Novela em 8 Capítulos.
Estávamos em princípios de Julho, na tarde de um dia muito quente.
A esplanada de São Pedro de Moel, estava apinhada de gente. “Sentadas numa mesa, duas senhoras brasileiras conversavam, fazendo renda ao mesmo tempo...
Lígia: - A que horas é que vais para a praia?
Ilda: - Lá mais para a tardinha, pois agora está um calor insuportável.
Lígia: - Vá lá que aqui na esplanada, com este agradável ventinho, estamos bem.
Ilda: - O mar hoje está muito calmo, e esta beleza... Oh São Pedro de Moel, tu és de uma beleza incomparável, és uma das "joias" deste velho Portugal!
Lígia: - Olha quem vem ali, é o Sr. António das Ondas... Boa tarde, Sr. António!
António das Ondas: - Olá, minhas senhoras! Fizeram boa viagem desde o Sul desse belo país que é o Brasil? ... Posso sentar-me? É que estas minhas pernas já não são o que eram.
Ilda: - Com certeza que se pode sentar, Sr. António das Ondas. Fizemos uma boa viagem. Combinámos encontro no aeroporto de São Paulo e só parámos em Lisboa; depois, ônibus até aqui à também nossa São Pedro de Moel. Senhor está com um ótimo aspecto, e cada vez parece mais novo!
António: - Ora, ora é muita gentileza vossa essa apreciação...
Olhando em redor, António das Ondas viu numa mesa afastada, um casal ainda jovem.
António - As senhoras, por acaso não conhecem aquele casalzinho que está ali sentado, junto daquela janela da esplanada?
Ilda: - Eu só os conheço de vista. Ele é o célebre pintor Luís Carlos, e aquela moça será a sua esposa?...
António: - É sim. É a Sandra Cristina, uma moça natural cá de São Pedro de Moel. Casaram vai para três anos…
Lígia: - Então o Sr. António das Ondas, conhece-os bem?
António: - Conheço-os muito bem mesmo...
Ilda: - O Sr. António está hoje muito misterioso, que se passa, hoje, consigo?
Lígia: - E também não tira os olhos do pintor e da mulher. Vê-se que são seus amigos.
António: - Muito amigos, mesmo. E têm uma bela história de amor!
Ilda: - E o Sr. António tem cá um jeitinho para contar histórias...
António: - Concordo com as senhoras, mas esta é muito especial. É uma bela história de amor...
Lígia: - Senhor António das Ondas, conte-nos a história deles, a que diz que é uma bela "história de amor”.
António: - É uma história muito comprida, e dava bem para um mês...
Ilda: - Mas isso é formidável para nós, pois contamos ficar cá durante todo este mês.
Lígia: - Comece lá a contar a história, Sr. António das Ondas!
António: - Então, se me dão licença, começarei amanhã. De acordo?
Ilda: - Mas aqui está sempre muito barulho, se nós pudéssemos ir para outro lado...
António: - De acordo. Então, por exemplo, podemos encontramos no café da Ladeira, amanhã pelas 10 horas. As senhoras concordam?
Lígia: - Estamos plenamente de acordo!
António: - Então, minhas senhoras, até amanhã!
Luís Carlos era um jovem pintor algarvio, a quem a crítica previa um futuro brilhante na arte, chegara três dias antes a São Pedro de Moel. A beleza da paisagem e das suas gentes haviam-no conquistado, e sendo assim, até se felicitava por ter escolhido aquele recanto privilegiado da Natureza... Não era ainda a época do ano em que os turistas desembarcavam em massa, vindos de "expressos" de todos os pontos do país, passeando e saboreando a sua curiosidade, pelos recantos de São Pedro. A antiga residência de veraneio de Afonso Lopes Vieira, hoje colônia de férias de crianças da Marinha Grande, é um atestado do requinte de vida, de alguns anos atrás, quando os "Algarves" ainda não tinham sido descobertos pelo grande turismo.
- Realmente - pensava Luís Carlos - os antigos sabiam viver.
Demorava horas e horas na contemplação daquele milagre de cores e tons, em que a vegetação e o mar, os acidentes do terreno e a luminosidade do céu, se conjugavam para tudo espiritualizar, emprestando à existência esse "quê" de evasão da vulgaridade que ela vai perdendo, cada vez mais nos nossos tempos de mecanização. Ao chegar à estação da Rodoviária, vindo no "expresso" que o trouxera de Lisboa, cidade onde residia, Luís Carlos teve a ajuda de uma encantadora rapariga, que o ajudou a transportar a sua bagagem até ao alto, para os lados da piscina, onde alugara um quarto.
Ana Maria: - O senhor é pintor?...
Luís Carlos: - Sou sim, garota. Porque perguntas?
Ana: - Com estes aparelhos todos, só podia ser pintor!
A garota chamava-se Ana Maria e tinha 18 anos. Era uma tentação da carne morena rosada, algo tisnada pelo sol, de formas elegantes e graciosas. Todas as outras raparigas de São Pedro de Moel rivalizavam entre si em beleza e graciosidade, emprestando aquele recanto da Natureza, o atrativo da sua presença e da sua voz, dos seus corpos fibroses e jovens, que eram promessas de carinho, destino apetecido de todas as carícias dos homens.
Luís: - Um dia destes, pinto o teu retrato, queres, Ana Maria?
Ana: - Não sei para quê, pois eu até nem sou bonita. Era bem capaz de lhe estragar a pintura!
Luís: - Vaidosa é que tu és garota!
Nesse dia, também conheceu um bondoso e interessante velhote: o António das Ondas. Antigo piloto do "bacalhau" e dos "paquetes" e por fim dos "petróis", como ele por graça dizia. Durante mais de quarenta e cinco anos, andou por cima das ondas, conhecendo todos os oceanos e "meio mundo". Ninguém em São Pedro de Moel tinha segredos para ele, e quase sempre sugeria a melhor maneira para qualquer situação, tal como tinha sempre a melhor palavra para cada um e, na sua vida, nunca tinha mentido. Luís Carlos gostava do bondoso velhote, especialmente pela sua bonomia e pela sua aguda inteligência, não isenta de fina e compreensiva ironia. Nessa tarde e depois de aceitar o convite do António das Ondas para tomar uma bica (café), no café da subida, perto do chafariz, Luís Carlos foi passear sozinho pela beira mar. Começara a pintar uma garota da terra, mas ela era tão apetecível, tão provocante, mesmo que involuntariamente, que o nosso pintor decidira espaçar as sessões, e andava enchendo os olhos por aquela paisagem de sonho, povoada de gente simples e bonita, gozando profundamente a paz daquelas encostas alcantiladas, que se erguiam sobre o Atlântico, azul e revolto, rebrilhante como uma imensa gema preciosa.
Subitamente, Luís Carlos estacou surpreendido: defronte dele, mas em plano inferior na encosta que descia para o mar, ali bem perto da varanda da esplanada, acabava de descobrir o vulto airoso de uma rapariga que olhava o oceano. Estava quase de costas para ele e, um lindíssimo cabelo alourado ondulava brandamente na aragem da manhã. Não podia ver-lhe as feições, mas a sua silhueta, desenhando-se com nitidez e elegância, sobre o mar, dava-lhe um ar de estátua proporcionada e delicada, assim sentada no alto daquela rocha, de tons escuros. Sem fazer qualquer ruído, Luís Carlos, foi-se aproximando da rapariga, desviando-se o suficiente para poder vê-la de perfil. Era lindíssima, e tinha as mãos entrelaçadas na ponta dos braços, onde prendia um dos joelhos.
Tirando da sua pasta, um lápis e papel, o pintor começou a fazer um esboço daquela beleza estranha, que parecia sofrer. Quando o esboço ia quase no fim, ela deu pela presença dele, e fitou-o com certa surpresa...
Luís: - Bom dia, menina. Peço-lhe desculpa... Não pretendia perturbar-lhe os seus pensamentos, mas a tentação foi maior…
Sandra Cristina: - Olá, bom dia! Parece que já o conheço, pois no outro dia encontrei-o junto da Ana Maria. O senhor também costuma conversar com o Sr. António das Ondas. Estou certa?
Luís: - Sim costumo e gosto de falar com o Sr. António. Pelos vistos também conhece esse senhor.
Sandra: - Toda a gente aqui o conhece. Mas, o Sr. Esteve a ocupar-se de mim? Pintou o meu retrato?!
Luís: - É verdade. A beleza que você dava a este quadro era tão forte, tão comunicativa que me permitiu fixá-la num pequeno esboço. Com o mar lá em baixo, era bem "A Deusa e o Mar!..." Não se ofendeu por isso, não é verdade?
Enquanto falava, Luís Carlos ia-se enfeitiçando com a impressão que lhe provocara aquela rapariga, tão estranha, de olhos claros e distantes, e cujo sortilégio, era fascinante e inquietante ao mesmo tempo.
Sandra: - Não, não me importo, Deixe-me ver esse esboço…
Luís Carlos entregou-lhe o papel e sentiu-se mais tranquilo, quando percebeu na expressão dela, uma verdadeira admiração pelo seu trabalho. Quando a rapariga levantou os olhos, ele mais pediu que perguntou:
Luís: - Deixa-me pintar um retrato seu?
Sandra: - Tem mesmo a certeza que me quer pintar?!
Luís: - Claro que tenho a certeza! Você é uma das raparigas mais belas que vi em toda a minha vida!
Um vago sorriso indefinível perpassou pelo da jovem. Um sorriso que queria ser trocista, mas era profundamente triste. Por fim disse apenas iludindo a resposta.
Sandra: - Ainda nem sei o seu nome...
Luís: - Chamo-me Luís Carlos, sou pintor de profissão e algarvio de nascimento.
Sandra: - Eu sou a Sandra Cristina Mendes e vivo com os meus pais, numa pequena quinta que possuímos aqui em São Pedro de Moel.
Luís: - Então se me permitir procurarei seus pais, para pedir-lhe licença para pintar o seu retrato.
Sandra: - Se achar que vale a pena, não me oponho. Mas creio que brevemente mudará de opinião!
E dizendo estas palavras, saiu de cima da rocha, e caminhou vagarosamente diante dele. Luís Carlos verificou então que uma das pernas daquela beldade era sensivelmente mais curta que a outra, e que o pé não pousava normalmente no chão. O seu andar não era cadenciado, e até as ancas apresentavam uma evidente assimetria. “A voz dela soou como uma chicotada:
Sandra: - Vê!... eu bem o preveni que decerto mudaria de opinião...
Luís: - Mas...
Não teve tempo para articular nem uma palavra, porque ela deitou a correr subindo o carreiro que ele antes descera, com uma agilidade muito notável para o seu defeito físico... Chegada lá a cima, parou e encarou-o, dizendo numa voz patética, em que não se adivinhava nem uma lágrima.
Sandra: - Será melhor pintar qualquer dessas raparigas sadias, que há em São Pedro de Moel, do que perder tempo com uma aleijada...
Luís Carlos encarava-a alcandorada lá em cima, na beira do caminho, e não encontrava qualquer palavra acertada para dizer, que lhe tivesse ocorrido a frase certa. Entretanto, mesmo que a disse-se, ela já não a teria ouvido, pois desaparecera dos seus olhos, como que misteriosamente. Verificou então que não encontrava a folha de papel, onde esboçara a sua airosa figurinha incrustada na rocha. E, como não havia vento, o desaparecimento do papel, apenas podia a explicação de ela o ter guardado. E esta hipótese confortou-o. Nessa tarde, encontrando o António das Ondas, numa esquina de São Pedro de Moel, o pintor Luís Carlos, dirigiu-se-lhe a ele precipitadamente. O bom velhote acolheu-o com um sorriso, e pareceu esperar quaisquer palavras, que, aliás, não demoraram:
Luís: - Diga-me, Sr. António das Ondas, conhece uma família Mendes, que tem uma Quinta aqui em São Pedro de Moel?
António: - Conheço sim, meu rapaz! Têm uma pequena Quinta, e uma filha linda como os amores, não é verdade?... Encontrei a Sandra Cristina, que levava o esboço que lhe fizeste sem ela dar por isso. É um encanto de menina, mas muito infeliz...
Luís: - Estou a ver... Mas diga-me como lhe aconteceu aquilo...
António: - Foi um acidente de automóvel, quando a pobre tinha doze anos. Se tivesse acontecido mais cedo, teria sido melhor, pois os pais eram (pode-se dizer ricos), mas há cerca de cinco anos, sofreram um terrível incêndio, e ficaram praticamente arruinados... e assim, na altura em que se deu o desastre, já eles não tinham posses para levar a pequena ao estrangeiro, e fazê-la operar por algum desses grandes especialistas.
Luís: - Mas... Quase não se nota!...
António: - Isso dizes tu com o teu entusiasmo, mas a verdade é que toda a gente a trata por coxa, ou com mais ternura, pela coxinha. E repara, para uma rapariga formosa, de dezoito anos, é um drama que eu tenho tentado atenuar, na minha qualidade de "amigo de família". Mas é difícil e delicado, pois a Sandra Cristina, é de uma personalidade riquíssima, até excessivamente sensível... Diz-me lá uma coisa, Luís Carlos, sempre queres pintar o retrato dela?
Luís: - Claro que quero. É o rosto de mulher mais belo que vi em toda a minha vida !
António: - Mas mesmo sendo coxa?!
Luís: - Pelos vistos, chamam-lhe assim, mas ela, não é bem coxa. E esse aspecto em nada vai alterar o meu propósito de pintar o seu retrato!
António: - Estás a falar verdade, Luís Carlos?
Luís: - É verdade, Sr. António das Ondas! Muito lhe agradecia que me dissesse aonde é que fica a quinta deles, para eu ir lá pedir aos pais autorização, para lhe fazer o retrato.
António: - Sendo assim, até calha bem, porque eu vou agora a casa dos Mendes. Se quiseres, podes vir comigo.
Luís: - Fico-lhe muito agradecido.
António: - Espera aí, rapaz, não andes tão rápido ... Que pressa essa! Eu quero prevenir-te que aquela gente é muito boa, e que não deves brincar com o coração de Sandra Cristina, pois ela é uma pequena de uma sensibilidade fora do comum, e aquele acidente marcou-a para toda a vida. Por favor, não vás encher a cabeça da mocinha de coisas bonitas, para depois lhe dares um desengano - prometes?! ...
Luís: - Mas eu só quero pintá-la!
António: - Ora, ora... Estás em São Pedro de Moel há mais de uma semana, já começaste quatro ou cinco retratos de outras tantas raparigas, e ainda não acabaste nenhum.
Luís: - Mas hei-de acabá-los. O Senhor Sabe bem que muitas vezes, ao iniciar uma pintura, estamos convencidos de qualquer coisa, mas por vezes essa mesma pintura nos afasta. Não sei explicar porquê ... Não sei expressar o que sinto...
António: - Nem é preciso que expliques. São os teus vinte e oito anos, o teu anseio de beleza. Bem, eu não estou a censurar-te, de maneira nenhuma, o que tens feito. Estou só a pedir-te que não o repitas com a Sandra Cristina.
Luís: - Se eu conseguir pintá-la prometo que acabarei o quadro, e ele será a grande obra-prima da minha vida!
António: - Assim é que é falar! E olha que também não será preciso que beijes (de certa maneira...) o teu modelo, durante as sessões de pintura - percebes, não percebes?...
Luís: - Eu só gostava de saber como é que o Sr. António das Ondas consegue saber tudo o que se passa cá na terra!
António: - Não te esqueças que sou amigo de toda a gente! Sinceramente, gostava muito que tu e a Sandra Cristina se entendessem bem, até para lhe tirar ideias tontas que ela tem na cabecinha, e que só podem fazê-la infeliz. E tu talvez sejas um homem capaz disso...
Luís: - Pode crer que tudo farei para consegui-lo!
António: - E com esta conversa toda, chegámos a casa dos Mendes. Vamos entrar...
continua…
Fonte:
O Autor
Estávamos em princípios de Julho, na tarde de um dia muito quente.
A esplanada de São Pedro de Moel, estava apinhada de gente. “Sentadas numa mesa, duas senhoras brasileiras conversavam, fazendo renda ao mesmo tempo...
Lígia: - A que horas é que vais para a praia?
Ilda: - Lá mais para a tardinha, pois agora está um calor insuportável.
Lígia: - Vá lá que aqui na esplanada, com este agradável ventinho, estamos bem.
Ilda: - O mar hoje está muito calmo, e esta beleza... Oh São Pedro de Moel, tu és de uma beleza incomparável, és uma das "joias" deste velho Portugal!
Lígia: - Olha quem vem ali, é o Sr. António das Ondas... Boa tarde, Sr. António!
António das Ondas: - Olá, minhas senhoras! Fizeram boa viagem desde o Sul desse belo país que é o Brasil? ... Posso sentar-me? É que estas minhas pernas já não são o que eram.
Ilda: - Com certeza que se pode sentar, Sr. António das Ondas. Fizemos uma boa viagem. Combinámos encontro no aeroporto de São Paulo e só parámos em Lisboa; depois, ônibus até aqui à também nossa São Pedro de Moel. Senhor está com um ótimo aspecto, e cada vez parece mais novo!
António: - Ora, ora é muita gentileza vossa essa apreciação...
Olhando em redor, António das Ondas viu numa mesa afastada, um casal ainda jovem.
António - As senhoras, por acaso não conhecem aquele casalzinho que está ali sentado, junto daquela janela da esplanada?
Ilda: - Eu só os conheço de vista. Ele é o célebre pintor Luís Carlos, e aquela moça será a sua esposa?...
António: - É sim. É a Sandra Cristina, uma moça natural cá de São Pedro de Moel. Casaram vai para três anos…
Lígia: - Então o Sr. António das Ondas, conhece-os bem?
António: - Conheço-os muito bem mesmo...
Ilda: - O Sr. António está hoje muito misterioso, que se passa, hoje, consigo?
Lígia: - E também não tira os olhos do pintor e da mulher. Vê-se que são seus amigos.
António: - Muito amigos, mesmo. E têm uma bela história de amor!
Ilda: - E o Sr. António tem cá um jeitinho para contar histórias...
António: - Concordo com as senhoras, mas esta é muito especial. É uma bela história de amor...
Lígia: - Senhor António das Ondas, conte-nos a história deles, a que diz que é uma bela "história de amor”.
António: - É uma história muito comprida, e dava bem para um mês...
Ilda: - Mas isso é formidável para nós, pois contamos ficar cá durante todo este mês.
Lígia: - Comece lá a contar a história, Sr. António das Ondas!
António: - Então, se me dão licença, começarei amanhã. De acordo?
Ilda: - Mas aqui está sempre muito barulho, se nós pudéssemos ir para outro lado...
António: - De acordo. Então, por exemplo, podemos encontramos no café da Ladeira, amanhã pelas 10 horas. As senhoras concordam?
Lígia: - Estamos plenamente de acordo!
António: - Então, minhas senhoras, até amanhã!
Luís Carlos era um jovem pintor algarvio, a quem a crítica previa um futuro brilhante na arte, chegara três dias antes a São Pedro de Moel. A beleza da paisagem e das suas gentes haviam-no conquistado, e sendo assim, até se felicitava por ter escolhido aquele recanto privilegiado da Natureza... Não era ainda a época do ano em que os turistas desembarcavam em massa, vindos de "expressos" de todos os pontos do país, passeando e saboreando a sua curiosidade, pelos recantos de São Pedro. A antiga residência de veraneio de Afonso Lopes Vieira, hoje colônia de férias de crianças da Marinha Grande, é um atestado do requinte de vida, de alguns anos atrás, quando os "Algarves" ainda não tinham sido descobertos pelo grande turismo.
- Realmente - pensava Luís Carlos - os antigos sabiam viver.
Demorava horas e horas na contemplação daquele milagre de cores e tons, em que a vegetação e o mar, os acidentes do terreno e a luminosidade do céu, se conjugavam para tudo espiritualizar, emprestando à existência esse "quê" de evasão da vulgaridade que ela vai perdendo, cada vez mais nos nossos tempos de mecanização. Ao chegar à estação da Rodoviária, vindo no "expresso" que o trouxera de Lisboa, cidade onde residia, Luís Carlos teve a ajuda de uma encantadora rapariga, que o ajudou a transportar a sua bagagem até ao alto, para os lados da piscina, onde alugara um quarto.
Ana Maria: - O senhor é pintor?...
Luís Carlos: - Sou sim, garota. Porque perguntas?
Ana: - Com estes aparelhos todos, só podia ser pintor!
A garota chamava-se Ana Maria e tinha 18 anos. Era uma tentação da carne morena rosada, algo tisnada pelo sol, de formas elegantes e graciosas. Todas as outras raparigas de São Pedro de Moel rivalizavam entre si em beleza e graciosidade, emprestando aquele recanto da Natureza, o atrativo da sua presença e da sua voz, dos seus corpos fibroses e jovens, que eram promessas de carinho, destino apetecido de todas as carícias dos homens.
Luís: - Um dia destes, pinto o teu retrato, queres, Ana Maria?
Ana: - Não sei para quê, pois eu até nem sou bonita. Era bem capaz de lhe estragar a pintura!
Luís: - Vaidosa é que tu és garota!
Nesse dia, também conheceu um bondoso e interessante velhote: o António das Ondas. Antigo piloto do "bacalhau" e dos "paquetes" e por fim dos "petróis", como ele por graça dizia. Durante mais de quarenta e cinco anos, andou por cima das ondas, conhecendo todos os oceanos e "meio mundo". Ninguém em São Pedro de Moel tinha segredos para ele, e quase sempre sugeria a melhor maneira para qualquer situação, tal como tinha sempre a melhor palavra para cada um e, na sua vida, nunca tinha mentido. Luís Carlos gostava do bondoso velhote, especialmente pela sua bonomia e pela sua aguda inteligência, não isenta de fina e compreensiva ironia. Nessa tarde e depois de aceitar o convite do António das Ondas para tomar uma bica (café), no café da subida, perto do chafariz, Luís Carlos foi passear sozinho pela beira mar. Começara a pintar uma garota da terra, mas ela era tão apetecível, tão provocante, mesmo que involuntariamente, que o nosso pintor decidira espaçar as sessões, e andava enchendo os olhos por aquela paisagem de sonho, povoada de gente simples e bonita, gozando profundamente a paz daquelas encostas alcantiladas, que se erguiam sobre o Atlântico, azul e revolto, rebrilhante como uma imensa gema preciosa.
Subitamente, Luís Carlos estacou surpreendido: defronte dele, mas em plano inferior na encosta que descia para o mar, ali bem perto da varanda da esplanada, acabava de descobrir o vulto airoso de uma rapariga que olhava o oceano. Estava quase de costas para ele e, um lindíssimo cabelo alourado ondulava brandamente na aragem da manhã. Não podia ver-lhe as feições, mas a sua silhueta, desenhando-se com nitidez e elegância, sobre o mar, dava-lhe um ar de estátua proporcionada e delicada, assim sentada no alto daquela rocha, de tons escuros. Sem fazer qualquer ruído, Luís Carlos, foi-se aproximando da rapariga, desviando-se o suficiente para poder vê-la de perfil. Era lindíssima, e tinha as mãos entrelaçadas na ponta dos braços, onde prendia um dos joelhos.
Tirando da sua pasta, um lápis e papel, o pintor começou a fazer um esboço daquela beleza estranha, que parecia sofrer. Quando o esboço ia quase no fim, ela deu pela presença dele, e fitou-o com certa surpresa...
Luís: - Bom dia, menina. Peço-lhe desculpa... Não pretendia perturbar-lhe os seus pensamentos, mas a tentação foi maior…
Sandra Cristina: - Olá, bom dia! Parece que já o conheço, pois no outro dia encontrei-o junto da Ana Maria. O senhor também costuma conversar com o Sr. António das Ondas. Estou certa?
Luís: - Sim costumo e gosto de falar com o Sr. António. Pelos vistos também conhece esse senhor.
Sandra: - Toda a gente aqui o conhece. Mas, o Sr. Esteve a ocupar-se de mim? Pintou o meu retrato?!
Luís: - É verdade. A beleza que você dava a este quadro era tão forte, tão comunicativa que me permitiu fixá-la num pequeno esboço. Com o mar lá em baixo, era bem "A Deusa e o Mar!..." Não se ofendeu por isso, não é verdade?
Enquanto falava, Luís Carlos ia-se enfeitiçando com a impressão que lhe provocara aquela rapariga, tão estranha, de olhos claros e distantes, e cujo sortilégio, era fascinante e inquietante ao mesmo tempo.
Sandra: - Não, não me importo, Deixe-me ver esse esboço…
Luís Carlos entregou-lhe o papel e sentiu-se mais tranquilo, quando percebeu na expressão dela, uma verdadeira admiração pelo seu trabalho. Quando a rapariga levantou os olhos, ele mais pediu que perguntou:
Luís: - Deixa-me pintar um retrato seu?
Sandra: - Tem mesmo a certeza que me quer pintar?!
Luís: - Claro que tenho a certeza! Você é uma das raparigas mais belas que vi em toda a minha vida!
Um vago sorriso indefinível perpassou pelo da jovem. Um sorriso que queria ser trocista, mas era profundamente triste. Por fim disse apenas iludindo a resposta.
Sandra: - Ainda nem sei o seu nome...
Luís: - Chamo-me Luís Carlos, sou pintor de profissão e algarvio de nascimento.
Sandra: - Eu sou a Sandra Cristina Mendes e vivo com os meus pais, numa pequena quinta que possuímos aqui em São Pedro de Moel.
Luís: - Então se me permitir procurarei seus pais, para pedir-lhe licença para pintar o seu retrato.
Sandra: - Se achar que vale a pena, não me oponho. Mas creio que brevemente mudará de opinião!
E dizendo estas palavras, saiu de cima da rocha, e caminhou vagarosamente diante dele. Luís Carlos verificou então que uma das pernas daquela beldade era sensivelmente mais curta que a outra, e que o pé não pousava normalmente no chão. O seu andar não era cadenciado, e até as ancas apresentavam uma evidente assimetria. “A voz dela soou como uma chicotada:
Sandra: - Vê!... eu bem o preveni que decerto mudaria de opinião...
Luís: - Mas...
Não teve tempo para articular nem uma palavra, porque ela deitou a correr subindo o carreiro que ele antes descera, com uma agilidade muito notável para o seu defeito físico... Chegada lá a cima, parou e encarou-o, dizendo numa voz patética, em que não se adivinhava nem uma lágrima.
Sandra: - Será melhor pintar qualquer dessas raparigas sadias, que há em São Pedro de Moel, do que perder tempo com uma aleijada...
Luís Carlos encarava-a alcandorada lá em cima, na beira do caminho, e não encontrava qualquer palavra acertada para dizer, que lhe tivesse ocorrido a frase certa. Entretanto, mesmo que a disse-se, ela já não a teria ouvido, pois desaparecera dos seus olhos, como que misteriosamente. Verificou então que não encontrava a folha de papel, onde esboçara a sua airosa figurinha incrustada na rocha. E, como não havia vento, o desaparecimento do papel, apenas podia a explicação de ela o ter guardado. E esta hipótese confortou-o. Nessa tarde, encontrando o António das Ondas, numa esquina de São Pedro de Moel, o pintor Luís Carlos, dirigiu-se-lhe a ele precipitadamente. O bom velhote acolheu-o com um sorriso, e pareceu esperar quaisquer palavras, que, aliás, não demoraram:
Luís: - Diga-me, Sr. António das Ondas, conhece uma família Mendes, que tem uma Quinta aqui em São Pedro de Moel?
António: - Conheço sim, meu rapaz! Têm uma pequena Quinta, e uma filha linda como os amores, não é verdade?... Encontrei a Sandra Cristina, que levava o esboço que lhe fizeste sem ela dar por isso. É um encanto de menina, mas muito infeliz...
Luís: - Estou a ver... Mas diga-me como lhe aconteceu aquilo...
António: - Foi um acidente de automóvel, quando a pobre tinha doze anos. Se tivesse acontecido mais cedo, teria sido melhor, pois os pais eram (pode-se dizer ricos), mas há cerca de cinco anos, sofreram um terrível incêndio, e ficaram praticamente arruinados... e assim, na altura em que se deu o desastre, já eles não tinham posses para levar a pequena ao estrangeiro, e fazê-la operar por algum desses grandes especialistas.
Luís: - Mas... Quase não se nota!...
António: - Isso dizes tu com o teu entusiasmo, mas a verdade é que toda a gente a trata por coxa, ou com mais ternura, pela coxinha. E repara, para uma rapariga formosa, de dezoito anos, é um drama que eu tenho tentado atenuar, na minha qualidade de "amigo de família". Mas é difícil e delicado, pois a Sandra Cristina, é de uma personalidade riquíssima, até excessivamente sensível... Diz-me lá uma coisa, Luís Carlos, sempre queres pintar o retrato dela?
Luís: - Claro que quero. É o rosto de mulher mais belo que vi em toda a minha vida !
António: - Mas mesmo sendo coxa?!
Luís: - Pelos vistos, chamam-lhe assim, mas ela, não é bem coxa. E esse aspecto em nada vai alterar o meu propósito de pintar o seu retrato!
António: - Estás a falar verdade, Luís Carlos?
Luís: - É verdade, Sr. António das Ondas! Muito lhe agradecia que me dissesse aonde é que fica a quinta deles, para eu ir lá pedir aos pais autorização, para lhe fazer o retrato.
António: - Sendo assim, até calha bem, porque eu vou agora a casa dos Mendes. Se quiseres, podes vir comigo.
Luís: - Fico-lhe muito agradecido.
António: - Espera aí, rapaz, não andes tão rápido ... Que pressa essa! Eu quero prevenir-te que aquela gente é muito boa, e que não deves brincar com o coração de Sandra Cristina, pois ela é uma pequena de uma sensibilidade fora do comum, e aquele acidente marcou-a para toda a vida. Por favor, não vás encher a cabeça da mocinha de coisas bonitas, para depois lhe dares um desengano - prometes?! ...
Luís: - Mas eu só quero pintá-la!
António: - Ora, ora... Estás em São Pedro de Moel há mais de uma semana, já começaste quatro ou cinco retratos de outras tantas raparigas, e ainda não acabaste nenhum.
Luís: - Mas hei-de acabá-los. O Senhor Sabe bem que muitas vezes, ao iniciar uma pintura, estamos convencidos de qualquer coisa, mas por vezes essa mesma pintura nos afasta. Não sei explicar porquê ... Não sei expressar o que sinto...
António: - Nem é preciso que expliques. São os teus vinte e oito anos, o teu anseio de beleza. Bem, eu não estou a censurar-te, de maneira nenhuma, o que tens feito. Estou só a pedir-te que não o repitas com a Sandra Cristina.
Luís: - Se eu conseguir pintá-la prometo que acabarei o quadro, e ele será a grande obra-prima da minha vida!
António: - Assim é que é falar! E olha que também não será preciso que beijes (de certa maneira...) o teu modelo, durante as sessões de pintura - percebes, não percebes?...
Luís: - Eu só gostava de saber como é que o Sr. António das Ondas consegue saber tudo o que se passa cá na terra!
António: - Não te esqueças que sou amigo de toda a gente! Sinceramente, gostava muito que tu e a Sandra Cristina se entendessem bem, até para lhe tirar ideias tontas que ela tem na cabecinha, e que só podem fazê-la infeliz. E tu talvez sejas um homem capaz disso...
Luís: - Pode crer que tudo farei para consegui-lo!
António: - E com esta conversa toda, chegámos a casa dos Mendes. Vamos entrar...
continua…
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