Carlos vai-se embora?!". Não lhe respondeu.
Mas o pintor não sabia que o coração da Sandra, tinha um segredo... Mortificada pela sua deficiência física, a rapariga conhecera nesse Inverno, na cidade do Porto, um tal Januário. O rapaz mostrara-se sensível à sua beleza, e fora amável com ela. Chegando a convidá-la para irem ao cinema. Esta simples prova de deferência ecoara estrondosamente no coração infeliz e retraído da Sandra, de modo quando os pais regressaram a São Pedro de Moel, ela acompanhara-os com tristeza, por se separar do único rapaz que tivera com ela, atenções que até aí nunca recebera. Por isso é que Luís Carlos a surpreendera naquele dia, sentada e solitária naquela rocha, pensando: "O meu "Sebastião" há de chegar numa manhã...". Januário prometera-lhe ir a São Pedro de Moel, passar dez dias de férias. Depois, conhecera Luís Carlos e nunca passara pela cabeça, que um homem tão viajado e tão querido das mulheres, já com perto de trinta anos, se pudesse interessar por ela. As intenções iniciais de Luís Carlos interpretara-os como sendo prelúdio, de um abuso que ele pacientemente preparava e que ela repeliria com violência. Depois, pouco a pouco, aquela permanente correção do pintor, acabara por irritá-la, e tomara-a como sendo um insulto: como se ela fosse capaz de excitar e apaixonar um homem como Luís Carlos... Por isso, decidira naquela manhã, beijá-lo ostensivamente, para se aperceber da sua reação. E foi essa reação que compreendera em Luís Carlos, tremendo dos pés à cabeça, e tentando segurá-la quando lhe fugira, encantando-a e garantia-lhe que bem podia ser verdadeiro o amor que Januário lhe testemunhava nas suas cartas. Exatamente depois de fugir dos braços de Luís Carlos, nessa manhã, a criadinha que estava dentro do seu segredo, entregara-lhe uma carta procedente do Porto. E assim, Sandra Cristina, ficara, a saber, que nesse dia, ao princípio da tarde, no "expresso" do Norte, chegaria o seu amigo Januário... Acabado o almoço, logo que os seus pais foram descansar, aproveitara e correra à estação da Rodoviária, e lá encontrou o seu amigo, que, entretanto chegara. Durante mais de dois meses, sonhara com aquele momento em que voltaria a encontrá-lo. As cartas dele, cheias de promessas e projetos, tinha contribuído e significado aquele encontro. Caminhando ao acaso, a certa altura Januário, tomou-a nos braços e dera-lhe o seu primeiro beijo. Ela exaltara-se com a carícia inesperada, e repetira-a...
Foi nessa altura que Luís Carlos a surpreendera e decidira partir... No quarto que alugara Luís Carlos, disse à dona que recebera um telegrama com notícias que impunham a sua presença imediata, em Lisboa, e que para tal, ia-se partir para a Capital. Fez a sua mala em poucos minutos, e pediu que apresentasse as suas despedidas ao Sr. António das Ondas. Carregando os seus poucos haveres, entre os quais se contava um cavalete embrulhado numa tela cosida, o pintor embarcou no mesmo automóvel em que horas antes, desembarcara o Januário.
Quando António das Ondas foi prevenido do que acontecera, ou seja, a partida inesperada de Luís Carlos, já o "expresso" ia longe a caminho de Lisboa. O bondoso velhote coçou pensativamente o queixo, e ficou a refletir por alguns momentos, depois se dirigiu Estação dos Correios. Mercê das informações que ali obteve o bom do António, apressou-se a percorrer o caminho que o separava da casa dos Mendes. Numa curva da pequenina estrada, deparou-se com a Sandra Cristina, que era levada pela mão, por um jovem de feições viciosas e ar petulante. Parou, encarando ambos e com um olhar, que dirigiu à rapariga, como uma censura muda e pesada:
Januário: - Sandra, tu conheces este homem? ...
Sandra: - Conheço sim. É o Sr. António das Ondas, um grande amigo da minha família.
António: - Olha lá Sandra, que fazes por aqui?!...
Sandra: - Fui esperar este amigo que veio do Norte...
António: - Este que te acompanha? ...
Sandra: - Sim este... Amigo. Recebi, hoje, uma carta de ele a anunciar a sua chegada depois do almoço.
António: - Estou a ver que esse teu amigo veio no mesmo automóvel que levou para Lisboa, o Luís Carlos, com o teu retrato inacabado!
Sandra: - O quê?! O Luís Carlos foi-se embora?! ...
António: - Sim, foi-se embora, e deixou-me um recado a dizer que recebera um telegrama de Lisboa, a reclamar a sua presença. Mas já sei que não é verdade, pois nos Correios informaram-me que não veio nenhum telegrama para ele. Sandra Cristina, como é que explicas isto? ...
Luís: - Escute Sandra Cristina, eu vim pedir autorização a seus pais, para pintar o seu retrato, pois sem essa autorização, não me atreveria a pintá-la. Mas, se não quiser...
Sandra: - Bem sei, se eu não quiser deixar-me retratar, você ficaria muito satisfeito, porque se livraria de cumprir a sua promessa - não é assim?!
Luís: - Não é verdade, Sandra Cristina, se você não quiser, perco a grande oportunidade da minha vida de poder fazer uma obra de grande arte !
No tom de voz em que falara, transparecia sinceridade, o que impressionou todos os presentes. A mãe da pequena e o António das Ondas encararam-se num olhar de compreensão. O pai tossiu sobre o seu cachimbo, e Sandra Cristina, pareceu sacudida pela veemência com que o rapaz falara...
Sandra: - Se é assim... Se verdadeiramente, me quer pintar, mesmo depois de saber que eu não passo de uma coxa, agradeço-lhe que me tenha escolhido, para o seu quadro, pois sei que já tentou com algumas das mais bonitas raparigas de São Pedro de Moel.
Luís: - Muito obrigado. Você não tem nada que me agradecer, antes pelo contrário!
André, pai de Sandra Cristina, interveio…
André: - Vamos então festejar o acordo entre o pintor e o modelo, bebendo um copo do bom vinho da região de Leiria.
António: - Que por sinal é um excelente vinho!
Luís Carlos vivia em pleno contentamento. Havia já quinze dias que começara a pintar a sua enorme tela, em que Sandra Cristina, aparecia tal como sempre a via diante de si: sentada num mirante que se debruçava sobre a poesia incomparável do Atlântico, e, sobretudo sobre São Pedro de Moel. À medida que o quadro se aproximava do fim, Luís Carlos, vivia intensamente essa estranha sensação que antecede a glória. Estava realizando uma autêntica obra-prima, na qual, para mais, eram evidentes os seus profundos sentimentos perante o modelo... Se o amor, o êxtase administrativo, tivesse traços ou cores próprios, decerto seriam aqueles que Luís Carlos traçara e coloria na sua tela. Por isso pretextara uma superstição sua, e assim ninguém ainda vira o quadro, pois ele declarava que sempre que trabalhava numa obra de responsabilidade, não gostava que a admirasse, antes de estar concluída. O contrário dava-lhe azar. Sandra Cristina permanecia tão desconcertante para ele, como no primeiro dia que a conhecera. Havia dias que estava carinhosa e quase provocante, e outros em que era distante e fria, como um iceberg. Ela modificava-se de tal ordem, que ele voltava a nada entender dos seus verdadeiros sentimentos. Era certo que nunca dissera que lhe tinha amor, mas tinha sido tão evidentes e tão inequívocas as provas que lhe dera sucessivamente, dos quais, dos seus mais profundos anseios, que a rapariga não podia albergar a menor dúvida quanto a eles...
Apesar disso, ou por isso mesmo, a verdade é que o procedimento de Sandra Cristina seguia, era surpreendente e até inexplicável. Nessa manhã, ela perguntou-lhe:
Sandra: - Então, Luís Carlos, quando é que está pronto o meu retrato? ... E quando é que o posso ver?...
Luís: - Será amanhã, Sandra Cristina, e tenho muita pena...
Sandra: - Pena de quê?!...
Luís: - De acabar o seu retrato...
Sandra: - Não sei porquê?!
Luís: - Porque... Porque depois não a poderei mais tê-la tantas horas sozinha comigo, com a tenho tido até agora ...
Sandra: - O que é que quer dizer com isso?!
Luís: - Quer dizer que gosto de estar sozinho com a Sandra Cristina.
Sandra: - Duvido, pois sempre se comportou, digamos, como se não estivéssemos sozinhos!
Luís: - Não seja injusta, Sandra Cristina, pois eu...
Sandra: - Você... Costuma beijar os seus modelos logo à segunda sessão. Ora, eu tenho posado para si há mais de três semanas, e você nunca tentou beijar-me...
Luís: - É certo, mas deixe-me explicar...
Sandra: - Ah, não tente agora convencer-me de que gosta de mim e por isso nem tentou fazê-lo!
Luís: - Por favor, Sandra Cristina...
Sandra: - Claro, se você gostasse de mim, um pouquinho que fosse já me teria beijado. Ou melhor, já teria tentado beijar-me, sim, porque eu não o consentiria que me beijasse. Porque você está aqui para me fazer o retrato, e não para me beijar!
Luís: - Mas que disparate vem a ser essa Sandra Cristina?!
Sandra: - Não é disparate nenhum, pois bem sei que beijou a Ana Maria, logo no segundo dia que ela pousou para si!
Luís: - Mas, Sandra...
Sandra: - E a mim?! Sim, a mim... Porque é que nunca tentou beijar-me? ... Será que eu seja feia?...
Luís: - A Sandra não é nada feia, antes pelo contrário!
Sandra: - Então, é porque sou aleijada, porque sou uma coxa, não é verdade, Sr. Luís Carlos?!
Enquanto falava, fora caminhando, e já estava muito próximo dela, que, entretanto se levantara para impedir que ela visse o quadro.
Sandra: - Mas fale Luís Carlos, diga alguma coisa... É por eu ser aleijada, o motivo porque nunca me beijou? ... Estou a ver que para si também sou a coxa, ou por piedade, a coxinha!
Chegara-se tanto a ele, que Luís Carlos sentia as formas duras dos seios dela, comprimidos contra o seu peito arfante, e os braços de Sandra Cristina, envolveram-lhe o pescoço. E o rosto encantador de Sandra Cristina, como um grande primeiro plano de cinema, foi-se aproximando do dele... Até que Luís Carlos sentiu que a rapariga o abraçava e o beijava.
Luís: - Por favor, Sandra Cristina... Por favor...
Sandra: - Vê como você tem repugnância de mim?! Da aleijada... Da coxinha!
E disto isto, deu uma enorme gargalhada e afastou-se a correr, em direção a casa. Luís Carlos ficou emparvecido com aquele sabor delicioso a arde-lhe na boca, e uma estranha perplexidade a percorrer-lhe o corpo. O seu primeiro impulso foi de deitar a correr atrás dela, entrar em casa onde a Sandra se refugiara como que envergonhada pelo seu gesto, e obrigá-la então a ser beijada realmente, beijada por ele, com ardor, para não mais se esquecer desses beijos que lhe desse. Mas, lembrou-se de que os pais dela tinham saído para a Marinha Grande, e não lhe pareceu correto corresponder assim, à total confiança que nele depositavam...
Luís: - Ainda agora ela saiu de ao pé de mim, e já sinto saudades dela. Meu Deus, como eu a amo! Sandra Cristina, não me estás a ouvir, mas eu gosto muito de ti!
Embrulhou o quadro quase concluído na tela que sempre o protegia, e arrumou tudo sobre um alpendre próximo. Pensativo, retirou-se a caminho do restaurante, onde habitualmente almoçava...
Luís: - Ela gostará de mim? ... é tão linda, que pena ter aquele defeito. Mas ela gostará realmente de mim? ... Logo à tarde, na sessão final de acabamento, terei oportunidade de averiguar os verdadeiros motivos da atitude dela. Mas, Sandra Cristina gostará mesmo de mim?! ...
Nessa tarde, quando voltou a tocar à campainha do portão da família Mendes, a criada que ocorreu a abri-lo, parecia indecisa e quase trêmula. Luís Carlos, porque vinha preocupado com os seus pensamentos, nem o notou e apenas ouviu o que ela lhe dizia:
Criada: - Os senhores estão neste momento recolhidos nos seus aposentos a descansar...
Luís: - E a menina Sandra Cristina, está?...
Criada: - A menina Sandra saiu... E disse-me se o Sr. Luís Carlos viesse, o prevenisse de que fora passear...
Luís Carlos encarou a criadinha, sem a ver, limitando-se a dizer-lhe depois, enquanto voltava as costas e começava a caminhar sobre os seus passos :"Voltarei mais tarde...". Era demais, era demasiado descaramento. Tanta pressa para ver o quadro acabado, tanta curiosidade e tanta ansiedade por conhecer a obra que ele estava realizando com ela, e agora, apetecera-lhe passear. E justamente no momento em que ele devia começar a sessão final... Irritado, furioso, Luís Carlos, caminhava pela alameda atapetada de agulhas de pinheiro. Uma ruga vincava-lhe a testa. Com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, enfim, muito mal humorado. À sua esquerda, o terreno desvia abruptamente para o mar, numa sucessão irregular de rochas e árvores, que lá em baixo, eram beijadas pelas espumas brancas do oceano. Subitamente, o pintor estancou. Estava no local onde vira, pela primeira vez, a Sandra Cristina. E naquele momento estava novamente a vê-la novamente. A rapariga estava de pé, encostada à rocha, de onde ele a desenhara. Mas agora estava de pé e abraçada a um homem.! A sua cabeça quase que rebentava; ela estava ali, de pé e abraçada a um homem, um rapaz novo, vestido à moda da cidade, que a apertava desvairadamente nos braços, e os seus dois rostos confundiam-se num só, na violência daquele beijo interminável. Luís Carlos, pensou ainda que ele a estivesse forçando, mas era evidente que não. Desprenderam-se por instantes, e foi ela quem de novo a abraçou e colocou a sua boca à dele, tal como fizera nessa manhã com ele. Uma decepção cruel estampou-se no rosto do rapaz. Pensou ainda em chamá-la, apenas para a cumprimentá-la, mas teve pena dela... "Até parece impossível - que infeliz eu sou!". Regressou apressadamente, com os olhos a arderem-lhe, com se os tivesse queimado com aquela cena inesperada a que assistira. Lembrou-se confusamente de pormenores, de detalhes cruéis. O rapaz que abraçava e beijava a Sandra Cristina, era um desses "bonecos", que mesmo na praia, vestia como um galã, e não passava de um meninote, um pouco mais velho do que ela. Custava-lhe a acreditar naquilo que os seus olhos viram: a Sandra Cristina, a perfeita, a imaculada, que ele se habituara a respeitar e a adorar "Com certeza que sonhei... não, não é possível!".
Voltou pelo caminho que tinha percorrido. Tocou violentamente a campainha do portão, e apareceu-lhe outra vez aquela criadinha atarantada, como a quer dizer-lhe qualquer coisa, mas ele nem lhe deu tempo. Dirigiu-se logo para o alpendre onde guardara os seus apetrechos de pintura. Uma vez aí, sobraçou-os todos, o cavalete e a tela, a caixa das tintas e a paleta, e voltou a sair com a sua preciosa carga. A criadinha ainda lhe perguntou: "O Sr. Luís Carlos vai-se embora?!". Não lhe respondeu.
Mas o pintor não sabia que o coração da Sandra, tinha um segredo... Mortificada pela sua deficiência física, a rapariga conhecera nesse Inverno, na cidade do Porto, um tal Januário. O rapaz mostrara-se sensível à sua beleza, e fora amável com ela. Chegando a convidá-la para irem ao cinema. Esta simples prova de deferência ecoara estrondosamente no coração infeliz e retraído da Sandra, de modo quando os pais regressaram a São Pedro de Moel, ela acompanhara-os com tristeza, por se separar do único rapaz que tivera com ela, atenções que até aí nunca recebera. Por isso é que Luís Carlos a surpreendera naquele dia, sentada e solitária naquela rocha, pensando: "O meu "Sebastião" há de chegar numa manhã...". Januário prometera-lhe ir a São Pedro de Moel, passar dez dias de férias. Depois, conhecera Luís Carlos e nunca passara pela cabeça, que um homem tão viajado e tão querido das mulheres, já com perto de trinta anos, se pudesse interessar por ela. As intenções iniciais de Luís Carlos interpretara-os como sendo prelúdio, de um abuso que ele pacientemente preparava e que ela repeliria com violência. Depois, pouco a pouco, aquela permanente correção do pintor, acabara por irritá-la, e tomara-a como sendo um insulto: como se ela fosse capaz de excitar e apaixonar um homem como Luís Carlos... Por isso, decidira naquela manhã, beijá-lo ostensivamente, para se aperceber da sua reação. E foi essa reação que compreendera em Luís Carlos, tremendo dos pés à cabeça, e tentando segurá-la quando lhe fugira, encantando-a e garantia-lhe que bem podia ser verdadeiro o amor que Januário lhe testemunhava nas suas cartas. Exatamente depois de fugir dos braços de Luís Carlos, nessa manhã, a criadinha que estava dentro do seu segredo, entregara-lhe uma carta procedente do Porto. E assim, Sandra Cristina, ficara, a saber, que nesse dia, ao princípio da tarde, no "expresso" do Norte, chegaria o seu amigo Januário... Acabado o almoço, logo que os seus pais foram descansar, aproveitara e correra à estação da Rodoviária, e lá encontrou o seu amigo, que, entretanto chegara. Durante mais de dois meses, sonhara com aquele momento em que voltaria a encontrá-lo. As cartas dele, cheias de promessas e projetos, tinha contribuído e significado aquele encontro. Caminhando ao acaso, a certa altura Januário, tomou-a nos braços e dera-lhe o seu primeiro beijo. Ela exaltara-se com a carícia inesperada, e repetira-a...
Foi nessa altura que Luís Carlos a surpreendera e decidira partir... No quarto que alugara Luís Carlos, disse à dona que recebera um telegrama com notícias que impunham a sua presença imediata, em Lisboa, e que para tal, ia-se partir para a Capital. Fez a sua mala em poucos minutos, e pediu que apresentasse as suas despedidas ao Sr. António das Ondas. Carregando os seus poucos haveres, entre os quais se contava um cavalete embrulhado numa tela cosida, o pintor embarcou no mesmo automóvel em que horas antes, desembarcara o Januário.
Quando António das Ondas foi prevenido do que acontecera, ou seja, a partida inesperada de Luís Carlos, já o "expresso" ia longe a caminho de Lisboa. O bondoso velhote coçou pensativamente o queixo, e ficou a refletir por alguns momentos, depois se dirigiu Estação dos Correios. Mercê das informações que ali obteve o bom do António, apressou-se a percorrer o caminho que o separava da casa dos Mendes. Numa curva da pequenina estrada, deparou-se com a Sandra Cristina, que era levada pela mão, por um jovem de feições viciosas e ar petulante. Parou, encarando ambos e com um olhar, que dirigiu à rapariga, como uma censura muda e pesada:
Januário: - Sandra, tu conheces este homem? ...
Sandra: - Conheço sim. É o Sr. António das Ondas, um grande amigo da minha família.
António: - Olha lá Sandra, que fazes por aqui?!...
Sandra: - Fui esperar este amigo que veio do Norte...
António: - Este que te acompanha? ...
Sandra: - Sim este... Amigo. Recebi, hoje, uma carta de ele a anunciar a sua chegada depois do almoço.
António: - Estou a ver que esse teu amigo veio no mesmo automóvel que levou para Lisboa, o Luís Carlos, com o teu retrato inacabado!
Sandra: - O quê?! O Luís Carlos foi-se embora?! ...
António: - Sim, foi-se embora, e deixou-me um recado a dizer que recebera um telegrama de Lisboa, a reclamar a sua presença. Mas já sei que não é verdade, pois nos Correios informaram-me que não veio nenhum telegrama para ele. Sandra Cristina, como é que explicas isto? ...
continua
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